quinta-feira, 4 de fevereiro de 2021

O que sempre fomos

O que é o governo Bolsonaro dominado pelo Centrão? É a política brasileira como sempre foi nas últimas décadas, a ponto de se duvidar se realmente tivemos uma alternância de poder de esquerda para direita. Talvez a periodização à qual historiadores costumam recorrer indique como último grande divisor de águas na política brasileira o processo de redemocratização do período entre 1985 e 1989 (sim, quatro anos decisivos).

Visto com uma distância de três décadas, o que se iniciou ali foi uma tentativa fracassada de estabelecer no Brasil um estado de bem-estar social aos moldes do sul da Europa, sem que cuidássemos que nossa economia de baixa produtividade e competitividade conseguisse financiar gastos públicos que subiram sempre acima da inflação, não importa qual fosse o governo. O encontro com a verdade chama-se crise fiscal.
Com maior nitidez desde aquele período grupos diversos foram capturando a máquina de Estado – ou ampliaram o domínio já existente (como ocorre com a elite do funcionalismo público, espalhada por autarquias, estatais e Judiciário). A política foi se reduzindo à negociação entre grupos esparsos, com cada vez menos direção central, para acomodar às custas dos cofres públicos interesses setoriais e regionais dos mais variados. Dentro de um ambiente de ideias que o sociólogo Bolívar Lamounier chama de “maçaroca ideológica”.

O “desenho” do nosso sistema de governo, que opõe o vitorioso num plebiscito direto (o presidente da República) a um Legislativo fracionado e de baixa representatividade (mas cheio de prerrogativas), com partidos dominados por caciques, “funcionou” nesses moldes até a quebra dos cofres públicos. A atuação desses “donos do poder” foi muito facilitada pelo fato de os setores privados da economia brasileira não terem sido capazes de desenvolver um “projeto nacional”, uma visão de conjunto que fosse muito além do que sempre foi o “norte” para gerações de empresários e banqueiros: garantir a amizade e a proximidade do rei.

A reforma de Estado ensaiada por FHC foi tímida, assim como as privatizações. O projeto petista do “nacional-desenvolvimentismo” (para dar um rótulo aos 13 anos) era uma obra conjunta com o Centrão, entendido como esse conjunto de forças políticas setoriais, regionais, unidas apenas no intuito de se apoderar de pedaços da máquina pública. Como se constata nos índices, a tal “preocupação pelo social” tão propalada naquele período não alterou fundamentalmente o País em termos de sua desigualdade e misérias relativas.

Ironicamente, a política brasileira parece ter mudado tanto nos últimos quatro anos (desde o impeachment de Dilma) para desaguar no mesmo lugar: no papel essencial dessas forças do Centrão, agora carregando consigo um presidente de escassa capacidade de liderança e que não entendeu onde reside seu poder: na possibilidade de ditar a agenda política, e não na tinta da caneta em suas mãos (que, aliás, encolheu bastante nos últimos dois anos).

Ao celebrar o entendimento político com os dois novos homens do Centrão no comando do Legislativo, Bolsonaro voltou a escancarar o fato de não ter estratégia nem saber o que quer, além de se reeleger. Trinta e cinco prioridades entregues ao Congresso é o mesmo que dizer que não tem nenhuma. Nessa “shopping list”, em parte a pedidos de seu ministro da Economia, estão matérias prometidas desde sempre (como reformas administrativa e tributária, além de privatização de estatais) que não progrediram basicamente pela incapacidade ou falta de interesse político por parte do chefe do Executivo.

É possível que o dia 1.º de fevereiro de 2021, data da oficialização do comando do Centrão nas principais esferas da política, talvez sirva aos historiadores no futuro para marcar o fim de um intenso período nessa linha do tempo, o da onda disruptiva de 2018. É também a data da dissolução da força-tarefa da Lava Jato, sem a qual essa onda é impossível de ser entendida. Talvez os historiadores no futuro considerem que não foi mera coincidência.

