quinta-feira, 27 de fevereiro de 2020

Brasil ou Brazuela?


Se não nomear as atitudes do presidente, a imprensa vai desinformar o público

Está no Gênesis: a incumbência de dar nome aos seres vivos foi transmitida ao homem por ninguém menos que Deus. De lá para cá, a briga não parou mais. Definir como se deve chamar cada uma das coisas deste mundo virou uma disputa interminável. Cientistas concorrem para saber qual deles vai designar a nova estrela ou o novo vírus. Locutores esportivos competem para dar o melhor apelido ao jogador de futebol que brilha na temporada. Marqueteiros duelam nas licitações para ganhar o direito de “criar” as marcas publicitárias dos programas de governo (no nosso tempo, toda política pública tem nome de sabonete, ou quase isso).

No meio dos turbilhões vernaculares para batizar isso e aquilo, o repórter é apenas um a mais – mas esse um a mais não pode faltar. Não se espera dele que saia por aí inventando os substantivos da língua corrente, mas o repórter – como, de resto, toda a imprensa – tem o dever de chamar cada coisa e cada personagem pelo nome devido. Se não fizer isso, vai desinformar a sociedade. Se quiser mesmo noticiar os acontecimentos com clareza e com objetividade, o jornalismo precisa saber nomeá-los.

Um exemplo? Está na mão. O que aconteceria se, em lugar da palavra “motim”, os jornais, as rádios, as emissoras de TV e os sites noticiosos na internet resolvessem usar a palavra “greve” para se referir ao assalto contra a ordem pública que vem sendo perpetrado por policiais cearenses? Aquilo não é uma “greve”. É um motim. Se os jornais começassem a chamar aquele levante armado de “greve” – palavra que aparece na legislação democrática como um direito do trabalhador – desorientariam os leitores, ouvintes e telespectadores. Estes não entenderiam nada de nada e poderiam até achar que os criminosos amotinados, com o rosto coberto por balaclavas, atirando em pessoas desarmadas, não passam de assalariados explorados exercendo seu direito de não trabalhar. Em resumo, se chamasse de “greve” o motim do Ceará, a imprensa prestaria um desserviço à sociedade e faria propaganda, ainda que involuntária, a favor dos amotinados.


Simples, não? Na verdade, não é tão simples assim. Quando se trata de cobrir os atos do atual presidente da República, a tarefa de dar nome às coisas se complica um pouco. Nesse ponto, temos tido dificuldades. Há dois dias o chefe de governo distribuiu pessoalmente, por meio de seu telefone celular, convocações para um ato público que pretende ameaçar os representantes dos Poderes Legislativo e Judiciário.

A intimidação virulenta já começou. Está na rua. Num vídeo divulgado pelos organizadores do ato, uma música dos Titãs, O Pulso, serve de plataforma para a agressão das autoridades. Aproveitando-se da letra, que arrola um inventário copioso de doenças, o vídeo exibe uma sucessão de fotografias de deputados, senadores, governadores e ministros do Supremo, associando cada rosto a uma enfermidade. Em termos rudimentares e imorais, a peça “xinga” as autoridades de “doentes”. Em seguida, enuncia a mensagem de que para resolver os problemas do Brasil é preciso extirpar do País todos os focos de “moléstias”. Não há dúvida: o ato convocado pelo presidente da República é, sob todos os ângulos, uma investida odiosa e golpista contra as instituições democráticas e as pessoas que legitimamente as representam. A intenção dos organizadores é desacreditar o Estado e pavimentar o caminho espúrio para que o presidente avance na direção de uma ditadura.

O uso da canção dos Titãs foi indevido. Dois dos três autores da música, Arnaldo Antunes e Tony Bellotto, repudiaram publicamente o uso que a extrema direita fez dela (o terceiro autor, Marcelo Fromer, está morto). O uso de símbolos militares também é indevido. Há oficiais protestando contra a pregação de que as Forças Armadas devem tomar o poder dos políticos. Tudo aí é indevido.

A convocação – indevida – desse ato público escancarou o prenúncio de uma crise institucional. É claro que todo mundo tem o direito de ir às ruas para gritar o que quiser. As pessoas têm o direito até de pedir por uma ditadura militar. Birutice faz parte. Agora, quanto ao presidente da República, que jurou solenemente respeitar, manter e cumprir a Constituição, esse aí não tem o direito de se engajar a plenos pulmões no fanatismo golpista. A lei obriga-o a defender a ordem constitucional. Se não observar a obrigação que lhe cabe, o mandatário ficará exposto a um processo que lhe pode custar o cargo.

