quarta-feira, 2 de março de 2022
Guerra, para que serve isso?
O milagre ucraniano poderá durar pouco. A tentativa de Vladimir Putin de vencer rapidamente, numa boa, tomando grandes cidades com forças relativamente brandas, enfrentou grande resistência, mas os tanques e as armas mais pesadas estão a caminho. E apesar do incrível heroísmo do povo da Ucrânia, o mais provável ainda é que a bandeira russa seja eventualmente hasteada em meio aos escombros de Kiev e Kharkiv.
Mas mesmo se isso acontecer, a Federação Russa ficará mais fraca e mais pobre do que era antes da invasão. Conquistar não compensa.
Por que não? Se olharmos para a história, veremos muitos exemplos de países que enriqueceram por meio do poderio militar. Os romanos certamente lucraram com a conquista do mundo helênico, assim como a Espanha com a conquista dos astecas e dos incas.
Mas o mundo moderno é diferente — e por “moderno" quero dizer pelo menos a partir de um século e meio atrás.
O autor britânico Norman Angell publicou seu famoso tratado “A grande ilusão” em 1909 argumentando que a guerra se tornara obsoleta. Seu livro foi amplamente mal interpretado, como se afirmasse que a guerra não poderia mais acontecer, hipótese que se provou horrivelmente equivocada nas duas gerações que se seguiram. Mas o que Angell afirmou, na verdade, foi que os vencedores de uma guerra não seriam mais capazes de obter nenhum lucro de seu sucesso.
E ele certamente estava correto sobre isso. Todos agradecemos pelos Aliados terem prevalecido na 2.ª Guerra, mas o Reino Unido emergiu como uma potência diminuída, sofrendo em meio a anos de austeridade enquanto lutava contra escassez de divisas estrangeiras. Até mesmo os Estados Unidos tiveram um ajuste pós-guerra mais difícil do que muitos se dão conta, experimentando um período de aumentos de preços que ocasionaram inflação acima de 20%.
E pelo outro lado, mesmo a derrota absoluta não evitou que Alemanha e Japão eventualmente alcançassem prosperidades sem precedentes.
Por que e quando a conquista deixou de ser rentável? Angell argumentou que tudo mudou com a ascensão de uma “interdependência vital” entre as nações, “cortando transversalmente fronteiras internacionais”, o que ele sugeriu ser “amplamente obra dos últimos 40 anos” — começando ao redor de 1870. Pareceu um palpite razoável: foi por volta de 1870 que ferrovias, barcos a vapor e telégrafos tornaram possível a criação do que alguns economistas qualificam como a primeira economia global.
Nessa economia global é difícil conquistar outro país sem extirpar esse país — e a si mesmo — da divisão internacional do trabalho, sem mencionar o sistema financeiro internacional, sob um grande custo. Podemos ver essa dinâmica ocorrendo em relação à Rússia neste momento.
Angell também enfatizou os limites do embargo numa economia moderna. Não podemos simplesmente confiscar ativos industriais da maneira que conquistadores pré-industriais confiscavam território, porque confiscos arbitrários destroem incentivos e o senso de segurança de que sociedades avançadas precisam para permanecer produtivas. Novamente, a história comprovou sua análise. Por um certo período, a Alemanha nazista ocupou países que possuíam antes da guerra produtos internos brutos duas vezes maiores que o seu — mas apesar da implacável exploração, os territórios ocupados parecem ter pagado por apenas cerca de 30% do esforço de guerra alemão, em parte porque muitas das economias que a Alemanha tentou explorar ruíram sob seu jugo.
Um aparte: Não é excepcional e terrível nos encontrarmos numa situação em que os fracassos econômicos de Hitler nos dão lições úteis sobre prospectos futuros? Mas aí estamos. Obrigado, Putin.
Eu acrescentaria outros dois fatores para explicar por que conquistar é inútil.
O primeiro é que a guerra moderna usa uma incrível quantidade de recursos. Exércitos pré-modernos dispunham de quantidades limitadas de munição e eram capazes, em certo grau, de viver da terra. Em 1864, as tropas do general no Exército da União William Tecumseh Sherman conseguiram se desligar de suas linhas de abastecimento e marchar sobre a Geórgia supridas com mantimentos suficientes apenas para 20 dias. Mas exércitos modernos requerem grandes quantidades de munição, peças de reposição e, acima de tudo, combustível para seus veículos. E de fato, as mais recentes informações de inteligência do Ministério da Defesa britânico dão conta de que o avanço russo na direção de Kiev empacou temporariamente “provavelmente como resultado de contínuas dificuldades logísticas”. O que isso significa para pretensos conquistadores é que a conquista, mesmo se bem-sucedida, é extremamente cara, o que torna mais difícil ainda que se pague.
