domingo, 16 de julho de 2017

Lula e o incêndio eleitoral

É precária a hipótese de que a condenação do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva pelo juiz Sérgio Moro a 9 anos e seis meses de prisão por corrupção passiva e lavagem de dinheiro o transforma em um “morto político” e, por conseguinte, sem condições de ajudar o PT a resgatar sua força no espectro do poder.

Erram aqueles que apostam nessa visão. Como o Brasil não fez a tão clamada reforma para mudar padrões, a política continuará a ser realizada com velhas receitas, onde entram condimentos como mistificação das massas, cooptação eleitoral à base da pecúnia, regras que amparam a existência de legendas sem doutrina, entre outras mazelas. Sob essa armação, Luiz Inácio continuará a ser um exímio influenciador de corações e mentes.


Lula, portanto, não estará alijado do processo político-partidário-eleitoral como alguns pensam. Há, até, outras razões que contribuem para lapidar seu perfil de protagonista de primeira linha: detém (ainda) forte dose de carisma, sendo o líder mais populista do país; possui alta visibilidade; domina bem a expressão de palanque; é capaz de mobilizar largos contingentes; e o PT, ao contrário de outros partidos, abriga aguerrida militância.

Por todos esses aspectos, a vida política de Lula não se encerra com a condenação do juiz Moro. Tentemos desenvolver pontos dessa abordagem, a começar com o processo de vitimização em que se envolverá.

Como é sabido, antes do julgamento de Lula pelo Tribunal Regional Federal da 4ª. Região (RS, SC e PR), Luiz Inácio correrá o território, a partir do Nordeste, onde detém grande popularidade. (A 2ª Instância costuma apreciar os casos que chegam a ele no prazo médio de um ano).

A estratégia de mobilização centrípeta – das margens para os centros – tem o intuito de expandir o discurso de que as elites, a partir do Poder Judiciário, querem inviabilizar sua candidatura nas eleições de 2018.

O eleitorado das regiões menos desenvolvidas tende a se solidarizar com seus ídolos, principalmente quando estes vestem o manto de perseguidos de poderosos. O discurso separatista do “nós” contra “eles”, tão do gosto do lulopetismo, voltará a regar as searas carentes.

A locomoção de Lula pelo país terá o objetivo de ressuscitar a imagem do PT, combalido pela crise política e alvo de escândalos de corrupção desde o mensalão; voltar a ser o “pai dos pobres”, recolocado no altar das massas; arrumar a militância desordenada e preparar o caminho dos eleitores em direção às urnas.

Se for condenado e tiver a candidatura impedida, por volta de julho/agosto de 2018, suas andanças não perderão eficácia. Terão o condão de ajudar perfis próximos ao lulismo, ao mesmo tempo em que poderá ser o construtor e fiador de candidatura única das oposições.

Torna-se patente a estratégia lulista de mexer no caldeirão político. A condenação expandirá sua visibilidade e, como é previsível, alargará a fogueira com imensas camadas de lenha. O clima político ajudará a expandir as tensões, eis que todos os partidos, incluindo os que exibem a ética como seu símbolo, contabilizam participantes no gigantesco bornal de receptores de recursos de empresas. O nivelamento dos entes partidários praticamente os deixa na fila dos pecadores ante o confessionário dos caixas eleitorais. Ali, não há inocentes.

Ao lado da eventual alavancagem do petismo sob a fala rouca de Lula, é oportuno registrar previsível contraponto a ser formado por ondas de ódio e indignação com origem no centro da sociedade. O ex-presidente é marcado, hoje, com a mais alta taxa de rejeição na esfera de candidaturas a pleitos majoritários: beira 60% em regiões como o Sudeste. Pois bem, a expansão das ondas de contrariedade ao lulismo está à vista.

O efeito desse fenômeno, como temos sempre lembrado, reside na formação de marolas no meio do lago, a serem empurradas para as lonjuras das margens por tubas de ressonância das classes médias. Quer dizer, a rejeição a Lula deverá crescer no meio da pirâmide social, devendo chegar à base, às classes marginalizadas.

A eventual puxada para cima dos índices de Lula nos fundões do país corresponderá aumento de rejeição.

Esses cenários seriam totalmente previsíveis caso não fôssemos visitados pelo Senhor Imponderável, que, vez ou outra, nos visita, fazendo-se acompanhar de fatos inusitados e eventos surpreendentes. Vivenciamos momentos de elevada tensão na esteira do julgamento pela Câmara da admissibilidade da denúncia contra o presidente da República.

O processo tende a se alongar pelos próximos meses. Seja qual for o desfecho, não se descortina clima ameno na arena política, porquanto delações e investigações, sob a égide da Operação Lava Jato, haverão de deixar a fogueira muito acesa.

Resta aduzir que, confirmada a condenação na 2ª instância, Lula deverá ser recolhido. Preso, agitará a militância, não se descartando mobilizações de rua que deixarão a paisagem pré-eleitoral tomada por emoção e conflitos.

Absolvido, será candidato do PT, com possibilidade de se tornar o candidato único das oposições, que se juntariam para enfrentar outras candidaturas, como a de direita, de Jair Bolsonaro, e a de centro (com engajamento de partidos e grupos à esquerda e à direita), e grande possibilidade de ser preenchida com um quadro do PSDB.

Será o maior teste de nossa democracia, eis que estamos no limiar de uma era pronta para acolher o ideario republicano: ética, transparência, sobriedade, verdade, compromisso.