O curioso é que o presidente, pronunciando seus impropérios inconstitucionais, vai se fingindo de “normal”. Força os limites, dia após dia. Quebra o decoro, faz apologia de torturadores, chama o povo para atacar o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal e age como um chefe de motim. Ele se situa fora do campo democrático, atenta contra os símbolos mais caros da democracia – isso é um fato – e setores da imprensa ainda parecem acreditar que tudo está “normal”.

As redações precisam refletir. Dar o nome justo a cada coisa – e a cada agente público – vai se tornando urgente e indispensável.
Eugênio Bucci

Carnaval e algumas lembranças de uma época triste

Foi-se mais um Carnaval e, com ele, muitas ilusões. Não obstante, os nossos foliões – em torno de 4,5 milhões, segundo o sindicato dos hotéis, citado em O TEMPO – se esbaldaram, e com bem menos violência. Aquele que outrora conheci era diferente. Prevaleciam os famosos bailes nos clubes.

As coisas mudaram e, segundo os que entendem dessa festa popular, para melhor. Há até os que afirmam que já é o terceiro do país: Rio, São Paulo e Belo Horizonte. O de Salvador ficou para trás. Ou é só otimismo?

Agora é começar tudo outra vez, leitor. Todo empenho na procura do desenvolvimento do nosso país ainda será pouco. É indispensável enfrentar a desigualdade social que nos ameaça e aumenta dia a dia.

Que a Quarta-Feira de Cinzas tenha servido de reflexão para todos: presidente, vice-presidente, deputados federais, senadores, governadores, deputados estaduais, prefeitos e vereadores. E que cada brasileiro de responsabilidade, seja empresário ou simples cidadão, renove o seu compromisso com a defesa da democracia. Que se afaste de vez qualquer risco de um regime autoritário, independentemente da cor ideológica.

Conscientizemo-nos de que ele não nos levará a lugar algum, só ao desastre humano. Trabalhemos juntos, enfim, para que nosso país conquiste o relevo que merece entre as grandes nações.

Muito do que tem acontecido atualmente no país, envolvendo posições político-ideológicas do presidente Jair Bolsonaro, me leva a pensar num tempo triste. Digo logo que não é nada prazeroso me lembrar desse tempo e do que vivi como jornalista no velho e saudoso “Jornal do Brasil”, durante quase toda a ditadura militar.

Após o fatídico 1968, o sofrimento era quase diário. Apenas um exemplo: recebia, com certa frequência, telefonemas anônimos ameaçadores, cuja origem jamais me foi possível identificar, dirigidos a mim e aos jornalistas que trabalhavam na regional, sobretudo os que cobriam política.

Alguns telefonemas eram verdadeiros. Convocavam-nos – os responsáveis pelos jornais nacionais – para reuniões no antigo CPOR, situado à rua Juiz de Fora. Ameaçavam-nos com a censura (há algo mais odiento numa democracia?) como se fôssemos responsáveis diretos pelo envio das matérias produzidas aqui, mas muitas vezes solicitadas pela sede.

Olhando o dia de hoje, vejo que nos falta grande frente de afirmação democrática, de respeito à liberdade e, claro, ao Congresso Nacional, sem o qual não há democracia.

Li ontem, leitor, realmente perplexo, que o presidente Bolsonaro compartilhou mensagem em vídeo, por WhatsApp, convocando o povo para atos contra o Congresso no dia 15 de março. Essa informação, segundo se noticiou, foi confirmada a “O Globo” pelo ex-deputado federal Alberto Fraga, amigo do presidente.

Que imprudência, presidente! Não é esse o caminho!