Presidencialismo, até quando?

Desde a minha infância tenho convivido com os dramas políticos pelos quais tem passado o nosso país. Dramas que se repetem há mais de setenta anos, com pequenos intervalos de normalidade.

Eu tinha apenas doze anos numa manhã em que as aulas foram interrompidas porque o presidente do Brasil havia se matado com um tiro no peito, em reação a uma crise política.

Sete anos mais tarde, mal começando meu curso de Direito, um outro presidente renunciou ao cargo após nove meses de mandato, por razões que até hoje ninguém compreendeu inteiramente. Um movimento militar tentou impedir a posse do vice-presidente. A reação popular frustrou a tentativa de golpe e o novo governo tomou posse apenas para ser deposto três anos mais tarde.

Seguiu-se um regime de exceção, que durou 20 anos, com generais sucedendo-se na Presidência do país. Suprimiu-se a democracia e o povo para que o país pudesse ser governado. Não adiantou muito. Quando tudo terminou a economia estava em péssimo estado, sem crescimento, com inflação muito alta e insolvente diante de uma dívida externa acumulada sem cuidados. A conclusão é que a democracia não era o nosso problema.

Na transição de volta à democracia, novo drama. O primeiro presidente civil, vindo de um movimento popular como símbolo da liberdade e da civilização, graças à sua longa biografia, adoeceu na véspera da posse e morreu dias depois, deixando em seu lugar um expoente da antiga ordem. Foi um anticlímax, com força para dissolver a energia cívica que havia se mobilizado no processo, o que explica muito as frustrações e o desencanto que se seguiram.


Num país ainda malferido por tantos eventos infelizes, uma nova Constituinte tentou construir uma república nova, mas contraditoriamente não mudou nada no velho sistema político. Esse sistema, como esperado, continuou produzindo as velhas instabilidades.

Em alguns poucos momentos o país foi bem governado, apenas por virtude do governante, mas foram pontos fora da curva. Dois novos presidentes não terminaram seus mandatos, atingidos por impeachments. A normalidade continuou não sendo o modo dominante de funcionamento da política brasileira.

No Brasil a instabilidade e a incerteza na ordem pública transmitem-se a todos os aspectos da vida e penso que explicam nosso fracasso até agora como país. Governos equivocados, e temos tido tantos, causam danos, às vezes irreparáveis.

Mais uma vez estamos diante do perigo. Em 2018 nosso povo elegeu para governá-lo um político sem biografia, um ex-militar que não passou de capitão do Exército e que por quase trinta anos foi um deputado obscuro.

Sua proposta de governo passa longe dos problemas reais da economia e da sociedade brasileira. Sua meta é blindar nosso país dos ventos da modernidade e das mudanças culturais do século XXI, num esforço reacionário para nos exilar de nosso tempo e do resto do mundo. Na frase inacreditável do nosso chanceler, o Brasil afirma o “orgulho de ser pária”.

O governo vai passar, mas suas consequências vão permanecer. A economia está estagnada e sem rumo. Somos o país que pior lidou com as questões sanitárias da pandemia. Não sei se era o que seus eleitores esperavam. Por isso, voltam a ecoar vozes que pedem o afastamento do presidente.

Nosso presidente é sem dúvida um problema, mas não é o problema principal. O presidencialismo e o sistema partidário são os verdadeiros erros do país. Sem eles não teríamos chegado a este ponto. Um impeachment é um remédio de emergência, que vai parar a dor, mas não vai curar a enfermidade, nem nos livrar para sempre dos Jânios, Collors, Dilmas e Bolsonaros. Só uma mudança no sistema de governo pode fazer isto.

Com o mesmo esforço político e com as mesmas maiorias parlamentares requeridas para o impedimento, o Brasil pode finalmente mudar o regime de governo, para alguma forma de semi-presidencialismo e ao mesmo tempo reformar radicalmente a vergonha do nosso sistema partidário.