Firmar-se-á a crença de que o Brasil deverá finalizar o trabalho de assepsia nos vãos da política, com a mudança de regras e instalação de novas cores no desenho institucional.

A nova ordem poderia, até, abrigar o parlamentarismo, cujo vértice estaria apoiado em uma estrutura partidária enxuta e com entes capazes de fazer adequada representação do pensamento nacional. Afinal, o presidencialismo de cunho imperial mostra-se esgotado. Seria a hora de o país se guiar por nova bússola.

O tríplex errado

Se Sergio Moro queria abater Lula, pode ter errado grosseiramente.

Mais que um barato triplex, a economia nacional sofreu e sofre hoje pelas escolhas estratégicas desgraçadas dos últimos dez anos, feitas pelo governo e direcionadas ao interesse das empreiteiras da Lava Jato.

Triplex é nada, uma gota no oceano e, ainda, uma gota equivocada.

Os financiamentos de campanha e as propinas com mimos, que têm no triplex um exemplo patético, parecem estar na base das ruínas do país.


Obras de difícil fiscalização em terras distantes, e, no final de cada uma, superfaturamento e roubalheiras que renderam, além dos 3% para os partidos, uma miríade de coisas erradas. O esquema de Sérgio Cabral mostra que as garfadas poderiam multiplicar-se dependendo da agressividade de personalidades como a dele mesmo e de Eduardo Cunha (próximo delator).

Os 3% eram o pedágio para passar com 97% de recursos públicos rendendo ganhos exorbitantes.

Um metrô em São Paulo e uma Cidade Administrativa em Minas são facilmente fiscalizáveis, mas para o TCU um metrô em Caracas com R$ 3,3 bilhões de aportes brasileiros e um metrô no Panamá com R$ 2,4 bilhões (obras da Odebrecht) ficam fora, para sempre, de qualquer fiscalização tupiniquim.

Mandar dinheiro para lá é a forma de desviar com a maior facilidade, penalizando no Brasil uma população sedenta de saúde, educação e emprego. Como tirar a comida da mesa de um esfomeado para dar lá fora.

Não se tem dúvida da ilicitude subjacente, pois o governo brasileiro baixou o “sigilo bancário” sobre valores de cerca R$ 200 bilhões aplicados no exterior. Absurdo! Lógica de republiqueta do Caribe que blinda safadezas que custaram o sangramento do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT), o FI-FGTS e o Tesouro Nacional, que emitiu fortunas com taxas de 11% e as investiu por 6%. Justamente o que deveria ser aplicado em finalidades sociais e desenvolvimentistas, aqui, no Brasil.

Fora do país seguiu-se a lógica de obras de infraestrutura, no Brasil de farras nos últimos dez anos. Mais de R$ 1 trilhão foram carreados para estádios da Copa, das Olimpíadas, para o pré-sal, que se mostra uma insensatez, para a transposição, para os frigoríficos da JBS, os devaneios da EBX, as loucuras de Marcelo Odebrecht, que deixaram, agora, um punhado de moscas no ar.

Os metrôs que resolveriam a mobilidade urbana de BH e de outras cidades continuam na fila de espera. O de Caracas nunca será pago, é calote na certa. A saúde permanece de baixíssima qualidade, a educação, insuficiente, o desemprego, o mais penoso do mundo.

A transposição do São Francisco, que fez a festa de 14 empreiteiras, já registra três canais estourados pelo sertão afora, e se garante que os 12 milhões de hectares facilmente irrigáveis em Minas e na Bahia perderam essa possibilidade. As águas já se encontram contingenciadas com um corte neste ano de 15%.

Quando se poderia atender a mesma população de melhor forma com açudes, cisternas e poços poupando R$ 8 bilhões que foram jogados ao vento.

O pré-sal, cavalo-chefe do governo de Lula, foi uma escolha arriscadíssima, sabendo-se que o custos de extração de US$ 45 por barril se oporia aos US$ 10 na península Arábica e em outras bacias rasas do planeta.

Dos balanços da Petrobras aflora, já nas primeiras camadas, que R$ 400 bilhões de financiamento, relacionados ao pré-sal, não rendem um centavo e poderão em breve gerar déficit com as cotações do petróleo baixando de US$ 45 por barril.

Nos últimos anos os precavidos fundos árabes pararam de investir em petróleo e entraram numa corrida maluca para abocanhar o promissor mercado das energias alternativas e sustentáveis.

Sol, vento, água, biomassa, lixo e resíduos urbanos serão insumos de primeira importância, como o hidrogênio e as células de energia, que deixarão o petróleo obsoleto nas profundezas da terra.

Realmente essa história de triplex, no contexto do Brasil, joga no escanteio o que realmente conta.

O TRF-4 de Porto Alegre, instância de recurso de Lula, terá muitos argumentos, na esfera estritamente jurídica, para aliviar e até livrar Lula, concedendo-lhe o título de perseguido por um fato marginal e inexpressivo.

Seria esse apartamento a “Elba” de Lula? Só num julgamento político do Congresso.

Aquele carro popular pago por PC Faria, que motivou a cassação de Fernando Collor, não o condenou na instância judicial.

Esse triplex faz um favor a Lula e concede um discurso à militância lulista estonteada.

Moro conseguiu o que não queria.

Imagem do Dia

Cordoba, Spain!
Córdoba (Espanha)

O santo se corrompeu...