Olhos fechados à matança


Matamos, quando fechamos os olhos à pobreza, à miséria, à vergonha. Matamos toda vez que, por comodidade, olhamos condescendentemente instituições já mortas na sociedade, no Estado, na escola, na religião, e fingimos aprová-las em vez de decididamente lhes voltar as costas
Hemann Hesse

Bolsonaro atenta contra a Constituição

Jair Bolsonaro tem biografia conhecida, construída em 28 anos de mandatos exercidos como representante corporativo de militares e policiais, com um perfil de extrema direita. Foi beneficiado em 2018 por uma conjunção feliz para ele, em que a debacle da esquerda, desestabilizada pelo desastre ético lulopetista e pela teimosia do ex-presidente Lula em continuar dono do PT, somada à falta de nomes para ocupar espaços no centro, permitiu a sua eleição, com a ajuda de muitos que usaram o voto para punir o PT.

À medida que o ex-capitão foi revelando toda a face de extremista, e não apenas na política, boa parte destes eleitores se afastou. Bolsonaro tornou-se, então, um presidente de baixa popularidade, sustentado por milícias digitais e claques de porta de Palácio. E passou cada vez mais a dirigir-se a estes bolsões, o que o foi afastando da maior parcela da sociedade.


Se não era um político desconhecido, Bolsonaro vem demonstrando uma faceta temerária menos previsível: de esticar a corda em seu comportamento de extremista, sem qualquer preocupação com a importância e o decoro do cargo de presidente da República, agindo como chefe de facção radical, de bando, ultrapassando todos os limites do convívio democrático. Desconsidera a divisão de poderes feita pela Constituição, ameaça o Congresso, o Judiciário e, logo, sua Corte Suprema.

A adesão pelo presidente, por meio de vídeo, na terça-feira, a uma convocação bolsonarista para atos de rua em 15 de março, contra o Congresso e o STF, representou mais uma elevação de tom de Bolsonaro na sua escalada de mau comportamento e de desrespeito.

Ainda no último dia de carnaval, começaram as devidas repercussões negativas. Destaca-se a nota enviada à “Folha de S.Paulo” pelo decano do Supremo, ministro Celso de Mello, que mais uma vez se manifesta diante de um desvario bolsonariano: a atitude de Bolsonaro, se confirmada, revela a “face sombria de um presidente da República que desconhece o valor da ordem constitucional, que ignora o sentido fundamental da separação de Poderes, que demonstra uma visão indigna de quem não está à altura do altíssimo cargo que exerce e cujo ato de inequívoca hostilidade aos demais Poderes da República traduz gesto de ominoso desapreço e de inaceitável degradação do princípio democrático!!!!”.

O ministro conclui a nota com o alerta de que o presidente da República “embora possa muito, não pode tudo”, e se “transgredir a supremacia político-jurídica da Constituição e das leis da República” pode ser denunciado por crime de responsabilidade. Punido, portanto, com impeachment, como já aprendeu o país.

Bolsonaro, quarta pela manhã, ensaiou suavizar sua inconcebível aprovação de manifestações contra a República, alegando ter compartilhado entre “amigos” o seu apoio e que quaisquer outras interpretações do que fizera são “tentativas rasteiras de tumultuar a República”.

Mas essas supostas “tentativas rasteiras” tinham razão de ser. Afinal, o presidente compartilhou o vídeo por meio de sua conta particular do WhatsApp, em que aparece o brasão da República. De mais a mais, trata-se de uma tentativa frágil de afastar responsabilidades. O presidente da República sempre falará nesta condição.

Mesmo que a atenuação feita por Bolsonaro possa reduzir tensões — é melhor que assim seja —, elas não devem se dissipar completamente. O fato de a convocação das manifestações, compartilhada pelo presidente, citar Bolsonaro e também o ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), Augusto Heleno, general da reserva, indica alguma articulação no Planalto em favor dos atos.

Há, ainda, uma óbvia relação entre as agressões verbais feitas por Heleno ao Congresso, gravadas acidentalmente, e a convocação das manifestações. O próprio Heleno, em reunião privada no Planalto, pediu a Bolsonaro que convocasse o povo às ruas, para mostrar ao Congresso quem manda — ficou implícito. É o oposto do que estabelece a democracia representativa que Bolsonaro jurou respeitar. A persistir nesta rota, o presidente trairá o juramento de posse.

Os arroubos de Augusto Heleno, tudo indica que compartilhados com Bolsonaro, ocorrem em meio a uma negociação com o Congresso sobre vetos do presidente à Lei de Diretrizes Orçamentárias, envolvendo emendas parlamentares. Os vetos poderão ser derrubados ou não a depender dos entendimentos. Nada que não possa ser negociado politicamente.