Vamos tirar os olhos do chão e mirar o horizonte! O sofrimento de hoje deveria servir para alguma coisa.

O ‘povo’ e as avestruzes

A Constituição da República Federativa do Brasil diz, no parágrafo único do seu Artigo Primeiro: “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”. 

A Constituição está certa. Todo o poder emana do povo. Todo o poder emana das decisões do povo. Das suas escolhas, e dos indivíduos que elege. Está lá: “representantes eleitos”. 

Reparem —“representantes”. 

Nenhum parlamentar veio do espaço. Nenhum prefeito, nenhuma autoridade, nenhum vereador. Ninguém brotou no ar por geração espontânea. São todos frutos da mesma terra e, quer se queira, quer não, todos são gente nossa. 

Todos são, sem exceção — como você e eu — povo brasileiro. 

Povo é o desembargador sem máscara que dá carteirada no guarda municipal, o guarda municipal e o anônimo que registra a cena. 

Povo é um coletivo que nos inclui, não uma abstração filosófica para justificar teorias político-sociais a respeito do comportamento alheio. 

Todo país tem o governo que merece. 


Nós somos exatamente isso, esse Centrão amorfo, imoral, ávido pelas suas boquinhas. É um espelho horrível, que evitamos olhar: “Ah, não me interesso por política, não gosto”. Mas não adianta desviar o olhar, ou buscar a ilusão de que “povo” é uma entidade que fica lá longe (ou do outro lado).

A realidade não deixa de existir quando a avestruz enterra a cabeça na areia. 

(Na verdade, a avestruz não enterra a cabeça na areia. Avestruz faz ninho no chão e confere com frequência como estão os ovos, o que deu aos seus primeiros observadores ocidentais a falsa impressão de que enterrava a cabeça para fugir do perigo.) 

***

Houve momentos, ao longo do mandato de Rodrigo Maia à frente da Câmara — no final do Temer pós-Joesley, no começo do Jair pré- Queiroz —, em que ele pareceu ser maior do que era: uma figura sensata, uma espécie de primeiro ministro, o adulto da casa. 

Infelizmente, Maia falhou no que poderia ter sido o seu principal papel. Teve mais de 60 pedidos de impeachment para deter um presidente criminoso, mas tropeçou na mesma covardia do velho PSDB, que começou a sua marcha rumo ao pântano (e à irrelevância) quando não teve coragem de confrontar a popularidade de Lula no tempo do mensalão. 

A ideia de que um político pode fazer o que quiser desde que seja popular é um dos grandes alicerces da imoralidade da vida pública brasileira. É exaustivo perceber que todos são iguais perante a lei, mas os de sempre continuam sendo mais iguais do que os outros. 

Rodrigo Maia teve várias oportunidades de combater o bom combate; não esteve, porém, à altura do que se esperava dele. 

Ou, vamos ser sinceros: do que não se esperava. 

***

Bia Kicis na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados faz tanto sentido quanto Ricardo Salles no Ministério do Meio Ambiente, ou Ernesto Araújo no Ministério das Relações Exteriores. 

Parece deboche — e vai ver é mesmo. 
Cora Rónai

O ano começou?

Sento com meu café, acendo um cigarro e ouço a rua que acorda em sua calma desordenada. Acesso as notícias e leio por alto as mesmas notícias de ontem e antes. Lembro-me de uma consulta de saúde recente, em que a médica errou duas vezes a data na receita. “Ainda estou em 2020.”, seguido por um riso constrangido ligeiro. Junto os elementos, concluo que, realmente, quem pode culpá-la? Apesar de alguma decoração nova, o salão em que a vida dança parece estar sem alterações.