Charge do dia 16/07/2017A condenação de Lula na quarta-feira pelo juiz Sérgio Moro açodou rancores dos "traídos" e comparsas e fez levantar-se a turma dos panos quentes com o discurso do santo corrompido pelo sistema. O mea culpa de ex-eleitores convictos do hoje condenado, em alguns casos, surgiu até acompanhado de lencinho para enxugar as lágrimas de Madalena arrependida. Choram o ídolo que se perdeu pelos tesouros do Poder e as lágrimas se derramam pela remissão do pecado. É a cara deslavada do Brasil que se ajoelha ante o privilégio do poder.

Lula seria como milhões queriam. Mas não foi por pequenez. Era e é bem menor, minúsculo mesmo, diante da imagem de gigante estadista que vendeu e ainda vende nas barraquinhas da idolatria. Sequer merece choro de viúvas.

Lamentar a condenação de um líder carismático é a redenção da criminalidade, escárnio à cidadania. Aqueles que hoje escrevem enxugando os olhos sobrepõem o criminoso acima do crime. O carisma de Lula, ou de qualquer político em todo mundo, não pode nunca atenuar a culpa do condenado diante da ressponsabilidade que tinha.

O despacho do juiz Sérgio Moro deve ser saudado não como vingança pessoal, mas como Justiça no mais amplo espectro e um sinal de redenção para que enfim se possa começar, mesmo que aos trancos e barrancos, o desmanche do carma brasileiro. O todo poderoso privilégio tem feito enormes estragos na cidadania e deve ser excomungado com muito sal grosso. Com todos iguais e se respeitando, pode-se caminhar como nação e não mais como bando de aloprados.
Luiz Gadelha

País caranguejo

Por toda parte obras inacabadas e coisas malfeitas. E gente incompetente no comando, rindo cinicamente. Todo jornal berra isso, todo mexerico o silencia. Não estamos nem a meio caminho, mas caímos para trás
Günter Grass, "A Ratazana"

A saída é...

E agora? Qual a saída? O aeroporto é uma. Já dizia Tom Jobim. Não, não foi ele. Foi o gaitista Maurício Einhorn. Não importa. Ficou sendo Tom. É a verdade mítica. Ele tinha medo de avião, depois deixou de ter. Não, medo de avião foi Belchior. Foi, não foi. Foi-se o sapo-boi. Ainda não somos os mesmos. Somos piores. Mas éramos melhores? Éramos ruins, mas de outro jeito. E tinha o samba. Do avião. A ode ao Rio. E a saída do Tom. Tanto que o aeroporto ganhou o nome dele. O pessoal chiou. Galeão? Engenhão? Não. Tom. Niltão. Antigamente eu não tinha medo de voar. Até achava que aquilo não era real, era alguém passando slides na janela. Hoje, na hora da turbulência severa, fecho os olhos e penso no surfboard: fui, já fui, não fui. Não tenho medo de avião. Rezo para ser abduzido. Como diz uma pichação atual: “Se eu for abduzido, não é sequestro. É resgate”. Medo, mesmo, tenho é do Brasil.

Ame-o ou deixe-o? Eu deixo de amar. Aos poucos quase me despeço da terra, das palmeiras, da linha do mar, do sabiá. Sabe-se lá?


Vira e mexe me vem o refrão do Chico. As últimas fichas estão caindo, e os caras jogando suas fichas sujas na nossa cara, de olho no pleito que, a esta altura, virou cassino do caos em mercado futuro. Um exílio brechtiano faria bem. Olhar para nós e para mim, lá de fora.

Mas de onde? Tom foi para os EUA. O império continua lá. Mas no lugar dos trompetes hoje soam os gritos histéricos das “trumpetes” com seus filhos armados até os dentes de leite.

Europa? E as bombas? Os atropelamentos em massa? Estados de urgência? Neofascismos, fossos étnicos?

Ah, teremos sempre Portugal! Tem uma turma fugindo para a lusitânia. É só comprar uma quitinete mais barata que conjugado em Copacabana e ficar ali, nas colinas, mirando os telhados da Alfama sob o sol. E, ao fundo, o Tejo, de onde saíram os navegadores que iniciaram essa nossa odisseia. E chorar nas tascas, bisavós eternas dos botecos.

Ora pois, ninguém quer explodir Portugal, atropelar português, atirar a esmo na Casa do Alentejo ou nas cantoras de fado do Ferreirinha. Mas o imposto é dose... Ganha até do Brasil. E a melancolia corrói qualquer coração mestiço. E o rancor? Amsterdã, então? Cidade criativa, razão e emoção, soluções a granel, bike, bonde, a utopia da legalização de tudo, até da morte autoassistida, se a coisa ficar braba. Mas por trás de toda essa maravilha há o racismo que progride nas entranhas de uma sociedade enigmática, com muita mágoa sob a máscara de tulipas e o idílio das vaquinhas malhadas. A Europa está empesteada, tão empesteada que a Alemanha, sítio exemplar dos horrores do século passado, é hoje o farol isolado do que restou dos ideais libertários que levantaram a união continental ora ameaçada de extinção. Na linha do pertencimento diaspórico, haverá aquela ponte sempre aberta para a terra de Sion... um mês, e a cidadania está no papo, lei do eterno retorno... Mas dormir com um olho sempre aberto na guerra iminente que une irmãos num laço inquebrantável de sangue? Não, obrigado. Sou diaspórico até o fim.

Uma opção tribalista: viver com os ianomâmis numa aldeia semi-isolada. Uma forma de sair sem sair. Mas agora?, que o nosso colosso parlamentar desavergonhou-se de vez sob rédeas de sanguessuga, e não vê a hora de acabar com a floresta, fatiar a terra, garimpar, grilar, queimar e jogar os índios na indigência?