O segundo é que vivemos atualmente num mundo de nacionalismos apaixonados. Camponeses da Antiguidade e da Idade Média provavelmente eram indiferentes em relação a quem os explorasse; trabalhadores modernos não são. A tentativa de Putin de tomar a Ucrânia parece ser fundamentada não apenas em sua crença de que a nação ucraniana não existe, mas também na presunção de que os próprios ucranianos podem ser persuadidos a se considerar russos. Parece muito improvável isso acontecer, então mesmo se Kiev e outras grandes cidades caírem, a Rússia levará anos tentando conter uma população hostil.
Portanto, a conquista é uma proposta fracassada. Isso é verdadeiro pelo menos há um século e meio; isso é óbvio para qualquer um disposto a analisar os fatos ocorridos por mais de um século. Desafortunadamente, ainda existem doidos e fanáticos que se recusam a acreditar nisso — e alguns deles controlam nações e exércitos.
Mas mesmo se isso acontecer, a Federação Russa ficará mais fraca e mais pobre do que era antes da invasão. Conquistar não compensa.
Por que não? Se olharmos para a história, veremos muitos exemplos de países que enriqueceram por meio do poderio militar. Os romanos certamente lucraram com a conquista do mundo helênico, assim como a Espanha com a conquista dos astecas e dos incas.
Mas o mundo moderno é diferente — e por “moderno" quero dizer pelo menos a partir de um século e meio atrás.
O autor britânico Norman Angell publicou seu famoso tratado “A grande ilusão” em 1909 argumentando que a guerra se tornara obsoleta. Seu livro foi amplamente mal interpretado, como se afirmasse que a guerra não poderia mais acontecer, hipótese que se provou horrivelmente equivocada nas duas gerações que se seguiram. Mas o que Angell afirmou, na verdade, foi que os vencedores de uma guerra não seriam mais capazes de obter nenhum lucro de seu sucesso.
E ele certamente estava correto sobre isso. Todos agradecemos pelos Aliados terem prevalecido na 2.ª Guerra, mas o Reino Unido emergiu como uma potência diminuída, sofrendo em meio a anos de austeridade enquanto lutava contra escassez de divisas estrangeiras. Até mesmo os Estados Unidos tiveram um ajuste pós-guerra mais difícil do que muitos se dão conta, experimentando um período de aumentos de preços que ocasionaram inflação acima de 20%.
E pelo outro lado, mesmo a derrota absoluta não evitou que Alemanha e Japão eventualmente alcançassem prosperidades sem precedentes.
Por que e quando a conquista deixou de ser rentável? Angell argumentou que tudo mudou com a ascensão de uma “interdependência vital” entre as nações, “cortando transversalmente fronteiras internacionais”, o que ele sugeriu ser “amplamente obra dos últimos 40 anos” — começando ao redor de 1870. Pareceu um palpite razoável: foi por volta de 1870 que ferrovias, barcos a vapor e telégrafos tornaram possível a criação do que alguns economistas qualificam como a primeira economia global.
Nessa economia global é difícil conquistar outro país sem extirpar esse país — e a si mesmo — da divisão internacional do trabalho, sem mencionar o sistema financeiro internacional, sob um grande custo. Podemos ver essa dinâmica ocorrendo em relação à Rússia neste momento.
Angell também enfatizou os limites do embargo numa economia moderna. Não podemos simplesmente confiscar ativos industriais da maneira que conquistadores pré-industriais confiscavam território, porque confiscos arbitrários destroem incentivos e o senso de segurança de que sociedades avançadas precisam para permanecer produtivas. Novamente, a história comprovou sua análise. Por um certo período, a Alemanha nazista ocupou países que possuíam antes da guerra produtos internos brutos duas vezes maiores que o seu — mas apesar da implacável exploração, os territórios ocupados parecem ter pagado por apenas cerca de 30% do esforço de guerra alemão, em parte porque muitas das economias que a Alemanha tentou explorar ruíram sob seu jugo.
Um aparte: Não é excepcional e terrível nos encontrarmos numa situação em que os fracassos econômicos de Hitler nos dão lições úteis sobre prospectos futuros? Mas aí estamos. Obrigado, Putin.