Em meio a passos de sutileza e de brutalidade, quem é o maestro? Existem duas maneiras de lidar com a orquestra invisível: usurpar a condução ou improvisar na pista. Porque a sinfonia é quase romântica, entrecortando períodos de passagem serena, bela, com rompantes tempestuosos, que afogam ou formam bons marinheiros. Na primeira opção, torna-se responsável por cada instrumento, e deve se preparar para o desafino eventual. Já na segunda envolve inovar enquanto os outros provavelmente seguem num ritmo homogêneo. Trata-se de reconhecer que seu papel não é reproduzir a reação a um agente externo, mas ter um ouvido atento às possibilidades que cada nota transforma.

Metáforas musicais à parte, quem poderia prever uma pandemia? E quando acharia que haveria uma rejeição moral à cura similar à Revolta da Vacina, apesar das diferenças. Quando um médico receitaria contra uma cura por ideologia? De 100 anos para cá, a diferença é a elite se rebelar contra o povo. Até faz o anti-herói dos filmes “Fuga de Nova York” e “Fuga de Los Angeles” soar sensato: “Quanto mais as coisas mudam, mais continuam as mesmas.”

O ano começou?, é a pergunta que o café me traz após o primeiro gole. Certamente uma nova época. Nada será igual depois da pandemia (vide o mercado de trabalho…). Os sons da rua, porém, em meio aos alarmes, berros do vassoureiro e do sacolé e a cortes monótonos de veículos, teimam em uma normalidade que não é nova ou antiga. É a vida que toca no palco. E, quanto a nós, dançamos conforme a música ou criamos nossas passadas.
Daniel Russell Ribas

Brasil de duas caras

 


Quadrilha

É com profundo sentimento de pesar que se anuncia o fim dos tempos. Sejam das reformas, da rotina política ou tudo o mais que tenha vida ou inspire esperança. Inclusive as soluções para o grande desafio da pandemia.

O ambiente político, dominado por Jair Bolsonaro e Centrão, é irreversivelmente estéril. Sem espaço para avanços ou reformas. Nem a administrativa (como enquadrar o funcionalismo com rigor em meio ao vale-tudo?); nem privatizações (conseguirão vender empresas por eles loteadas?); ou reforma tributária (é lícito perder receita para um projeto liberal que não existe?).

O Congresso renunciou à sua agenda própria. Enfraquecido, dividido e sob nova direção, restou ao Parlamento submeter-se à agenda do Executivo.

O governo, também fragilizado, não consegue adesões, sequer internamente, para suas propostas. O ministro Paulo Guedes é satélite e está estacionado há tempos. Seu anunciado pacote econômico não tem respaldo nem do próprio presidente.

A sucessão na Câmara e no Senado esgotou qualquer capacidade de ação coletiva. Nada se pode esperar além da aprovação de um orçamento caviloso e da indispensável bolsa social de sobrevivência no caos.

A lei é a do mercado persa. Vale tudo para vender.



Como nos versos da Quadrilha do poeta Drummond, o círculo é vicioso. Os elos, porém, não são de amor, mas de oportunismo.

Parlamentares negociam o mandato para fazer caixa eleitoral e alimentar sua campanha de reeleição. É só o que interessa nesses dois anos finais da legislatura. Com os bolsos cheios, fidelizam prefeitos. Uma vez reeleitos, voltam à boca do caixa e começam a vender tudo de novo. E assim sucessivamente: Jair paga a Arthur, que sacia o bando, que transfere ao prefeito, que elege o deputado, que vende seu voto ao governo, que financia a campanha.

Bolsonaro adquiriu com o Centrão o primeiro estágio do projeto da própria reeleição, além de miudezas do seu passivo judicial. Como, por exemplo, o engavetamento do impeachment e a suspensão das CPIs, a das Fake News e a dos crimes de gestão da pandemia.

Numa operação triangular, o Congresso pode ter levado de volta ao estoque um produto encalhado, a CPI da Toga. Quem sabe não conseguirá empacotar junto o comando dos três poderes para quitar sua fatura?

No varejo, há vistosos produtos de safra, indiferentes para o Centrão, mas que valem ouro no Palácio do Planalto. O armamentismo, por exemplo, é um. A macabra licença para matar, outro.