Até me ocorre Montevidéu. Dizem que é a maior paz. A metrópole sem peso. O verdinho do Prado, a prata do Prata e umas cidadezinhas de herança colonial, um custo de vida razoável, leis modernas. Não chegaria a morrer de tédio no Uruguai. Mas, se fosse para sair, ir assim tão perto não traria o sentimento profundo do exílio voluntário, estando a poucas horas daqui... Não. Para sair não poderia ser tão fácil voltar.

Se me desse a louca iria amarrar meu burro no Oriente, num mosteiro, aprender a meditar, e ir para o alto da montanha comer o pão de Deus, que, agora sabemos, não é brasileiro coisa nenhuma, assim como qualquer espírito ou força que o valha.

Divina, subatômica, oculta na gravidade em loop, inteligente ou aleatória, nenhuma força da natureza primaria por nacionalidade, nem por espécie. Tudo que é humano lhe escapa, e tal ignorância é a chave da prosperidade universal.

Mas o diabo é que, por mais casmurros que sejam meus impulsos, não fui feito para a solidão ou o isolamento. Meu ensimesmamento termina quando minha natureza gregária clama pelo outro. O outro sou eu. E, sem o outro, nada sou.

Brasileiro, vou ficando. Com um livro, um piano, a gente amiga, e a mãezinha, meditando sem lótus, arranhando um pilates e um violão, procurando não proferir sentenças definitivas e aceitando a perplexidade com a candura de um gafanhoto de kung fu.

Arnaldo Bloch

Gente fora do mapa

World Press Photo - General News Singles, Silver Medal: Giovanni Sestini, Italy — Boat refugees rescued by the Italian navy in June
 Giovanni Sestini

Complexo de Pinóquio

O desprezo do PT pela democracia dispensaria novos exemplos. Mas seus integrantes fazem questão de exibi-los com alucinada frequência. Se geralmente já se postam como vítimas de um inimigo invisível, quando acuados pelos fatos reagem com ameaças. A da vez é de que não aceitarão uma eleição presidencial sem Lula.

Só não dizem como. Com greves gerais? Quebradeira? Luta armada?

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Feita da tribuna do Senado pela presidente nacional do PT, Gleisi Hoffmann, na quarta-feira, 12, a bravata se repetiu no dia seguinte, quando Lula convocou a imprensa para uma suposta entrevista coletiva na qual foram vetadas perguntas dos jornalistas. Antes do monólogo, Gleisi lançou a nova campanha petista: eleição sem Lula é fraude.

O mote e a peça, já impressa, estarão em todos os cantos. Nas viagens de campanha programadas por Lula (o circuito começa em agosto e inclui 22 cidades) e nas tentativas dos ditos movimentos sociais de colocar gente na rua, a primeira delas na próxima quinta-feira, 20.

Diante da sentença do juiz Sérgio Moro condenando Lula a nove anos e seis meses de prisão, é até compreensível o esperneio do PT. Tentar empolgar a militância, manifestar, ocupar as ruas é parte saudável da democracia. Mas fazê-lo tendo a mentira como premissa são outros quinhentos.

O slogan “eleição sem Lula é fraude” é exatamente isso: ludibrio, tapeação. E agride frontalmente a Justiça, um dos tripés da organização do Estado democrático.

Lula foi denunciado, exerceu seu direito de defesa e, ao fim e ao cabo, considerado culpado no primeiro dos cinco processos que correm contra ele. Poderá recorrer em liberdade, uma concessão que nem todos têm. Se sua sentença for mantida em segundo grau, ficará inelegível, impossibilitado de disputar eleições.

No máximo, vai se igualar a outros tantos que tiveram suas candidaturas impugnadas. Só em 2016, a Lei da Ficha Limpa barrou 2.300 candidatos. E isso não fez com que o pleito do ano passado fosse considerado uma farsa.

Mas o PT não vislumbra alternativas. Vai insistir na falácia de que Moro persegue Lula assim como fez com a presidente deposta Dilma Rousseff, quando transformou um rito constitucional em golpe.

O patético protesto de ocupação da mesa diretora do Senado, liderado por Gleisi, interrompendo a votação da reforma trabalhista, que acabou aprovada por acachapantes 50 votos a 26, encontra-se na mesma linha torta de apelo antidemocrático.

Sem argumentos, substituiu-se o legítimo direito à obstrução parlamentar por vandalismo. Tivesse algum juízo ou inteligência, a votação seria impedida dedicando-se, por exemplo, a ocupar a sessão com a leitura da CLT. Instruída não pelos votos que recebeu dos paranaenses, mas pelo presidente da CUT, Vagner Freitas, Gleisi nem pensou nisso.

A atenção da primeira mulher a presidir o PT pairava em outra seara, mais precisamente no primeiro processo em que uma senadora se tornou ré. Ao lado do marido Paulo Bernardo (ex-ministro de Comunicações de Dilma e do Planejamento de Lula), Gleisi é acusada de receber doações ilícitas com dinheiro desviado da Petrobras. Arrolou Lula como testemunha de defesa e dele obteve apoio total na oitiva realizada em São Paulo, a mando do ministro Edson Fachin, cinco dias antes de ela reincidir na ameaça à nação caso o ex fique fora da disputa em 2018.

Define-se aí uma ligação de lealdade que extrapola o dia a dia da política. Ambos são fiadores e devedores um do outro.

Gleisi é uma militante aguerrida. E Lula usa e abusa da energia dela. É hoje a melhor -- talvez única -- ponta de lança do ex, que parte para o confronto e se esgoela na tribuna do Senado.

