sábado, 11 de fevereiro de 2023

Que memória da escravidão queremos?

Ao assumir a presidência do Banco Nacional de Desenvolvimento (BNDES) no última segunda-feira , Aloízio Mercadante, se comprometeu, junto com a ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco, a criar o Museu da Escravidão, como parte do projeto Cais do Valongo, no Rio de Janeiro.

Para quem não sabe – porque a história brasileira ainda é contada para que não tenhamos acesso a esse tipo de informação –, o Cais do Valongo fez parte de um complexo escravagista que recebeu mais de 1 milhão de africanos sequestrados em suas terras natais e vendidos como escravizados. Essa é uma cifra impressionante. O tráfico transatlântico de africanos escravizados fez com que pouco mais de 12 milhões de homens, mulheres e crianças oriundas de diferentes partes da África desembarcassem nas Américas entre o início do século 16 e meados do século 19. Sendo assim, quase um décimo desses africanos escravizados teve o Valongo como porta de entrada para a América escravista.

Não por acaso, o Valongo foi o maior porto de desembarque de africanos escravizados em todo o Atlântico. Um porto que, vale dizer, estava situado naquela que se tornou a maior cidade escravista das Américas: o Rio de Janeiro – cidade-chave da história brasileira, tendo sido vice-reino colonial (1763-1808), Corte do Império português (1808-1822), Corte do Império do Brasil (1822-1889) e Capital Federal (1889-1960).


A escravidão foi uma instituição que estruturou a história brasileira por aproximadamente 350 anos, e cujas sequelas são sentidas até os dias de hoje. E o peso dessa escravidão esteve intimamente ligado com as escolhas políticas feitas pelos homens que comandaram esse território. No período colonial, boa parte desses homens eram portugueses. Mas, a partir de 1822, a escravidão se tornou uma questão de soberania nacional, uma escolha deliberada da imensa maioria das elites brasileiras. Não é de estranhar portanto, que a sede do poder político brasileiro também fosse um cartão-postal escravista.

Sendo assim, a construção de um Museu que trate da história da escravidão no Brasil na região do Valongo não pode ser apenas uma obra bem-intencionada. Essa é uma escolha que só faz sentido caso o governo federal reconheça a responsabilidade histórica que o Estado brasileiro teve na manutenção da escravidão até o ano de 1888, e na marginalização sistemática da população negra a partir da Proclamação da Abolição. Espero, realmente, que haja uma intenção de reparação histórica nessa decisão – que além de acertada, é mais que urgente.

No entanto, é preciso ser cuidadoso e atento para escolher as memórias da escravidão no Brasil. Por décadas, os livros didáticos brasileiros retrataram a população escravizada ora como "coisa" (um bem semovente), ora como saco de pancada das forças públicas e privadas do Brasil. Não restam dúvidas de que a escravidão foi uma instituição baseada na violência física, psicológica, e simbólica aplicada contra os africanos escravizados e seus descendentes. Uma violência aplicada em nome da exploração sistemática do trabalho desses homens e mulheres, mas uma violência que também justificou caprichos e perversidades dos senhores de escravizados.

Mas também estamos falando de milhões de pessoas que viveram na condição da escravidão e que foram os responsáveis diretos pela construção material do Brasil, e pela construção de boa parte daquilo que entendemos como sendo "tipicamente" brasileiro. A escravidão brasileira não se resume às litogravuras de Jean Debret, ela também abarca a trajetória de milhares de homens e mulheres negros (africanos e nascidos no Brasil), que inventaram novos sentidos de liberdade, novas formas de fazer política (muito interessantes e eficazes, vale dizer).

Não podemos reduzir a experiência negra no Brasil à escravidão. Mas também não podemos diminuir o papel que o escravismo teve na organização da estrutura racista e desigual que alicerça a sociedade brasileira ainda hoje, sobretudo no que diz respeito aos privilégios econômicos usufruídos pela elite branca.

É fundamental encontrar um equilíbrio fino entre rememorar a força da escravidão e trazer para a superfície as memórias das lutas e experiências de liberdade negra. A primeira boa notícia é que o Brasil possui uma das mais qualificadas histografias nessa área, que há décadas demonstra as complexidades que marcaram o passado escravista e as múltiplas ações negras contra a escravidão e também contra as formas mais recentes de marginalização e exclusão.

A segunda boa notícia – excelente, eu diria – é que no forjar dessa brasilidade, a população negra também encontrou outras formas de contar suas histórias. Exemplo disso, é que se não fosse a tradição oral resguardada por movimentos sociais negros (como os quilombos urbanos, associações recreativas e comunidades de terreiro), é provável que a história do Valongo continuasse enterrada. Foi a população negra da região da Saúde e Gamboa que passou, de geração para geração, as histórias daquela região, muito antes da escavação arqueológica feita por ocasião da reforma do Porto Maravilha para os Jogos Olímpicos do Rio, em 2016.

Escolher as memórias é também escolher quem vai contá-las.

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