domingo, 29 de julho de 2018

Paisagem brasileira

Manhã de sol, Alcides Marques

O PT nada aprendeu, nada esqueceu

​A repórter Marina Dias mostrou um pedaço do programa de 36 páginas do PT. Como se sabia, lá está a proposta para convocar um plebiscito para revogar iniciativas do governo de Michel Temer (só?). O recurso à consulta direta depois de uma eleição majoritária é golpismo e na Venezuela deu no que deu.

Outras propostas petistas dividem-se em três categorias. A transformação do Supremo Tribunal em Corte Constitucional está na mesa. Outras, como o estabelecimento de mandatos para demais cortes superiores, são más ideias. Já a participação de servidores na eleição dos órgãos de gestão dos tribunais é uma girafona.

Coisas como o fim das férias de dois meses e do auxílio-moradia são arroz de festa, pois os penduricalhos agonizam. Parolagens em torno de ampliação dos poderes da "sociedade civil organizada" ou criação de "comissões de alto nível" são apenas parolagens.

Nessa amostra da plataforma petista vê-se que os comissários resolveram limpar o porão, trazendo de volta projetos repetidamente rejeitados pelo Congresso. É o caso do financiamento público das campanhas e o voto de lista.

Debulhando-se o aperitivo, percebe-se que diversas propostas dependem da aprovação de emendas constitucionais. É aí que a porca torce o rabo. Com que maioria o comissariado pretende aprová-las? Sua bancada será insuficiente, portanto, pretendem buscar os votos com aquilo que vem sendo chamado de centrão.

Como? Com os métodos que entre 2003 e 2004 acabaram no escândalo do mensalão. Nesse jogo reinava Valdemar Costa Neto, que foi para a cadeia, vestiu tornozeleira e foi indultado. Ele voltou a operar para Michel Temer e hoje está aninhado na coligação de Geraldo Alckmin.

Como os Bourbons que voltaram a reinar na França depois do colapso da revolução, o PT nada aprendeu, nada esqueceu.

São muitos os comissários petistas inquietos com a trava que Lula impôs ao partido recusando-se a aceitar um Plano B para a eleição.

A trava atrapalha os projetos individuais de petistas que precisam costurar alianças em seus estados.

O que os comissários parecem não ter percebido é que desde o século passado, quando criou o PT, Lula pensa primeiro nele. Depois, novamente nele.

Se o Poste perder a eleição, Lula continuará como vítima. Se ganhar, a vitória terá sido dele, e de mais ninguém.

Elio Gaspari

Quem espalha desinformação? E quem não espalha?

Mentir é ruim. E a internet permite que mentiras se espalhem de forma mais fácil. Logo, é preciso impedir que as mentiras se espalhem pela internet. Mas quem define o que é mentira? Nas situações em que é fácil distinguir fatos de invenções, não há problema: a vereadora Marielle Franco não era ligada ao Comando Vermelho – se foi, não há comprovação, e a ausência de prova dispensa insinuações. Ofensa e difamação também já são passíveis de punição por lei muito antes do surgimento da internet. Mas e o impeachment de Dilma Rousseff, foi golpe ou não? O ex-presidente Lula foi condenado por dois tribunais sem nenhuma prova?


As redes sociais criaram o problema involuntariamente, como um efeito colateral de seu agigantamento. É uma questão de escala: as ferramentas deram voz a todo mundo e originaram os conceitos de fake news e pós-verdade, que permeiam todo o debate político, mas que ninguém sabe definir exatamente o que significam. A notícia falsa pode ser uma mentira deliberada, uma interpretação maliciosa, uma crença genuína. A pós-verdade é uma mentira que não seria tão mentirosa assim. Quem define? A resposta liberal é: todo mundo. “A opinião que se tenta suprimir pela autoridade pode ser verdadeira. Aqueles que desejam suprimi-la naturalmente negam sua verdade; mas eles não são infalíveis”, alertou John Stuart Mill em Sobre a Liberdade na década de 1850.

Até o surgimento do Facebook e do Twitter, quem se sentisse afetado por uma declaração pública qualquer — e elas geralmente vinham pelos jornais — tinha a prerrogativa de ir à Justiça. Hoje, não há mais tempo para esperar o desenrolar de um processo, apesar de o Marco Civil da Internet prever como “alternativa ao contratante [no caso, o usuário de rede social] a adoção do foro brasileiro para solução de controvérsias decorrentes de serviços prestados no Brasil”. O artigo 8º da legislação diz que “a garantia do direito à privacidade e à liberdade de expressão nas comunicações é condição para o pleno exercício do direito de acesso à internet”. Mas a legislação não parece suficiente para controlar os distúrbios causados nas redes sociais.