Jair Bolsonaro, com as frações radicais que o cercam, parece ter decidido entrar em rota de colisão com as instituições, cujo resultado pode ser uma crise institucional que não interessa a ninguém, inclusive a ele, chefe do Executivo, um dos que dependem da estabilidade. Bolsonaro deveria desejar que a economia e o país de fato se recuperem e o permitam tentar com êxito a reeleição em 2022. A não ser que faça uma aposta arriscada, irresponsável e criminosa no caos.

Neste surto de radicalização, Bolsonaro e família sinalizaram solidariedade a policiais militares amotinados no Ceará, outro atentado ao estado de direito. O presidente tem citado a Venezuela chavista como o mau exemplo no continente. Pois a está seguindo, ao aplicar o manual do caudilho Hugo Chávez, que destroçou a democracia no país criando crises institucionais, para avançar com seu modelo nacional-populista autoritário. Destruiu a própria Venezuela. A não ser que Bolsonaro e grupo delirem ao vislumbrar um atalho para atropelar o Congresso e o Judiciário, por acharem que este é o melhor caminho para a execução do seu projeto. Não é, e para nenhum projeto.

Trata-se da fórmula de mais uma tragédia nacional, em um país que já padeceu duas longas ditaduras na República e aprovou o impeachment de três presidentes — sabe como fazer e conhece o alto custo da empreitada decorrente da paralisação do país.

O atrevimento do presidente e de seu grupo começou na quarta-feira a ter mais uma vez uma resposta à altura no Congresso, no Judiciário, na sociedade. Algum tempo atrás, o mesmo Celso de Mello já advertira o presidente por haver postado um vídeo inconcebível em que uma hiena simboliza o Supremo.

O direito à livre manifestação é garantido pela Constituição. Se apoiadores de Bolsonaro querem transmitir alguma mensagem política, a Carta está do seu lado. Mas ninguém pode, de dentro ou de fora do Planalto, querer impor a vontade própria na marra.

Em eterna campanha, Bolsonaro se esquece de que também precisa governar

Ao invés de descansar e refletir durante o recesso de Carnaval, para cumprir sua missão de tirar esse país do lodaçal em que se encontra, o presidente Jair Bolsonaro continua a fazer campanha política. Assim como o Chapolin Colorado, seus atos são “friamente calculados”. no intuito de buscar amplo apoio popular e vencer a próxima eleição. E acredito que até consiga, devido à falta de opção do eleitorado e à divisão do país entre os que sonham com a volta de Lula da Silva e aqueles que abominam essa possibilidade.

Não há a menor dúvida – no momento, o Brasil esta divisão beneficia Bolsonaro por alguns motivos muito especiais, como ter se cercado de militares e até agora não haver denúncias de corrupção administrativa. É o que basta para muitos eleitores que não aguentavam mais os mensalões e petrolões que caracterizaram a era do PT.

Propositadamente ou não, Bolsonaro se aproveita desse sentimento antiPT, que é uma verdadeira comoção social, e segue em frente, sempre em campanha.


Antes da eleição de 2018, fiz questão de abrir meu voto para Bolsonaro, mas não deixei de registrar que o considerava “um idiota completo”. O futuro veio mostrar que eu tinha razão em fechar a porta à Era do PT, que caminhava para transformar esse país numa ditadura sindicalista, embora muitos não percebessem essa realidade, e na atual gestão haveria duas vagas a preencher no Supremo.

Bem, com mais dois Toffolis na cúpula do Judiciário, a fatura ditatorial estava garantida. Não importaria mais o que o Congresso aprovasse, porque o Supremo consideraria a lei inconstitucional, caso não atendesse aos interesses dos ditadores petistas, no estilo Venezuela de Chávez y Maduro.

A partir do governo de Michel Temer, o sonho da ditadura sindicalista acabou e não há mais recursos públicos para custear as manifestações “populares”. O Brasil está livre para exercer a democracia, mas o problema é que Bolsonaro não tem postura de estadista, deixou que os filhos e o guru virginiano atrapalhassem seu governo.

Até agora, com mais de um ano de gestão, é um drama shakespeariano, pois não se sabe se o presidente vai ouvir os ministros ou os filhos. Além disso, nesta campanha para a reeleição, Bolsonaro cria um problema atrás do outro, é um nunca-acabar.

