sábado, 11 de fevereiro de 2023

Pensamento do Dia

 


Não se come dinheiro

Quando falo de humanidade não estou falando só Homo sapiens, me refiro a uma imensidão de seres que nós excluímos desde sempre: caçamos a baleia, tiramos barbatanas de tubarão, matamos leão e o penduramos na parede para mostrar que somos mais bravos que ele. Além da matança de todos os outros humanos que nós achamos que não tinham nada, que estavam aí só para nos suprir com roupa, comida, abrigo. Somos a praga do planeta, uma espécie de ameba gigante. Ao longo da história, os humanos, aliás, esse clube exclusivo da humanidade - que está na declaração universal dos direitos humanos e nos protocolos das instituições -, foram devastando tudo ao seu redor. É como se tivessem elegido uma casta, a humanidade, e todos que estão fora dela são as sub-humanidades. Não são só os caiçaras, quilombolas e povos indígenas, mas toda vida que deliberadamente largamos à margem do caminho. E o caminho é o progresso: essa ideia prospectiva de que estamos indo para algum lugar. Há um horizonte, estamos indo para lá, e vamos largando no percurso tudo o que não interessa, o que sobra, a sub-humanidade - alguns de nós fazemos parte dela.


É incrível que esse vírus que está aí agora esteja atingindo só as pessoas. Foi uma manobra fantástica do organismo da Terra dizer: "Respirem agora, eu quero ver." Estamos sendo lembrados de que somos tão vulneráveis que, se cortarem nosso ar por alguns minutos, nós morremos. Não é preciso nenhum sistema bélico complexo para apagar essa tal humanidade: se extingue com a mesma facilidade que os mosquitos de uma sala depois de aplicado um aerossol. Nós não estamos com nada: essa é a declaração da Terra.

E, se nós não estamos com nada, deveríamos ter contato com a experiência de estar vivos para além dos aparatos tecnológicos que podemos inventar. A ideia da economia, por exemplo, essa coisa invisível a não ser por aquele emblema de cifrão. Pode ser uma ficção afirmar que se a economia não estiver funcionando plenamente nós morremos. Nós poderíamos colocar todos os dirigentes do banco central em um cofre gigante e deixá-los vivendo lá, qual economia deles. Ninguém come dinheiro.

Hoje de manhã eu vi um indígena norte-americano do conselho dos anciãos do povo lakota falar sobre o coronavírus. É um homem de uns setenta e poucos anos chamado Wakya Um Manee, também conhecido como Vernon Foster. (Vernon, que é um típico nome americano, pois quando os colonos chegaram na América, além de proibirem as línguas nativas, mudavam os nomes das pessoas.) Pois, repetindo as palavras de um ancestral, ele dizia: "quando o último peixe estiver nas águas e a última árvore for removida da Terra, só então o homem perceberá que ele não é capaz de comer seu dinheiro".
Ailton Krenak, "A vida não é útil"

Que memória da escravidão queremos?

Ao assumir a presidência do Banco Nacional de Desenvolvimento (BNDES) no última segunda-feira , Aloízio Mercadante, se comprometeu, junto com a ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco, a criar o Museu da Escravidão, como parte do projeto Cais do Valongo, no Rio de Janeiro.

Para quem não sabe – porque a história brasileira ainda é contada para que não tenhamos acesso a esse tipo de informação –, o Cais do Valongo fez parte de um complexo escravagista que recebeu mais de 1 milhão de africanos sequestrados em suas terras natais e vendidos como escravizados. Essa é uma cifra impressionante. O tráfico transatlântico de africanos escravizados fez com que pouco mais de 12 milhões de homens, mulheres e crianças oriundas de diferentes partes da África desembarcassem nas Américas entre o início do século 16 e meados do século 19. Sendo assim, quase um décimo desses africanos escravizados teve o Valongo como porta de entrada para a América escravista.

Não por acaso, o Valongo foi o maior porto de desembarque de africanos escravizados em todo o Atlântico. Um porto que, vale dizer, estava situado naquela que se tornou a maior cidade escravista das Américas: o Rio de Janeiro – cidade-chave da história brasileira, tendo sido vice-reino colonial (1763-1808), Corte do Império português (1808-1822), Corte do Império do Brasil (1822-1889) e Capital Federal (1889-1960).


A escravidão foi uma instituição que estruturou a história brasileira por aproximadamente 350 anos, e cujas sequelas são sentidas até os dias de hoje. E o peso dessa escravidão esteve intimamente ligado com as escolhas políticas feitas pelos homens que comandaram esse território. No período colonial, boa parte desses homens eram portugueses. Mas, a partir de 1822, a escravidão se tornou uma questão de soberania nacional, uma escolha deliberada da imensa maioria das elites brasileiras. Não é de estranhar portanto, que a sede do poder político brasileiro também fosse um cartão-postal escravista.