Ali ela tripudia adversários, anima partidários, fala aos fiéis. Grita contra Moro, chamando-o ora de “animador de torcida”, ora de “covarde”. Critica a mídia, que, segundo ela, é o público que o magistrado curitibano queria agradar ao proferir a sentença contra Lula.

Encarna o que o PT sabe fazer de melhor: empina o nariz, deixando-o livre para pinoquiar.

Políticos trocam espírito de corpo pelo de porco

Sitiado por investigações criminais, o sistema político brasileiro entrou em convulsão. É como se a desfaçatez tivesse virado um vírus que transmite aos políticos uma doença devastadora. Abateu-se sobre Brasília uma epidemia pilântrica. Quem presta atenção se desespera. Há políticos admiráveis em cena. Mas os outros 99,9% dão a eles uma péssima reputação.

Num instante em que Lula oscila entre duas possibilidades —retornar ao Planalto ou ir para a cadeia—, o deputado petista Vicente Cândido (SP) sugere enfiar dentro de uma suposta reforma política uma cândida novidade: a partir de 2018, nenhum candidato poderá ser preso nos oito meses que antecedem a eleição.

Pior do que a emenda de Cândido, só mesmo o soneto do companheiro Carlos Zarattini (SP), líder do PT na Câmara: ''Essa proposta não é para o Lula e sim para todos os candidatos.” Ele explica que o objetivo é “dar uma maior segurança ao processo eleitoral.'' Ai, ai, ai…

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Segurança para quem?, indaga a plateia ao se dar conta de que Lula está mais perto do xadrez do que da urna, que sua sucessora Dilma Rousseff também chafurda no lodo, que o rival Aécio Neves recebe malas de dinheiro de Joesley Batista, que Michel Temer é um presidente sub judice e que seu substituto é Rodrigo Maia, o “Botafogo” da planilha da Odebrecht. Um cenário assim pede camburão, não proteção.

Um dos primeiros sintomas do surto pilântrico que varre Brasília é a perda do recato. Os políticos se esquecem de maneirar. Noutros tempos, o toma-lá-dá-cá era mais sutil. Agora, para facilitar o trabalho do governo, os congressistas andam com o código de barras na lapela.

Na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara, Temer comprou à luz do dia a rejeição da denúncia em que é acusado de corrupção. O Planalto não se preocupou nem em tirar da decisão a marca do preço. Animado$, os aliados do presidente enxergam a próxima batalha como mais uma oportunidade a ser aproveitada.

Os partidos governistas transformaram o plenário, onde a denúncia contra Temer será votada a partir de agosto, numa espécie de câmara funerária com taxímetro. Quanto mais tempo demorar o percurso até o sepultamento da denúncia, maior será o preço. Nesse jogo fisiológico, o contribuinte brasileiro entra com o bolso.

O Congresso, como se sabe, é vital para a democracia. Mas a cleptocracia brasileira parece dar razão ao ex-chanceler alemão Otto von Bismarck, que dizia no século passado: “É melhor o povo não saber como são feitas as leis e as salsichas.”

Abespinhados com a colaboração judicial de Joesley Batista, grande fabricante de salsichas e produtos afins, os aliados de Temer tramam alterar as regras do instituto da delação. Querem restabelecer a lei da omertà, que garantia a cumplicidade e potencializava os trambiques.

Imaginava-se que a política fosse um imenso saco de gatos. Mas delações como as de Joesley e Wesley Batista ou as confissões de Emílio e Marcelo Odebrecht indicaram que, na verdade, a política virou um saco de ratos.

A mutação genética parece ter sido acelerada por um vexame do Tribunal Superior Eleitoral. No mês passado, submetido ao julgamento mais importante de sua história, o TSE livrou Michel Temer da guilhotina e poupou Dilma Rousseff da inelegibilidade.

Para isentar a chapa Dilma-Temer, a Corte eleitoral jogou no lixo confissões assinadas, documentos bancários, registros sobre o vaivém de malas de dinheiro sujo e otras cositas más.

Os parlamentares concluíram que Deus pode até existir, mas terceirizou a Justiça Eleitoral ao Tinhoso. Desde então, a doença do sistema político só piora. Nada se cria, nada se transforma na política. Tudo se corrompe. Transfigurou-se até o mecanismo de autoproteção. O velho espírito de corpo foi substituído pelo espírito de porco.

Fé cega, faca amolada

“Um brilho cego de paixão e fé, faca amolada.” Diante da cena de um líder cansado, roufenho, enumerando fantasias diante de uma plateia reduzida, anestesiada aos fatos, aplaudindo bovinamente nas pausas pré-fabricadas e entoando cantos religiosos, só me vinham à cabeça os versos de Milton Nascimento.

Lula deixou o terreno da política e está operando na seara do messianismo. Na quinta-feira passada, ao se defender da condenação a 9 anos e 6 meses de prisão, parecia mais um pastor de igreja neopentecostal do que um ex-presidente da República.

Ao desenhar um diabo, no caso Sérgio Moro, contra o qual os fiéis devem lutar; ao prometer o reino do céu a quem der seu dízimo e sua energia pela igreja-partido; e, sobretudo, ao atribuir os infortúnios a causas metafísicas, ele mostrou mais do que nunca o fenômeno que acompanha sua imagem desde o início, mas que agora se acentuou: o lulismo nada mais é do que uma expressão de messianismo.