Os brasileiros não estão preocupados com os destinos de Rodrigo Maia, com a sorte de Simone Tebet, ou o sucesso de um futuro projeto democrático à sucessão presidencial. Para isso há tempo.

Tebet foi derrotada por ser candidata da Lava Jato. O deputado Rodrigo Maia perdeu na rasteira habitual de ACM Neto. Pedra cantada há duas semanas: Neto foi visto em festa com Bolsonaro num palanque entre Alagoas e Sergipe, em inauguração da ponte de Propriá. A Bahia, ausente do fato, estava na foto.

Neto já se opusera à primeira disputa da presidência da Câmara por Maia. Quando apoiou o candidato do então presidente Temer, Rogério Rosso, sentenciou sua filosofia: em eleição para presidente da Câmara não se fica, jamais, contra o candidato do presidente da República.

Além do mais, sua disputa pessoal com Maia é antiga e nos últimos anos a balança pendeu para o presidente da Câmara. Chegou ao momento de decisão. Ao destruir Maia, o demista baiano fez uma opção oportuna pensando no seu futuro. Quem sabe a associação Bolsonaro-Lira não representará sua bala de prata na próxima batalha com o PT, que, por acaso, tem na Bahia sua base estadual mais sólida?

Já aos brasileiros em geral sobra o bizarro desafio de apreciar a fusão das táticas milicianas do governo Bolsonaro com a súbita aparição de um novo protagonista alagoano.

Receita de Bolsonaro: sonegar

Em 1999, quando era pago pelos cofres públicos para se fazer passar por deputado, Jair Bolsonaro disse que "sonegava tudo o que era possível". Referia-se aos impostos que, apesar de todas as benesses, tinha de pagar e que, segundo ele, o governo mandava "para o ralo ou para a sacanagem". Ao admitir que sonegava, Bolsonaro estava incitando à desobediência civil.

Hoje, em que ele é pago pelos cofres públicos para se fazer passar por presidente, será interessante observar sua reação se uma pessoa com qualquer tribuna recomendar ao povo que deixe de lhe pagar impostos. Motivos para sonegação não faltam. Se são os impostos que permitem ao Estado funcionar e justificam sua existência, onde está a aplicação deles em saúde, educação, economia, segurança, transportes, ambiente? O país está se desfazendo —a pandemia avança à toda, brasileiros morrem por falta de oxigênio, milhões de jovens não sabem qual será seu futuro escolar, os investimentos evaporam, a mata é arrasada e o mundo nos olha com escárnio e estupor. Antes fossem o ralo e a sacanagem. Com Bolsonaro, é a morte.




Como nunca geriu nem uma quitanda de açaí, ele não está nem aí para o Executivo, exceto o comando deste. E, quando se diz que é para ele que pagamos os impostos, é literal. Estamos pagando para que se reeleja.

São nossos impostos que bancam suas viagens de campanha pelo Nordeste, o suborno de prefeitos e ruralistas, os outdoors que cobrem as estradas do país com sua foto. É um palanque nacional. Mas nada supera a farsa desta segunda-feira: pagamos a Bolsonaro para ele comprar os políticos que irão protegê-lo do impeachment, aprovar suas pautas assassinas e garantir sua reeleição. E as emendas e verbas que lhes ficou devendo são apenas a entrada —as futuras prestações lhe custarão muito mais.

Não a ele. Custarão a nós —a não ser que sigamos o seu exemplo e passemos a sonegar.

Festa, mentiras e videotapes

Quem tem 35 prioridades no meio de uma crise desta dimensão não tem nenhuma. Mas foi essa a lista que o presidente Jair Bolsonaro entregou ontem ao Congresso. Quem acha que o importante é o homescholling não tem ideia da tragédia que está acontecendo na educação brasileira, com 47 milhões de estudantes longe das escolas. Quem acha que o importante é liberar armas num país em que há um milhão de civis armados, como este jornal informou, quer alimentar a formação de milícias no Brasil.