Pressionadas, as próprias empresas se apresentaram para solucionar o problema. O YouTube estabelece quem pode ganhar dinheiro com os vídeos publicados na plataforma – e, se o produtor de conteúdo desagradar parte considerável dos usuários, pode acabar banido. O mesmo procedimento, de banimento e suspensão em caso de descumprimento de regras, é adotado pelo Twitter. Nesta semana, o presidente norte-americano, Donald Trump, reclamou que o microblog está “shadow banning” (diminuindo a exposição) de “republicanos proeminentes”. Já no Brasil, o Facebook contratou agências de checagem de notícia para separar o joio do trigo e derrubou de uma vez só 196 páginas e 87 perfis considerados inapropriados sem mencionar diretamente o tema fake news.

A remoção de “contas falsas” não parece tão controversa, mas a alegação da empresa, no informativo sobre a exclusão das contas, de que havia um “propósito de gerar divisão e espalhar desinformação” entre os banidos é ampla o bastante para incluir, por exemplo, contas de partidos políticos que promovam a candidatura de um ex-presidente que não pode se candidatar por impedimentos judiciais... O partido estaria gerando divisão? Tumultuando o processo eleitoral? Como pode uma ferramenta tão relevante como o Facebook endossá-las? As perguntas podem soar cínicas dependendo de quem ouve. Quem define?

Os membros do Movimento Brasil Livre (MBL) já publicaram várias informações erradas em seus perfis. O mesmo pode ser dito sobre deputados de partidos como PT e PCdoB, que de boa ou má fé fizeram circular imagens do que sugeriam ser grandes aglomerações de manifestantes apoiando determinada causa — quando se tratavam de protestos promovidos até em outros países. Quando confrontados com a realidade, geralmente os responsáveis pela postagem errada ou maliciosa as apagam, sob o preço do estigma de terem sido pegos na mentira.

As ferramentas virtuais têm a prerrogativa de estipular as próprias regras — e talvez a rigidez seja mesmo o melhor caminho para elas, apesar de a recente queda de ações do Facebook estar ligada a uma crise de modelo que parece afugentar novos usuários. As acusações de descuido com os dados dos usuários e a suspeita de interferência de russos na eleição dos Estados Unidos levaram Mark Zuckerberg a se explicar no Congresso norte-americano. Os expurgos periódicos atendem às demandas por um mínimo de ordem e transmitem alguma sensação de controle numa época em que se imagina que as redes sociais são capazes de definir disputas políticas. Mas as consequências dos bloqueios e banimentos podem ser bem piores para a sociedade do que a tranquilidade de uma timeline pacificada sugere.

As redes sociais se elevaram ao posto de fóruns de debate público e viraram plataformas para organização e mobilização política. É uma posição de prestígio, mas não é uma posição confortável. O fato de grupos à direita do espectro político serem os mais afetados — não apenas no Brasil — é relevante, independente do que isso signifique. Pode ser que a direita, representada massivamente no ambiente online brasileiro pelo MBL, seja mais ativa ou agressiva — ou eficiente — do que a esquerda e, por isso, chame mais atenção e se torne um alvo mais óbvio — a página Corrupção Brasileira Memes, de humor e também identificada como de direita, foi derrubada apesar de ter 1 milhão de seguidores.

Mas pode ser também que aqueles envolvidos em checar a qualidade de postagens e estratégias de atuação nas redes sejam de esquerda — como alegam os banidos — e, por isso, estejam mais atentos às mentiras da direita, das quais eles discordam. É nessa posição duvidosa que os responsáveis pelas redes sociais se colocam quando decidem arbitrar quem pode ou não participar do debate público. Para se livrar das suspeitas, o Facebook teria de encontrar um grupo esquerdista equivalente ao MBL para derrubar. Esse grupo existe? Quantos sites ou páginas teriam de cair para justificar a derrubada dos perfis ligados ao MBL? As informações disponibilizadas pelo Facebook sobre o banimento não parecem o bastante para solucionar as dúvidas que pairam no ar. Os banidos não merecem nenhum esclarecimento? Esse procedimento poderia melhorar?