Assim, o país vive dividido de diversas formas – entre os que amam ou odeiam Lula e o PT, entre os que adoram ou abominam Bolsonaro e o terraplanismo, e entre os que sonham com uma nova ditadura militar e os que não aceitam esse retrocesso.

Reina o radicalismo na pátria amada, infelizmente. É a nossa realidade atual, com um quadro político inteiramente atípico e que merece reflexões de quem se interessa pelo país.

O pior é perceber que Bolsonaro é um falso herói. Digam o que quiserem, o presidente tem demonstrado que não sabe unir, tem uma vocação irresistível para fazer inimigos, porque cultiva a mania de perseguição – uma paranoia que merece tratamento específico.

Carlos Newton

Paisagem brasileira

Paisagem com casebres, Oswaldo Teixeira

O presidente e os golpistas

O presidente Jair Bolsonaro precisa esclarecer, sem meios termos, que não apoia a convocação de uma manifestação em sua defesa e contra o Congresso Nacional, feita por seus apoiadores. Os cidadãos são livres para se manifestar contra quem bem entenderem, mas um presidente da República não é um cidadão comum e não pode permitir que seu nome seja usado para alimentar um protesto contra os demais Poderes constituídos. Se aceitar essa associação, ou, pior, se incentivá-la mesmo indiretamente, Bolsonaro estará corroborando as violentas críticas que esses apoiadores, em claro movimento golpista, estão fazendo contra o Congresso, tratado nas redes sociais bolsonaristas como “inimigo do Brasil”.


Ao distribuir a seus contatos no WhatsApp uma das virulentas peças de propaganda da manifestação convocada para o próximo dia 15 de março, o presidente ajudou a disseminar a mensagem, o que equivale a chancelá-la. Bolsonaro disse que apenas distribuiu a mensagem a “algumas dezenas de amigos, de forma reservada”, como se o caso pudesse ser resumido a uma comunicação de caráter pessoal. Mas tudo o que diz um presidente da República, em razão de sua proeminência política, tem enorme poder de influenciar os rumos do País, razão pela qual seu apoio tácito a um protesto contra o Congresso, mesmo que manifestado apenas a um punhado de simpatizantes, configura óbvio abuso de poder, pois incita ilegítima pressão popular sobre o Legislativo.

Não se pode dizer que surpreende a nova estocada do bolsonarismo contra o Congresso, com a anuência do presidente da República. “Eu respeito as instituições, mas eu devo lealdade apenas a vocês, povo brasileiro”, discursou Bolsonaro em agosto do ano passado. “Povo brasileiro”, parece claro, é o nome que Bolsonaro dá a seus seguidores – que, segundo o próprio presidente, são “35 milhões em minhas mídias sociais”. É a estes que Bolsonaro jura lealdade, embora tenha sido eleito para governar a Nação dentro das normas democráticas.

O menosprezo de Bolsonaro pelo Congresso – onde esteve por quase três décadas como deputado – foi reafirmado diversas vezes na campanha eleitoral e depois de sua posse como presidente. Em maio de 2019, distribuiu pelo WhatsApp um texto de teor golpista, segundo o qual o País é “ingovernável” sem os “conchavos” políticos, em alusão à necessidade de negociação com o Congresso, e que, sendo assim, “o presidente não serve para nada”. Na ocasião, Bolsonaro disse que contava “com a sociedade” para “juntos revertermos essa situação” – um óbvio apelo direto ao “povo” contra as instituições.

Assim, o presidente parece procurar construir um regime populista de inspiração militar, bem ao gosto dos saudosos da ditadura e que faz lembrar o governo do general Velasco Alvarado no Peru (1968-75), que hostilizava os partidos por considerá-los parte do sistema oligárquico que dizia combater em nome do “povo”. Anos depois do fracasso da experiência peruana, o coronel Hugo Chávez implantou na Venezuela uma versão do “populismo militar” cujos resultados estão à mostra. Esse não é um modelo a ser imitado.

Ante a escalada bolsonarista, autoridades dos demais Poderes reagiram. O presidente da Câmara, Rodrigo Maia, retratado como um porco em uma das mensagens a respeito da manifestação do dia 15, disse que cabe às autoridades “dar o exemplo de respeito às instituições e à ordem constitucional”. O ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes afirmou que “a harmonia e o respeito mútuo entre os Poderes são pilares do Estado de Direito, independentemente dos governantes de hoje ou de amanhã”.