Eu acrescentaria outros dois fatores para explicar por que conquistar é inútil.
O primeiro é que a guerra moderna usa uma incrível quantidade de recursos. Exércitos pré-modernos dispunham de quantidades limitadas de munição e eram capazes, em certo grau, de viver da terra. Em 1864, as tropas do general no Exército da União William Tecumseh Sherman conseguiram se desligar de suas linhas de abastecimento e marchar sobre a Geórgia supridas com mantimentos suficientes apenas para 20 dias. Mas exércitos modernos requerem grandes quantidades de munição, peças de reposição e, acima de tudo, combustível para seus veículos. E de fato, as mais recentes informações de inteligência do Ministério da Defesa britânico dão conta de que o avanço russo na direção de Kiev empacou temporariamente “provavelmente como resultado de contínuas dificuldades logísticas”. O que isso significa para pretensos conquistadores é que a conquista, mesmo se bem-sucedida, é extremamente cara, o que torna mais difícil ainda que se pague.
O segundo é que vivemos atualmente num mundo de nacionalismos apaixonados. Camponeses da Antiguidade e da Idade Média provavelmente eram indiferentes em relação a quem os explorasse; trabalhadores modernos não são. A tentativa de Putin de tomar a Ucrânia parece ser fundamentada não apenas em sua crença de que a nação ucraniana não existe, mas também na presunção de que os próprios ucranianos podem ser persuadidos a se considerar russos. Parece muito improvável isso acontecer, então mesmo se Kiev e outras grandes cidades caírem, a Rússia levará anos tentando conter uma população hostil.
Portanto, a conquista é uma proposta fracassada. Isso é verdadeiro pelo menos há um século e meio; isso é óbvio para qualquer um disposto a analisar os fatos ocorridos por mais de um século. Desafortunadamente, ainda existem doidos e fanáticos que se recusam a acreditar nisso — e alguns deles controlam nações e exércitos.
Cinzas sem fogo e guerra
Tenho uma memória nítida do meu primeiro carnaval. Dele, há uma velha foto dos anos 1940. Anos em que vivíamos em Maceió, Alagoas, e meu pai, sério e com mapas da Europa na mesa, ouvia pelo rádio os avanços das tropas aliadas derrotando Hitler. Mas hoje, com cinzas na cabeça, descubro que o “imperialismo” não é monopólio dos “ianques capitalistas” — lembram o “ianque, go home”? —, mas pertence também a uma Rússia putinista-comunista.
Na memória, a guerra e a invasão na Europa — as cinzas que abusadamente nos envolvem como um símbolo tenebroso do fim. Na fotografia, o testemunho do mel, que, como aprendi com Lévi-Strauss, contém o doce tão aguçado que se confunde com o fogo. O fogo dos “lábios de mel” da namorada sinalizadora da vida.
Na foto, estamos, meus irmãos e eu, fantasiados de pierrô, personagem clássico da commedia dell’arte. A julgar pelas nossas carinhas cinzentas, éramos a própria imagem do infeliz namorado da Colombina, que se apaixona pelo risonho e meloso Arlequim. Nossa “fantasia” de cetim preto — ornada com pompons brancos e encimada por um chapéu cônico usado quando antigamente as crianças eram castigadas —completa esse momento cinzento do meu primeiro carnaval.
Depois de “grande”, tive a liberdade não falada, mas costumeira, de ver e escrever sobre o carnaval como o ritual da liberdade igualitária e libertina própria de um sistema fortemente marcado por hierarquias e preconceitos.
Deixei de me fantasiar, exceto quando, nos anos 1950, me vesti de “marinheiro”, instado pelo meu amigo Celso, de saudosa memória. Hoje, lembro-me bem de como imaginamos ser figuras que as festas de carnaval convocavam: ao lado do pirata da perna de pau, do caubói de cinema e do marinheiro ancorado pelos preconceitos de sua família, rua, bairro, cor e classe social.
A partir disso, encontrei o famoso mel carnavalesco que Lévi-Strauss contrasta com o tabaco, trazido para o Novo Mundo pelo Velho. Do fumo, que pratiquei igualmente com afinco, imitando o cinema do meu tempo, só restam cinzas. Cinzas requentadas e venenosas que suspendem ou disciplinam aquela festa imaginada como não tendo regras, em que “você podia fazer tudo”.