A novidade pós-petrolão é que, diante dos fatos, ele se despiu do que já teve de significado histórico, político ou sociológico. O “messias” hoje se aproxima mais de figuras como Antonio Conselheiro ou Jim Jones, liderando poucos e fanáticos, que de outros líderes carismáticos da política a quem Lula sempre foi comparado.


E quando uma questão política se reveste de fé cega entra em campo a faca amolada, que mostra seu fio autoritário em falas como as vistas desde que Lula recebeu sua sentença.

O PT diz que não vai reconhecer (!) as eleições se Lula não puder disputar (será que o fará caso ele dispute e perca, uma hipótese bastante possível?), o partido promete “parar o País” em protesto contra a decisão de Moro, a igreja conclama seus fiéis a lincharem publicamente as instituições, um seguidor da seita apresenta uma emenda para impedir prisão oito meses antes das eleições, entre outras demonstrações de perigoso fanatismo político-religioso.

Como nos rituais que buscam o transe dos fiéis, o PT repete à exaustão que não há “uma única prova” contra Lula. Caso descessem do altar e fossem à sentença, achariam o encadeamento de todos os fatos e documentos que demonstram que Lula: 1) negociou o triplex do Guarujá; 2) fez chegar à OAS que seria bem visto que ela assumisse a obra quando a Bancoop ficou mal das pernas; 3) continuou a negociação do imóvel com seu chapa Léo Pinheiro, agraciado com lautos contratos por seu governo; 4) pediu, aprovou e vistoriou as reformas do apartamento.

Quem diz não é um delator vítima de semitortura, como Lula descreveu em um de seus recursos às “fake news” na quinta-feira passada. É um depoente que também foi condenado, cujo relato foi corroborado por vários outros.

Uma demonstração de que a fé cega prescinde de lógica ou coerência é que os documentos cuja existência os petistas negam foram periciados. A título de comparação, eles já aceitavam como verdade absoluta a gravação da conversa de Michel Temer com Joesley Batista antes mesmo da perícia.

No caso de Lula, os fiéis dizem que a prova de que o apartamento não era dele é que não está em seu nome. Mas, no de Temer, pouco importa se os R$ 500 mil de Rocha Loures chegaram ou não ao presidente. A corrupção passiva de um é diferente da do outro.

Também escapa aos fiéis o fato de que foi seu pastor quem indicou o “demônio” Temer. Não haveria o atual governo sem os de Lula e Dilma.

Assim, reduzido à figura de um missionário das próprias mentiras, Lula vai correr o Brasil repetindo sua ladainha cada vez mais delirante. A essa altura pouco importa se estará preso ou não em 2018: o mito foi exposto à luz e à própria mesquinhez. Cada vez mais prega apenas aos que estão cegos pela fé.

Paisagem brasileira

Arcos da Lapa, Rio (Leopoldo Gotuzzo)

As metáforas de Bobbio

Não são poucas as fantasias desfeitas e as ilusões perdidas que temos visto desfilar nos últimos tempos. Elas parecem passar mais depressa em períodos de crise vertiginosa e não poupam ninguém, mostrando os farrapos de bem e mal-intencionados, de “tribunos do povo” e adeptos de um liberalismo restrito. Difícil decifrar uma cena tomada pela centralidade dos órgãos de controle e pelos destroços de um sistema partidário que deveria vertebrar a institucionalidade democrática estabelecida há quase 30 anos.

Para usar uma metáfora de Bobbio, aliás, originalmente de Wittgenstein, cada um de nós terá alguns bons motivos para se sentir como a mosca dentro de uma garrafa, a esperar talvez por uma intervenção externa que a livre da prisão. A intervenção externa em nosso caso, segundo os defensores extremados da inédita ação corretiva em curso, viria pura e tão somente de juízes, delegados e promotores, mesmo quando, ressalvado o papel globalmente positivo que desempenham, fazem como o Bacamarte machadiano, para quem toda a Itaguaí deveria ser encerrada na Casa Verde; ou para quem, atualizando a trama, a atividade política só poderia recomeçar depois de encontrada uma “solução final” para a corrupção.

Não é possível existir tal ator externo – foi o que Bobbio defendeu contra Wittgenstein e é o que já podemos ver com mais clareza, especialmente com a colaboração premiada do dono da JBS, no curso da qual, a par dos mecanismos jurídicos, se destacou a movimentação propriamente política do procurador-geral na seleção de alvos e prioridades. Pode-se e, de resto, deve-se muito bem admitir a impropriedade do diálogo registrado no Jaburu, indicador, no mínimo, de uma relação promíscua entre o líder político e o megaempresário. No entanto, corresponde a uma escolha mais problemática definir o papel do atual presidente da República como o de “número 1” na sequência de atropelos institucionais da última década e meia, alguns dos quais, como na Ação Penal 470, foram objeto a seu tempo de sanção do Supremo Tribunal Federal.

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Se não há nenhum deus ex machina à nossa disposição, diante da atual miséria política nacional poderíamos talvez nos sentir como peixes apanhados numa rede – e é a segunda metáfora bobbiana a que recorremos para definir nosso estado de espírito. Estaríamos assim enredados num maniqueísmo indigente, a esbarrarmos uns nos outros com ódio, rancor e intolerância poucas vezes vistos e menos ainda previstos depois de 30 anos de vigência de amplas liberdades. Não soubemos nos autoeducar para a democracia ou então, à maneira de Weimar, vivemos numa democracia sem democratas, prisioneiros de culturas políticas que não se renovaram e, ao contrário, reiteraram alguns de seus piores vícios.