Fazem bem o Congresso e o Supremo em se manifestar de modo sereno, mas firme, sobre o comportamento do presidente e de seus seguidores. Também fez bem o general Carlos Alberto dos Santos Cruz, ex-ministro de Bolsonaro, que criticou o uso de fotografias de militares na convocação dos protestos contra o Congresso, que ele qualificou de tentativa “grotesca” de confundir o Exército com o golpismo bolsonarista. A despeito disso, é muito provável que os bolsonaristas continuem a testar os limites da democracia – e portanto cabe às instituições impedir que eles consigam ir além das bravatas.

Discórdia com autógrafo

Brasília meteu-se numa guerra de egos que atrasa a agenda do desenvolvimento. Jair Bolsonaro, em vez e produzir vacinas, instalou no Planalto um laboratório que propaga o vírus da discórdia em velocidade estonteante
Josias de Souza 

Jair Maduro

Jair Bolsonaro foi eleito com um discurso que incluía, em meio a um sentimento antipestista, a necessidade de impedir que o país se transformasse em uma Venezuela. Pouco mais de um ano depois de tomar posse, porém, o presidente anda cada vez mais parecido com o congênere Nicolás Maduro, sucessor de Hugo Chávez, que um dia Bolsonaro chegou a apontar como “uma esperança para a América Latina”.

Um presidente da República convocar e apoiar protestos contra instituições constituídas e a favor de seu governo é exatamente o que faz Maduro desde que assumiu o poder. Assim, enfraqueceu os demais Poderes em seu país, deslegitimou o Legislativo e o Judiciário e aprofundou uma ditadura que persegue adversários políticos e o jornalismo profissional.


É claro que o país está longe de ser uma Venezuela, mas hoje está mais próximo disso do que quando Bolsonaro foi eleito, o que, além de assustador, é absolutamente incoerente com o sentimento de muitos dos que o elegeram.

O triste é que há, entre os que o apoiam, quem defenda esse tipo de pauta por considerar que o Congresso é nocivo ao país. Esquecem, porém, que não é a instituição que é contra o funcionamento da ordem democrática, mas alguns daqueles que estão lá, eleitos assim como Bolsonaro. A solução para a insatisfação com seus representantes é eleição e não golpe de Estado.

Há nas convocações para os protestos do próximo dia 15 pautas absolutamente antidemocráticas. O presidente, ao incentivar o ato, sem qualquer dúvida técnica, comete crime de responsabilidade, passível de impeachment.

Mas não vamos ver a cúpula do Congresso falar em impeachment, disparar de forma mais dura contra o presidente ou vai detonar as pautas governistas em um primeiro momento. A explicação é simples: ninguém quer colocar lenha na fogueira dos protestos. Vão esperar passar o dia 15. Mas podem ter certeza de que o troco virá.

Por que interessa a Bolsonaro e a sua família que o Brasil continue dividido e crispado?

Os romanos diziam: post festum, pestum, ou seja, depois da festa, a realidade, traduzindo-se livremente. E a realidade política brasileira, acabada a grande festa de alegria e sensualidade do Carnaval mais famoso do mundo, é a de um país ainda em guerra, dividido, onde não ecoa a palavra reconciliação. É que um Brasil unido e pacificado não interessa, neste momento, aos planos do presidente Jair Bolsonaro, que alimenta suas hostes com ataques contínuos a tudo e a todos os que não comungam das suas loucuras e das suas ideias, baseadas na confrontação ao invés da união.

Bolsonaro tinha chegado ao poder graças a uma polarização que recordava o infeliz slogan de Lula do “nós contra eles”. O presidente de extrema direita com tintas de nazifascismo tinha encontrado na disputa eleitoral um terreno fértil de crispação nacional que facilitou seu programa de guerra.

Criou assim uma confrontação, não de ideias e programas, e sim de violência, simbolizado em seu gesto clássico de imitar com as mãos o disparo de uma arma e estimular o ódio, açulado por seu guru extremista, o astrólogo e escritor Olavo de Carvalho, que dos Estados Unidos estimula tudo o que levar a uma radicalização da extrema direita, com o programa de “desconstruir o país” e limpá-lo de tudo que possa cheirar a esquerda ou simplesmente a progressismo.