Mudando de plano e passando dos meninos fantasiados para o idoso que hoje sou, creio que entendo bem esse momesco comando segundo o qual “no carnaval, você pode fazer tudo!”. Eu mesmo disse isso num seminário em Harvard sobre rituais, em que meu mentor, Richard Moneygrand, ficou aturdido.
Se todo ritual tem regras mais explícitas que o cotidiano e, por isso mesmo, é um momento especial, como ter uma festa em que tudo se pode fazer, exceto se pensarmos numa sociedade onde poucos podem tudo ou muito? E fazem de modo sorrateiro, porque o mundo fora da festa é regido por regras muitos sérias e duras sobre o que se pode fazer. Exceto, é claro, os que tudo podem. Essa ainda é nossa questão, pois todo limite significa um centro, um outro ponto de vista, uma quaresma entre a natividade, a morte e o renascimento, entre corrupção e punição.
Numa guerra há essa mesma regra. Nela, o agressor pode tudo, e seu etnocentrismo, transformado em radical nacionalismo, legitima a brutalidade. Neste sentido, o carnaval é uma guerra ao contrário. E, na quaresma que começa nesta “Quarta de Cinzas”, testemunhamos ao vivo e em cores o brutal assalto russo à Ucrânia. A quaresma, sabem os católicos, é um momento de contenção porque passa pelo Cristo Crucificado e por sua ressurreição. Mas, nesses 40 dias, sofreremos uma dupla frustração. Além de um segundo carnaval perdido pela pandemia, que nos trouxe tantas cinzas, teremos de confiar no mel de nossas esperanças, cujo final, diferentemente do carnaval, é tão imprevisível quanto as cinzas da morte.
Na memória, a guerra e a invasão na Europa — as cinzas que abusadamente nos envolvem como um símbolo tenebroso do fim. Na fotografia, o testemunho do mel, que, como aprendi com Lévi-Strauss, contém o doce tão aguçado que se confunde com o fogo. O fogo dos “lábios de mel” da namorada sinalizadora da vida.
Na foto, estamos, meus irmãos e eu, fantasiados de pierrô, personagem clássico da commedia dell’arte. A julgar pelas nossas carinhas cinzentas, éramos a própria imagem do infeliz namorado da Colombina, que se apaixona pelo risonho e meloso Arlequim. Nossa “fantasia” de cetim preto — ornada com pompons brancos e encimada por um chapéu cônico usado quando antigamente as crianças eram castigadas —completa esse momento cinzento do meu primeiro carnaval.
Depois de “grande”, tive a liberdade não falada, mas costumeira, de ver e escrever sobre o carnaval como o ritual da liberdade igualitária e libertina própria de um sistema fortemente marcado por hierarquias e preconceitos.
Deixei de me fantasiar, exceto quando, nos anos 1950, me vesti de “marinheiro”, instado pelo meu amigo Celso, de saudosa memória. Hoje, lembro-me bem de como imaginamos ser figuras que as festas de carnaval convocavam: ao lado do pirata da perna de pau, do caubói de cinema e do marinheiro ancorado pelos preconceitos de sua família, rua, bairro, cor e classe social.
A partir disso, encontrei o famoso mel carnavalesco que Lévi-Strauss contrasta com o tabaco, trazido para o Novo Mundo pelo Velho. Do fumo, que pratiquei igualmente com afinco, imitando o cinema do meu tempo, só restam cinzas. Cinzas requentadas e venenosas que suspendem ou disciplinam aquela festa imaginada como não tendo regras, em que “você podia fazer tudo”.
Mudando de plano e passando dos meninos fantasiados para o idoso que hoje sou, creio que entendo bem esse momesco comando segundo o qual “no carnaval, você pode fazer tudo!”. Eu mesmo disse isso num seminário em Harvard sobre rituais, em que meu mentor, Richard Moneygrand, ficou aturdido.
Se todo ritual tem regras mais explícitas que o cotidiano e, por isso mesmo, é um momento especial, como ter uma festa em que tudo se pode fazer, exceto se pensarmos numa sociedade onde poucos podem tudo ou muito? E fazem de modo sorrateiro, porque o mundo fora da festa é regido por regras muitos sérias e duras sobre o que se pode fazer. Exceto, é claro, os que tudo podem. Essa ainda é nossa questão, pois todo limite significa um centro, um outro ponto de vista, uma quaresma entre a natividade, a morte e o renascimento, entre corrupção e punição.