Tomemos, por exemplo, a cultura de esquerda, pelo menos a dominante. Após o longo ciclo autoritário, que expandiu e consolidou as relações capitalistas com sua mistura inseparável de arcaico e moderno, era de esperar que coubesse à esquerda – especificamente ao partido dos trabalhadores que surgiu ainda nos anos de transição – a função de esteio da política democrática: uma política de massas, culturalmente luminosa, capaz de promover os elementos modernos da nossa civilização e, aos poucos, cancelar os arcaísmos. Com frequência, no entanto, lemos seus documentos, observamos a ação de seus dirigentes e geralmente nos decepcionamos: a velha matriz de outros tempos – classe contra classe, proletariado contra burguesia – continua “produtiva”, mas produz menos a mudança e mais o alimento, no campo oposto, para uma direita igualmente primitiva e sectária.

Movimentamo-nos, então, como peixes aprisionados. Mas se trata de movimento rumo a uma saída catastrófica: levados para a margem, como lembra o filósofo, em vez da liberdade encontramos a morte. O que parecia saída era apenas a repetição do peso de chumbo da História: a “estadolatria”, o culto do chefe carismático, o sacrificium intellectus em suas mais variadas manifestações, a murchar o mundo da cultura ou a torná-lo tendencialmente irrelevante, à custa de adesões automáticas segundo o antigo roteiro dos “companheiros de viagem”, usados instrumentalmente e logo descartados.

O labirinto é a terceira das imagens bobbianas para figurar a condição humana e, nela, a dimensão política. Um labirinto sem saída, como convém a um pensador desconfiado de amanhãs radiosos e de uma humanidade utopicamente sem conflitos, ainda que insista, obstinada e racionalmente, em mudanças progressivas, “moleculares”, que possibilitem padrões de civilização mais altos ou, pelo menos, menos injustos. Mudanças essas que sempre foram, e presumivelmente serão, trabalho contínuo sobre madeira muito dura, baseado na disputa e na construção de consenso, na explicitação leal de divergências e na ampliação da tolerância entre os que divergem.

O labirinto é a política. Dentro dele temos de caminhar indefinidamente, contando tão só com nossas forças e nossa capacidade de invenção. Quedas e retrocessos nunca podem ser excluídos, mas temos a favor toda a caminhada anterior, isto é, o processo histórico, que, mesmo tragicamente acidentado, é um processo de criação de valores, entre os quais, como conquista difícil e sempre em risco, a democracia política.

Trinta anos de democracia não bastaram para civilizar as partes em conflito na cena brasileira. Mesmo na falta de alternativas radicais em confronto (e nem elas o justificariam), a divergência transbordou das redes “sociais”, infiltrou-se entre amigos, dividiu famílias. E criou impasses que não temos o direito de ignorar – afinal, o pecado mora ao lado, como nos mostra a desafortunada Venezuela de Chávez e Maduro. Segundo Bobbio, a arte de andar no labirinto – a arte da política – não é nada consolatória, mas, com o tempo, ensina a pressentir os caminhos bloqueados. Não é pouco.

A nossa derrota

Dia desses tive a oportunidade de ler uma interessante entrevista de um cidadão, apresentado como "especialista em segurança pública". Disse ele, lá pelas tantas, ser necessário que nossa sociedade avalie a quantas liberdades individuais está disposta a ceder em troca de segurança.

Decidi, diante de tal assertiva, lançar os olhos às nossas maiores cidades, permeadas por áreas dominadas pelo crime, nas quais o Estado simplesmente não se faz presente - e assim porque seus agentes somente podem lá entrar se autorizados pelo crime organizado.

Isso dá o que pensar: não há necessidade de se sacrificar nenhum direito civil para que o Estado esteja presente em cada um daqueles lugares - e eis aí algo óbvio! Aliás, ele lá estará fazendo exatamente o oposto, resgatando as liberdades individuais de uma esmagadora maioria de pessoas de bem que vivem sob o tacão de criminosos.

Recordei-me de que, no Brasil, apenas 8% dos crimes vão a julgamento, e apenas 1% dos criminosos cumprem suas penas até o final. Curioso, isso: colocar nossos aparelhos policial e judicial para funcionar de forma razoável não significaria a perda de nenhum direito civil - e muito pelo contrário!

Modestamente, não consigo ver solução outra para a grave questão da criminalidade: que o Estado esteja presente em todos os lugares, e que nossas leis sejam minimamente cumpridas. Quero crer seja isso algo básico em qualquer nação que se pretenda civilizada - e preze pelas liberdades de seu povo.

Nosso Estado, porém, fracassou. Não consegue impor a lei sequer em locais situados a poucos quilômetros de suas delegacias e tribunais. Falha em penalizar adequadamente de motoristas embriagados a assassinos e estupradores. Diante desta vergonha, que se busque saída outra, qual a de penalizar as vítimas - todos nós.

Olhe ao seu redor. Perceba a crescente quantidade de constrangimentos impostos às pessoas de bem. Seja no trânsito, seja no ingresso em prédios privados ou públicos, seja pelas ruas e praças, contemple uma sociedade a cada dia mais oprimida - em nome desta "cultura de segurança" criada para abafar a incompetência do Estado.

A grande verdade é que uma Sociedade que abre mão de liberdades duramente conquistadas, após séculos de sacrifícios imensos, para combater seja lá o que for, já está derrotada.