Bolsonaro formou um exército preparado para seus ataques contínuos contra o fantasma dos meios de comunicação e de tudo o que não se submeta a suas fúrias destrutivas. E o Brasil dividido e crispado da luta eleitoral continuou igualmente confrontado, sem a possibilidade de diálogo e sem um presidente que, depois da dura disputa eleitoral, fizesse um apelo à reconciliação. Pelo contrário, manteve viva até agora a mesma polarização das eleições, crispando ainda mais a opinião pública.

Por causa disso perdeu em seguida boa parte daqueles que lhe deram seu voto não por sua causa, e sim para destronar o PT. Ao invés de tentar recuperar sua força inicial com uma aproximação com aqueles a quem havia estigmatizado, foi radicalizando ainda mais suas posições de confrontação, que ainda não sabemos até onde tenta levar, e se a força militar, com a qual se cercou e se blindou, irá ou não segui-lo em suas posições extremistas.

Tudo faz pensar, entretanto, que nem nada nem ninguém fará o presidente abrir mão da tática política de violência verbal e de enfrentamento da sociedade, que corre o perigo de se cristalizar sem esperanças de uma reconciliação nacional, algo que não lhe interessa. Bolsonaro, desde jovem militar, foi sempre um homem de briga, e não de paz. E continua sendo.

Se esses prognósticos forem válidos, e se Bolsonaro estiver convencido que só com uma nação dividida e polarizada poderia manter sua força eleitoral, caberia ao resto das forças políticas criarem um frente comum com todos os que acreditam que o melhor país não é o dividido e enfrentado, e sim o unido sob um projeto de reconstrução democrática onde haja espaço e liberdade para todas as ideias e para todos os credos, sem que nenhum deles seja hegemônico nem inimigo dos outros.

Um país e uma sociedade que não respeitem as diferenças que enriquecem e nutrem a convivência pacífica estará condenado a anos de guerra política, sem saber onde isso poderá desembocar.

Para sua reunificação, o Brasil necessita não de outro caudilho, messias ou pai da pátria que mantenha a polarização, mesmo que seja de sinal contrário ao fascista deste momento, e sim de alguém que o faça colocar todas as suas melhores forças na tarefa de recuperar a difícil unidade de todos os brasileiros, deixando reduzida a uma minoria a força destrutiva que reina hoje no governo do país.

Se Bolsonaro e os seus têm interesse em manter viva a chama da guerra entre irmãos, que é o caldo de cultivo em que se movem, são justamente as outras forças democráticas que continuam apostando na união e na reconciliação que terão de se unir, esquecendo suas diferenças. Essas forças deverão lançar uma mensagem clara à sociedade hoje cindida e com medo de que possam voltar os lúgubres fantasmas do passado: que só é possível viver unidos e em paz respeitando as diferenças, que esse é o único modo de recuperar o entusiasmo e a imagem positiva que este país sempre propagou até agora no exterior e que está perdendo.

Se as forças realmente democráticas, sem perderem suas diferenças, mas unidas em um único projeto que possa entusiasmar a grande maioria dos brasileiros, forem incapazes de devolver as esperanças perdidas e de fazer pensar que não é possível um país unificado, sem medos e sem rancores, o futuro poderia ser ainda mais sombrio do que hoje imaginamos.

Será realmente isso o que deseja de coração a grande maioria deste povo, rico material e humanamente, tão golpeado pela violência e a corrupção, e que além disso está sendo envenenado com a triste política do extermínio e com um estéril niilismo?

A política bolsonarista, que já não é só do presidente, mas também de uma dinastia criada com toda a família, está desfigurando o rosto e o aspecto luminoso e festivo do Brasil, um povo que já nem recorda quando sofreu sua última guerra. Um Brasil que, apesar de ser um continente, com realidades regionais tão marcadas, não abriga hoje tentações separatistas. Um Brasil onde, nos 20 anos em que vivo aqui, nunca ouvi um só brasileiro dizer que gostaria de deixar de sê-lo. Já escutei, por outro lado, muitos estrangeiros enraizados no país há gerações que já se sentem brasileiros de alma e de coração. E dizem isso com orgulho.

Até quando?