Numa guerra há essa mesma regra. Nela, o agressor pode tudo, e seu etnocentrismo, transformado em radical nacionalismo, legitima a brutalidade. Neste sentido, o carnaval é uma guerra ao contrário. E, na quaresma que começa nesta “Quarta de Cinzas”, testemunhamos ao vivo e em cores o brutal assalto russo à Ucrânia. A quaresma, sabem os católicos, é um momento de contenção porque passa pelo Cristo Crucificado e por sua ressurreição. Mas, nesses 40 dias, sofreremos uma dupla frustração. Além de um segundo carnaval perdido pela pandemia, que nos trouxe tantas cinzas, teremos de confiar no mel de nossas esperanças, cujo final, diferentemente do carnaval, é tão imprevisível quanto as cinzas da morte.
Vícios privados, malefícios públicos
É preciso reverter a perda de bem-estar social derivada da captura do Estado por verdadeiros caçadores do erário. É hora de escancarar os custos das políticas públicas, para que a sociedade possa colocar na balança e comparar, por exemplo, uma isenção fiscal para um grupo de empresas ao pagamento de uma transferência social. Surrada, mas inescapável, a palavra chave é transparência. E, a partir dela, ações de governo para rever gastos ruins e abrir espaço para o que importa.
A ideia de que a ação autocentrada pode levar ao progresso econômico tem quase dois séculos e meio. É a lógica da “mão invisível”, de Adam Smith, segundo a qual as forças da oferta e da procura seriam vetores suficientes para o funcionamento da economia, mesmo na presença do egoísmo, digamos assim. O bom funcionamento dos mercados é, de fato, a base para estimular a atividade produtiva, que gera emprego e renda.
Mas há uma condição: a existência de leis, regras e regulamentações da vida em sociedade e da economia. É o papel do Estado e da atividade política. Quando falham, quando a aplicação das leis é torta, lenta ou desigual e, sobretudo, quando a mobilização e a ação de certos grupos distorcem a alocação dos recursos públicos, então o bem-estar social diminui.
Atualmente, há um sem-número de benefícios tributários, regimes especiais, isenções fiscais e vantagens inscritas nos orçamentos públicos.
Isso inclui o pagamento de salários acima do teto constitucional remuneratório. O Estado mostrou, recentemente, que há contracheques, no Judiciário, de mais de R$ 440 mil mensais. O salário mínimo, hoje, está em R$ 1.212,00 e a renda média do brasileiro não passa de cerca de duas vezes esse valor.
A chamada Comissão do Extrateto, criada em 2016 pelo Senado Federal, produziu um bom projeto para resolver o problema. Ele foi aprovado, mas ainda tramita na Câmara dos Deputados. Essa força de setores do alto escalão do funcionalismo público relega a último plano a busca pelo interesse da coletividade. Prejudica, inclusive, a própria necessidade de valorização dentro do serviço público.
Em artigo para o Valor Econômico, em 16 de setembro de 2014 (Transparência e democracia), o economista Marcos Lisboa e eu escrevemos: “Mancur Olson, em A lógica da ação coletiva (1965), argumentou que a possibilidade de obter benefícios do Estado estimula a mobilização coletiva de grupos relativamente pequenos e homogêneos (...) A natureza difusa e pouco transparente dos custos dessas ações, no entanto, que recaem sobre o restante da sociedade, dificulta o debate democrático e a deliberação sobre o uso mais eficiente dos recursos públicos”.
Tal acesso privilegiado ao “poder” garante a perpetuação, por décadas, de programas ruins, além de ensejar a criação de outros. A apropriação de nacos do orçamento público ocorre na penumbra, onde todos os gatos são pardos. As crianças, as famílias pobres, os desempregados, a base do serviço público, os trabalhadores informais, os marginalizados e os seus interesses, que deveriam ser as prioridades de uma nação ainda tão desigual, são preteridos.
Quando não são preteridos, inserem-se no Orçamento, em geral, sem qualquer corte naqueles gastos de péssima qualidade. Aumentou-se, por exemplo, entre 2021 e 2022, o valor previsto para o Auxílio Brasil (sucessor do Bolsa Família), de cerca de R$ 35 bilhões para quase R$ 90 bilhões. Uma despesa nova necessária e legítima, a meu ver. Mas nem um centavo foi cortado em outras rubricas. Ainda, a despesa social serviu de desculpa para mudar o teto de gastos e abrir espaço para outras demandas não relacionadas ao social.