Na abertura do ano legislativo, a oposição recebeu o presidente com gritos de “genocida” e “fascista”, e os governistas responderam com “mito, mito”. O presidente Bolsonaro, diante disso, afirmou que foi deputado por 28 anos e nunca desrespeitou as autoridades. Ele disse que fuzilaria Fernando Henrique e exaltou torturadores de Dilma Rousseff. Só para citar duas agressões das muitas com as quais ele cimentou sua notoriedade. No seu discurso, ele falou uma coleção de mentiras. O espaço é curto para listá-las. Falarei de uma. Bolsonaro disse que concedeu mais títulos de terra do que os distribuídos nos 14 anos anteriores. Mentira. A média anterior era três mil títulos distribuídos por ano. A pesquisadora Brenda Brito, do Imazon, conta que em 2019 houve “um apagão fundiário”. Foram apenas seis títulos. No blog, publiquei nota com gráficos. Os dados foram obtidos pela ONG graças à Lei de Acesso à Informação.

Os novos presidentes da Câmara e do Senado, o deputado Arthur Lira (PP-AL) e o senador Rodrigo Pacheco (DEM-MG), foram ao Palácio do Planalto ontem cedo e fizeram declaração pelo combate à pandemia e seus efeitos econômicos. A cena pública estava correta, as palavras eram boas, mas era impossível não compará-las com o que fora feito pelo deputado Arthur Lira e outros parlamentares e ministros.



A festa espalha vírus promovida pelos vitoriosos da Câmara dos Deputados, com a presença de dois ministros, foi um ultraje. Organizar esta festa é crer na impunidade. Participar dela, sem máscara, dançando e se aglomerando entre 300 pessoas é uma demonstração de que para esses ministros e parlamentares a vida dos brasileiros não tem valor. A festa em plena pandemia, como escrevi no blog, é um tapa na cara do país.

A primeira urgência na pauta do Congresso é ter um orçamento, porque sem isso alguns serviços essenciais podem entrar em colapso. O Ministério da Economia quer o orçamento aprovado até março. Na lista do Ministério há também a PEC Fiscal e a aprovação de marcos legais. Entre eles, o do petróleo, que permitirá que se possa ter concessão em áreas onde há o modelo de partilha. Os outros marcos são de ferrovias, cabotagem e do setor elétrico.

Nenhum desses é simples. Para se ter ideia, o senador Rodrigo Pacheco prometeu colocar hoje para votar a MP do setor elétrico, antes que ela caduque na semana que vem. Ela reduz os incentivos às novas fontes renováveis, solar, eólica, biomassa, e cria um encargo na conta de luz para financiar a interminável e caríssima Angra 3.

A atenção de Jair Bolsonaro está em outros pontos da sua lista de prioridades. Quer aumento de armas nas mãos dos extremistas que o apoiam e a retenção de crianças e adolescentes em casa, sob o argumento medieval de que só os pais sabem o que deve ser ensinado.

Há momentos no Brasil em que a dúvida é quanto mais podemos piorar. Certamente um passo na decisão da piora aguda é pensar no nome da deputada Bia Kicis (PSL-DF) para a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ). Ela é protagonista de uma série infindável de agressões ao direito, à ciência e à democracia. Propagadora de mentiras. Em plenário, defendeu a intervenção militar em caso de divergência entre poderes, dizendo que este é o sentido do artigo 142. Está sendo investigada por envolvimento em atos que pediam o fechamento do Congresso e do Supremo. Que uma pessoa que proponha rasgar a Constituição seja cogitada para a Comissão que deve zelar pelos princípios constitucionais é uma anomalia que ilustra os tempos atuais.

O senador Rodrigo Pacheco, lembrando JK, falou muito em pacificação. Soa bonito. Juscelino fez alianças com adversários pela frente ampla, mas sabia com quem não deveria buscar a pacificação. Com a ditadura militar, que o cassou e que inspira Bolsonaro.