Pedro Valls Feu Rosa

'Muitos ricos se comportam como o crime organizado'

Dos Balcãs ao Brasil, o jornalista britânico Misha Glenny, ex-correspondente de guerra da BBC, observa de perto há 25 anos as emaranhadas redes do crime organizado e como elas espalham tentáculos pelo mundo. Ele testemunhou como a guerra civil que dividiu a Iugoslávia também serviu para criar nos Balcãs "uma máquina de crimes e contrabando com poucos paralelos na História". Também documentou a ascensão e queda de Antônio Francisco Bonfim Lopes, o traficante conhecido como Nem, que comandou a favela da Rocinha, no Rio de Janeiro.

Uma das hipóteses defendidas por Glenny é que o colapso da União Soviética foi a principal causa do aumento exponencial do crime organizado a nível global nas décadas seguintes. Esse é o principal fio narrativo de "McMáfia: o crime sem fronteiras", seu livro mais conhecido e que, neste ano, terá uma edição ampliada publicada e que servirá de base para uma série da BBC.

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Filho de um acadêmico da Rússia, o jornalista tem um interesse especial por essa região. Publicada originalmente em 2008, a obra de Glenny o mostra submerso no mundo do crime organizado mundial, desde às temidas gangues chechenas que operam em território russo às organizações que controlam o tráfico de caviar no Cazaquistão, passando pela venda de mulheres por beduínos para mafiosos russos em Israel.

Ele falou à BBC Mundo, o serviço em espanhol da BBC, sobre as mudanças no panorama global do crime desde que publicou seu livro, algo que aborda em sua nova edição, e como um acontecimento-chave relativamente recente, a crise econômica de 2008, influenciou neste cenário.

BBC Mundo - O título do livro se deve a um grupo checheno que, na Rússia, deixou que outros grupos usassem seu nome, como uma espécie de franquia, identificado pelo senhor como um novo "modelo de negócios" dentro do crime organizado, que foi usado também pelos Zetas, no México. Esse modelo segue prosperando?

Misha Glenny - Depende de onde se está geograficamente. Tornou-se muito popular na antiga União Soviética, era popular no México e é muito importante no Brasil, em especial com o PCC (Primeiro Comando da Capital, baseado em São Paulo). Não é tão popular na Itália, onde a 'Ndrangheta (na Calábria) e a Camorra (na Campânia e em Nápoles) dependem mais da estrutura familiar.

Mas a 'Ndrangheta está ficando tão poderosa e adquirindo um papel importante na importação de cocaína - no norte da Europa, sobretudo na Alemanha e na Escandinávia - que já passa alguns de seus trabalhos para grupos locais na Alemanha e na Itália.

O modelo de franquia tem feito muito sucesso. Por exemplo, com o PCC, que era uma organização local quando foi fundada em 1993 e agora está presente em 23 dos 26 Estados do Brasil, no Paraguai, no Peru e na Bolívia.

O PCC entendeu que o conhecimento dos locais é importante. Por isso, as franquias funcionam. É muito difícil para uma organização externa chegar com a sua gente em uma área urbana nova para começar algo, como um sistema de proteção por chantagem. Ou tráfico de mulheres ou drogas. Por isso, precisam de quem é local.

E os grupos locais entendem que o nome do PCC, dos chechenos ou dos Zetas confere credibilidade a eles. Acima de tudo, dá a eles o fator medo. A ameaça de que você pode exercer a violência. Porque todo grupo criminoso deve ser capaz de projetar medo.

A maioria deles, se foram inteligentes, evitarão a violência na medida do possível. Mas, se precisam utilizá-la deve ser de forma forte e decisiva.

BBC Mundo - No livro, o senhor fala da crescente importância do Brasil na exportação de cocaína para a Europa, na lavagem de dinheiro e no cibercrime.

Glenny - O que ocorreu foi que, nos anos 1980 e 1990, os cartéis de Cali e Medelin, na Colômbia, expotavam toda a cocaína que podiam para os Estados Unidos, que não era capaz de consumir tudo.

É preciso dar o crédito devido aos americanos por sua capacidade de consumir cocaína - têm 5% da população mundial e consomem 40% da produção global da droga. Mas, então, os cartéis colombianos começaram a buscar outros mercados.

Entenderam que na Europa poderiam replicar os padrões de mercado americanos. Houve então um enorme aumento do tráfico de cocaína da Colômbia para a Europa por meio do Brasil.

Surgiram grandes rotas: uma ao norte - com o envolvimento das Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia) - indo pelo Amazonas, o Estado do Pará e Suriname até a Holanda; a segunda ao sul, por Peru, Bolívia e os Estados de Mato Grosso e São Paulo. A cidade de Santos era o maior porto exportador de cocaína para a Europa via Espanha e Irlanda e também pela África Ocidental.

O Brasil logo adquiriu um papel crítico no envio de cocaína para a Europa. Mas, quando um país adquire um papel importante das rotas de tráfico de cocaína, rapidamente começam a surgir problemas com o vício. O Brasil é agora o segundo maior consumidor de cocaína no mundo, atrás dos Estados Unidos.

Foi nesse ponto, do final dos anos 1980 a meados dos anos 1990, que os lucros do narcotráfico no Brasil ficam enormes, que os grupos criminosos organizados começaram a se armar. Se você olha os bairros da Colômbia, comparados com as favelas do Rio, as favelas têm muito mais armas. E isso é uma consequência do comércio de drogas.

Outro país de importância crítica é o México, claro. O cartel de Cáli decidiu que a parte mais perigosa do processo - levar a cocaína para dentro dos Estados Unidos - seria "terceirizada" para grupos mexicanos. Dessa maneira, transferiram parte da violência da Colômbia para o México, onde alcança níveis intoleráveis.