Para ter claro, não prego uma redução geral e irrestrita de gastos de pessoal e de políticas de incentivo à produção. Proponho, sim, transparência, para que a sociedade tenha conhecimento, por exemplo, de que os descontos autorizados no Imposto de Renda podem chegar a R$ 20 bilhões ao ano. Por que manter esse benefício para os ricos?
A Instituição Fiscal Independente (IFI) do Senado Federal, há mais de cinco anos, tem contribuído para aumentar a transparência. Seu papel, no entanto, limita-se a mostrar custos e alertar. Há um segundo desafio, a partir disso, que é introjetar, na prática de governo e no cotidiano da política, a dimensão da responsabilidade com o dinheiro público. A Revisão do Gasto, ou Spending Review, pode ajudar. Amplamente adotada no âmbito da OCDE, essa boa prática propõe-se justamente a questionar a “base orçamentária” existente.
Vale dizer, no caso dos servidores, que há realidades completamente distintas coexistindo. De um lado, os supersalários, que parecem intocáveis. De outro, os baixos salários dos professores da educação básica. Qualquer reforma administrativa deve começar por este ponto: a extinção de todos os privilégios. Sem isso, não terá legitimidade.
Os vícios destes grupos de interesse, esta caça ao tesouro, precisam ser combatidos com veemência. Caso contrário, a necessidade de novos gastos públicos – já imposta pela demografia, pela pobreza e pela desigualdade – terá de ser suprida com mais e mais carga tributária e dívida pública. É preciso espantar os caçadores de renda para longe da administração pública.
A ideia de que a ação autocentrada pode levar ao progresso econômico tem quase dois séculos e meio. É a lógica da “mão invisível”, de Adam Smith, segundo a qual as forças da oferta e da procura seriam vetores suficientes para o funcionamento da economia, mesmo na presença do egoísmo, digamos assim. O bom funcionamento dos mercados é, de fato, a base para estimular a atividade produtiva, que gera emprego e renda.
Mas há uma condição: a existência de leis, regras e regulamentações da vida em sociedade e da economia. É o papel do Estado e da atividade política. Quando falham, quando a aplicação das leis é torta, lenta ou desigual e, sobretudo, quando a mobilização e a ação de certos grupos distorcem a alocação dos recursos públicos, então o bem-estar social diminui.
Atualmente, há um sem-número de benefícios tributários, regimes especiais, isenções fiscais e vantagens inscritas nos orçamentos públicos.
Isso inclui o pagamento de salários acima do teto constitucional remuneratório. O Estado mostrou, recentemente, que há contracheques, no Judiciário, de mais de R$ 440 mil mensais. O salário mínimo, hoje, está em R$ 1.212,00 e a renda média do brasileiro não passa de cerca de duas vezes esse valor.
A chamada Comissão do Extrateto, criada em 2016 pelo Senado Federal, produziu um bom projeto para resolver o problema. Ele foi aprovado, mas ainda tramita na Câmara dos Deputados. Essa força de setores do alto escalão do funcionalismo público relega a último plano a busca pelo interesse da coletividade. Prejudica, inclusive, a própria necessidade de valorização dentro do serviço público.
Em artigo para o Valor Econômico, em 16 de setembro de 2014 (Transparência e democracia), o economista Marcos Lisboa e eu escrevemos: “Mancur Olson, em A lógica da ação coletiva (1965), argumentou que a possibilidade de obter benefícios do Estado estimula a mobilização coletiva de grupos relativamente pequenos e homogêneos (...) A natureza difusa e pouco transparente dos custos dessas ações, no entanto, que recaem sobre o restante da sociedade, dificulta o debate democrático e a deliberação sobre o uso mais eficiente dos recursos públicos”.
Tal acesso privilegiado ao “poder” garante a perpetuação, por décadas, de programas ruins, além de ensejar a criação de outros. A apropriação de nacos do orçamento público ocorre na penumbra, onde todos os gatos são pardos. As crianças, as famílias pobres, os desempregados, a base do serviço público, os trabalhadores informais, os marginalizados e os seus interesses, que deveriam ser as prioridades de uma nação ainda tão desigual, são preteridos.