As plataformas de debate virtual merecem crédito por tentar lidar com um problema que parece imenso, mas as tentativas de resolvê-lo já criaram tensões que sugerem problemas ainda maiores. Sem debate, não há possibilidade de entendimento. E o requisito mínimo para o debate é que as ideias circulem. Nem todo mundo saberá manuseá-las da melhor forma e há risco envolvido nisso, mas silenciar um ator ruim não vai fazê-lo desaparecer — e ele pode ter algo relevante a dizer em algum momento. A melhor forma de lidar com uma potencial mentira é permitir que ela seja dita, para que possa ser desmentida publicamente ou confrontada judicialmente. O mesmo vale para as fake news, seja lá o que forem.

Como Shakespeare explica a política contemporânea

O período entreguerras virou referência frequente na análise política contemporânea. Depois da crise de 1929, o mundo se viu às voltas com uma onda de nacionalismos, protecionismos, fascismos e totalitarismos. O paralelo com o presente é irresistível. Há uma década, liberdades individuais e direitos civis recuam pelo planeta, em escala inédita desde o final da Segunda Guerra Mundial. É tentador enxergar um novo Stálin, Hitler ou Mussolini em vilões de estimação — seja Maduro ou Duterte, Orbán ou Erdogan, Putin ou Trump. Tentador e simplificador. Se é verdade que o passado traz lições e armadilhas a evitar, nem tudo se repete. Cada país, cada personagem, cada democracia tem características próprias. A melhor compreensão do mundo atual não está necessariamente nos anos 1930, nem mesmo na história ou na ciência política. Está na literatura e, como já escrevi aqui, na obra do maior dos gênios literários, William Shakespeare.

Anna Kövecses
Como Shakespeare explica a política contemporânea? Eis o tema de Tyrant (Tirano), novo livro de Stephen Greenblatt, shakespeariano-mor da Universidade Harvard. “Minha mulher e meu filho, ouvindo na mesa de jantar minhas reflexões sobre a relevância inquietante de Shakespeare para a política de hoje, insistiram que eu fosse atrás do tema”, diz ele. “Foi o que fiz.” Greenblatt investiga na dramaturgia política aquilo que tanto nos amedronta: a mente dos tiranos, os mecanismos que permitem sua ascensão e o que — se algo — podemos fazer para evitá-la. Escrevendo sob a censura elisabetana, Shakespeare fez uma leitura oblíqua de sua era, mas dotada, ao mesmo tempo, de uma percepção aguda das mentiras, tramoias e ilusões que definem a política.

O maior de todos os tiranos de Shakespeare é o personagem-título de Ricardo III. Sua ascensão, narrada a partir da trilogia Henrique VI, deriva de um ambiente familiar ao leitor atual: uma sociedade polarizada, rachada ao meio pela Guerra das Rosas. “O objetivo é criar o caos, que preparará o palco à tomada do poder pelo tirano.” O futuro rei Ricardo designa um preposto para semear a cizânia e cevar o ressentimento entre os pobres. “Promete tornar a Inglaterra grande outra vez. Como fará isso? Ataca a educação. A elite educada traiu o povo.” Quer destruir não só os nobres, mas todos os que “leem livros”. Sua personalidade é constituída por um misto de “autoestima sem limites, desrespeito à lei, prazer em causar dor, desejo compulsivo de dominar”. “É patologicamente narcisista e soberbamente arrogante. Tem um sentido grotesco de direito adquirido, jamais duvidando de que pode fazer o que quiser. Espera lealdade absoluta, mas é incapaz de gratidão.” Para chegar ao poder, conta com todos ao redor: os ludibriados; os impotentes ou assustados; os que não acreditam que ele possa ser tão ruim; os que sabem quem ele é, mas preferem encará-lo como normal; os que simplesmente obedecem; e os mais sinistros, aqueles que julgam poder tirar proveito da tirania.

Grenblatt decifra as limitações dos tiranos noutras peças, como Rei Lear e Macbeth. “Shakespeare não acreditava que eles durassem muito. Por mais espertos que fossem, uma vez no poder se revelavam incompetentes.” Dá para evitar a tirania antes do estrago? Nem sempre. Em Júlio César, o assassinato não surte o efeito desejado. “A tentativa de evitar uma crise constitucional precipita o colapso do Estado. O próprio ato que deveria salvar a República acaba por destruí-la.” Mas não é impossível, revela outro exemplo trazido da Roma Antiga: Coriolano, trama em que entra em ação um paradoxo da democracia. “A cidade é protegida da tirania pelos tribunos, políticos de carreira que levam o povo à ação. Ignóbeis e interesseiros, semelhantes aos detestados políticos profissionais nos congressos e parlamentos democráticos, eles é que resistem ao guerreiro-valentão e insistem nos direitos dos cidadãos comuns.” Entre dois males, uma sociedade precisa saber escolher o menor.
Helio Gurovitz