Sendo assim, a construção de um Museu que trate da história da escravidão no Brasil na região do Valongo não pode ser apenas uma obra bem-intencionada. Essa é uma escolha que só faz sentido caso o governo federal reconheça a responsabilidade histórica que o Estado brasileiro teve na manutenção da escravidão até o ano de 1888, e na marginalização sistemática da população negra a partir da Proclamação da Abolição. Espero, realmente, que haja uma intenção de reparação histórica nessa decisão – que além de acertada, é mais que urgente.

No entanto, é preciso ser cuidadoso e atento para escolher as memórias da escravidão no Brasil. Por décadas, os livros didáticos brasileiros retrataram a população escravizada ora como "coisa" (um bem semovente), ora como saco de pancada das forças públicas e privadas do Brasil. Não restam dúvidas de que a escravidão foi uma instituição baseada na violência física, psicológica, e simbólica aplicada contra os africanos escravizados e seus descendentes. Uma violência aplicada em nome da exploração sistemática do trabalho desses homens e mulheres, mas uma violência que também justificou caprichos e perversidades dos senhores de escravizados.

Mas também estamos falando de milhões de pessoas que viveram na condição da escravidão e que foram os responsáveis diretos pela construção material do Brasil, e pela construção de boa parte daquilo que entendemos como sendo "tipicamente" brasileiro. A escravidão brasileira não se resume às litogravuras de Jean Debret, ela também abarca a trajetória de milhares de homens e mulheres negros (africanos e nascidos no Brasil), que inventaram novos sentidos de liberdade, novas formas de fazer política (muito interessantes e eficazes, vale dizer).

Não podemos reduzir a experiência negra no Brasil à escravidão. Mas também não podemos diminuir o papel que o escravismo teve na organização da estrutura racista e desigual que alicerça a sociedade brasileira ainda hoje, sobretudo no que diz respeito aos privilégios econômicos usufruídos pela elite branca.

É fundamental encontrar um equilíbrio fino entre rememorar a força da escravidão e trazer para a superfície as memórias das lutas e experiências de liberdade negra. A primeira boa notícia é que o Brasil possui uma das mais qualificadas histografias nessa área, que há décadas demonstra as complexidades que marcaram o passado escravista e as múltiplas ações negras contra a escravidão e também contra as formas mais recentes de marginalização e exclusão.

A segunda boa notícia – excelente, eu diria – é que no forjar dessa brasilidade, a população negra também encontrou outras formas de contar suas histórias. Exemplo disso, é que se não fosse a tradição oral resguardada por movimentos sociais negros (como os quilombos urbanos, associações recreativas e comunidades de terreiro), é provável que a história do Valongo continuasse enterrada. Foi a população negra da região da Saúde e Gamboa que passou, de geração para geração, as histórias daquela região, muito antes da escavação arqueológica feita por ocasião da reforma do Porto Maravilha para os Jogos Olímpicos do Rio, em 2016.

Escolher as memórias é também escolher quem vai contá-las.

Carreira política de Bolsonaro está chegando ao fim

No entorno de Bolsonaro, nos Estados Unidos, onde ele se refugia, ou aqui, dá-se cada vez mais como certo que o Tribunal Superior Eleitoral o tornará inelegível até final de maio próximo. O próprio Bolsonaro já admite isso em conversas com aliados de confiança.

O cerco sobre ele só faz se estreitar. Ministros do Supremo Tribunal Federal determinaram o envio de pelo menos 10 pedidos de investigação contra Bolsonaro para a primeira instância da Justiça, uma vez que ele perdeu o foro especial ao deixar o cargo.

Lula só pôde ser condenado e preso pelo então juiz Sérgio Moro porque perdera o foro especial. O ex-presidente Michel Temer, ao fim do seu mandato, foi preso por um juiz da primeira instância. Ficou poucos dias em prisão especial no Rio de Janeiro.

Bolsonaro sabe que correrá esse risco a partir de agora. Como evitá-lo? Não voltando. Mas sabe que será intimado a depor, e se não o fizer, o Brasil poderá pedir sua extradição. Situação complicada a dele. Bolsonaro responde a mais de 100 processos.


São processos já em curso, e não pedidos de investigação. Bolsonaro é réu no Supremo Tribunal Federal por injúria e apologia ao estupro. Quando deputado, ele disse que Maria do Rosário (PT-RS) não merecia ser estuprada porque era feia.

É alvo de ação de improbidade administrativa por ter empregado em seu gabinete na Câmara dos Deputados a ex-secretária Wal do Açaí, funcionária fantasma. Entre 2003 e 2018, Wal nunca pôs os pés em Brasília, sequer para assinar o ponto.

O que mais o preocupa, porém, são os processos sob a guarda do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo, sobre atos contra a democracia que incluem a tentativa fracassada de golpe do 8 de janeiro. Esses não descerão para a primeira instância.

É com base nesses que sua inelegibilidade poderá ser decretada. Se for, adeus carreira política. Para quem era tratado na Câmara como deputado do baixo clero, até que ele foi longe demais. Vá cuidar da filha Laura, de 11 anos, e recompor-se com Michelle.