Quando não são preteridos, inserem-se no Orçamento, em geral, sem qualquer corte naqueles gastos de péssima qualidade. Aumentou-se, por exemplo, entre 2021 e 2022, o valor previsto para o Auxílio Brasil (sucessor do Bolsa Família), de cerca de R$ 35 bilhões para quase R$ 90 bilhões. Uma despesa nova necessária e legítima, a meu ver. Mas nem um centavo foi cortado em outras rubricas. Ainda, a despesa social serviu de desculpa para mudar o teto de gastos e abrir espaço para outras demandas não relacionadas ao social.
Para ter claro, não prego uma redução geral e irrestrita de gastos de pessoal e de políticas de incentivo à produção. Proponho, sim, transparência, para que a sociedade tenha conhecimento, por exemplo, de que os descontos autorizados no Imposto de Renda podem chegar a R$ 20 bilhões ao ano. Por que manter esse benefício para os ricos?
A Instituição Fiscal Independente (IFI) do Senado Federal, há mais de cinco anos, tem contribuído para aumentar a transparência. Seu papel, no entanto, limita-se a mostrar custos e alertar. Há um segundo desafio, a partir disso, que é introjetar, na prática de governo e no cotidiano da política, a dimensão da responsabilidade com o dinheiro público. A Revisão do Gasto, ou Spending Review, pode ajudar. Amplamente adotada no âmbito da OCDE, essa boa prática propõe-se justamente a questionar a “base orçamentária” existente.
Vale dizer, no caso dos servidores, que há realidades completamente distintas coexistindo. De um lado, os supersalários, que parecem intocáveis. De outro, os baixos salários dos professores da educação básica. Qualquer reforma administrativa deve começar por este ponto: a extinção de todos os privilégios. Sem isso, não terá legitimidade.
Os vícios destes grupos de interesse, esta caça ao tesouro, precisam ser combatidos com veemência. Caso contrário, a necessidade de novos gastos públicos – já imposta pela demografia, pela pobreza e pela desigualdade – terá de ser suprida com mais e mais carga tributária e dívida pública. É preciso espantar os caçadores de renda para longe da administração pública.
A distância entre eles
Num restaurante tradicional de Brasilia, as crianças riam divertidas. Pediam batatas fritas, sucos. Depois, o jantar, e, ao final, a sobremesa preferida. Nada lhes era negado. Os adultos, distraídos entre uma taça de vinho e uma dose de uísque, monitoravam o grupo ruidoso. Em nome de um pretenso sossego, permitiam até o desperdício.
De repente, o toque inesperado no ombro. O cumprimento sorridente e a realidade crua da desigualdade social. O contraste, a distância, surgiram implacáveis na forma daquele menino alto, magro, sorridente. Estava ali Kauã, que, muitas vezes, quando criança, vinha com sua mãe para o trabalho, e frequentava com os meus netos aquela mesa de restaurante.
Kauã oferecia rosas vermelhas, de mesa em mesa. Entrara no universo inclemente, perverso. Mais velho que os meninos, a vida o jogara na noite, não para se divertir. Para ganhar uns trocados.
Um soco no estomago.
Por sorte, aquele menino bonito não abandonara a escola. Não perdera o sorriso. Trabalha nos finais de semana. Continua parceiro da mãe, quer ajudá-la, e ter seu próprio dinheiro. O ângulo positivo da história não consola. Dói ainda mais. Adolescência perdida.Tantos passeios fizera com meus netos. Tamanha dissonância entre o que vive hoje Kauã e o que vivem os filhos do privilégio.
Há o que fazer por ele. A indicação de trabalho diurno, mais segurança para um menino de 16 anos. Há o que fazer sempre. E os outros Kauãs? Pequenos e grandes, crianças que nos abordam na noite? O que fazer por eles?
Fundamental não permitir que continuem invisíveis.
Kauã não é indigente. Mas a miséria assola o País, exige medidas urgentes. Levantamentos da FGV Social indicam que quase 28 milhões de pessoas vivem hoje abaixo da linha da pobreza no Brasil. Em 2019, antes da pandemia de Covid-19, eram pouco mais de 23 milhões brasileiros.
É vital um governo voltado para pobres e desvalidos É obrigatório e urgente que os miseráveis voltem a ter comida na mesa, e as crianças possam sonhar em viver e estudar à luz do dia.
Passa da hora de nos posicionarmos. Só um governo comprometido em combater a carestia e a ignorância poderá tirar das ruas crianças, jovens, sem teto, abandonados à própria sorte. Brasileiros abandonados que se multiplicam tomando calçadas de todas as cidades, morrendo de fome, de frio, de medo.
O Brasil pede socorro. É remota a possibilidade de reeleição de Bolsonaro, mas, acreditemos, não é impossível. Ou reagimos agora ou não teremos tempo de impedir um novo mandato ruinoso, catastrófico, devastador, multiplicando Kauãs cada vez mais sem esperança.
PS: A distância entre eles me remeteu a Thrity Umrigar, jornalista, professora e romancista de origem indiano-americana, autora, entre outros, de “A distância entre nós”. Na complexidade da Índia dividida pela extrema pobreza e a riqueza visível, Umrigar trata desses dois mundos, observando duas solidões – duas mulheres, Bhima, analfabeta, hindu de casta mais inferior, e sua patroa, Sera, viúva aristocrática parsi. Elas compartilham anos de intimidade. Todas as manhãs, Bhima deixa seu casebre de barro na favela miserável onde vive, para cozinhar e limpar a casa de Sera. Os diálogos valem o livro de Umrigar. Livro para não esquecer.
PS1: Não há mocinhos na Guerra da Rússia contra Ucrânia. A humanidade pagará a conta da insana e letal disputa entre Rússia, Estados Unidos, OTAN, e o resto do mundo.
De repente, o toque inesperado no ombro. O cumprimento sorridente e a realidade crua da desigualdade social. O contraste, a distância, surgiram implacáveis na forma daquele menino alto, magro, sorridente. Estava ali Kauã, que, muitas vezes, quando criança, vinha com sua mãe para o trabalho, e frequentava com os meus netos aquela mesa de restaurante.
Kauã oferecia rosas vermelhas, de mesa em mesa. Entrara no universo inclemente, perverso. Mais velho que os meninos, a vida o jogara na noite, não para se divertir. Para ganhar uns trocados.
Um soco no estomago.
Por sorte, aquele menino bonito não abandonara a escola. Não perdera o sorriso. Trabalha nos finais de semana. Continua parceiro da mãe, quer ajudá-la, e ter seu próprio dinheiro. O ângulo positivo da história não consola. Dói ainda mais. Adolescência perdida.Tantos passeios fizera com meus netos. Tamanha dissonância entre o que vive hoje Kauã e o que vivem os filhos do privilégio.
Há o que fazer por ele. A indicação de trabalho diurno, mais segurança para um menino de 16 anos. Há o que fazer sempre. E os outros Kauãs? Pequenos e grandes, crianças que nos abordam na noite? O que fazer por eles?
Fundamental não permitir que continuem invisíveis.
Kauã não é indigente. Mas a miséria assola o País, exige medidas urgentes. Levantamentos da FGV Social indicam que quase 28 milhões de pessoas vivem hoje abaixo da linha da pobreza no Brasil. Em 2019, antes da pandemia de Covid-19, eram pouco mais de 23 milhões brasileiros.
É vital um governo voltado para pobres e desvalidos É obrigatório e urgente que os miseráveis voltem a ter comida na mesa, e as crianças possam sonhar em viver e estudar à luz do dia.
Passa da hora de nos posicionarmos. Só um governo comprometido em combater a carestia e a ignorância poderá tirar das ruas crianças, jovens, sem teto, abandonados à própria sorte. Brasileiros abandonados que se multiplicam tomando calçadas de todas as cidades, morrendo de fome, de frio, de medo.
O Brasil pede socorro. É remota a possibilidade de reeleição de Bolsonaro, mas, acreditemos, não é impossível. Ou reagimos agora ou não teremos tempo de impedir um novo mandato ruinoso, catastrófico, devastador, multiplicando Kauãs cada vez mais sem esperança.
PS: A distância entre eles me remeteu a Thrity Umrigar, jornalista, professora e romancista de origem indiano-americana, autora, entre outros, de “A distância entre nós”. Na complexidade da Índia dividida pela extrema pobreza e a riqueza visível, Umrigar trata desses dois mundos, observando duas solidões – duas mulheres, Bhima, analfabeta, hindu de casta mais inferior, e sua patroa, Sera, viúva aristocrática parsi. Elas compartilham anos de intimidade. Todas as manhãs, Bhima deixa seu casebre de barro na favela miserável onde vive, para cozinhar e limpar a casa de Sera. Os diálogos valem o livro de Umrigar. Livro para não esquecer.
PS1: Não há mocinhos na Guerra da Rússia contra Ucrânia. A humanidade pagará a conta da insana e letal disputa entre Rússia, Estados Unidos, OTAN, e o resto do mundo.
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