quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

Uma paradinha rápida para reabastecimento de esperança, se ainda tiver no mercado.
Mas mesmo sem ela vamos em frente com a cara, a coragem e a dignidade, que não devem nada a ninguém e são à prova de corrupção. Tesouros que ladrão não rouba nem governo se atreve a taxar.    

A racionalidade irracional

Eu digo muitas vezes que o instinto serve melhor os animais do que a razão a nossa espécie. E o instinto serve melhor os animais porque é conservador, defende a vida. Se um animal come outro, come-o porque tem de comer, porque tem de viver; mas quando assistimos a cenas de lutas terríveis entre animais, o leão que persegue a gazela e que a morde e que a mata e que a devora, parece que o nosso coração sensível dirá «que coisa tão cruel». Não: quem se comporta com crueldade é o homem, não é o animal, aquilo não é crueldade; o animal não tortura, é o homem que tortura. Então o que eu critico é o comportamento do ser humano, um ser dotado de razão, razão disciplinadora, organizadora, mantenedora da vida, que deveria sê-lo e que não o é; o que eu critico é a facilidade com que o ser humano se corrompe, com que se torna maligno. 

Aquela ideia que temos da esperança nas crianças, nos meninos e nas meninas pequenas, a ideia de que são seres aparentemente maravilhosos, de olhares puros, relativamente a essa ideia eu digo: pois sim, é tudo muito bonito, são de facto muito simpáticos, são adoráveis, mas deixemos que cresçam para sabermos quem realmente são. E quando crescem, sabemos que infelizmente muitas dessas inocentes crianças vão modificar-se. E por culpa de quê? É a sociedade a única responsável? Há questões de ordem hereditária? O que é que se passa dentro da cabeça das pessoas para serem uma coisa e passarem a ser outra?

Uma sociedade que instituiu, como valores a perseguir, esses que nós sabemos, o lucro, o êxito, o triunfo sobre o outro e todas estas coisas, essa sociedade coloca as pessoas numa situação em que acabam por pensar (se é que o dizem e não se limitam a agir) que todos os meios são bons para se alcançar aquilo que se quer.

Falámos muito ao longo destes últimos anos (e felizmente continuamos a falar) dos direitos humanos; simplesmente deixámos de falar de uma coisa muito simples, que são os deveres humanos, que são sempre deveres em relação aos outros, sobretudo. E é essa indiferença em relação ao outro, essa espécie de desprezo do outro, que eu me pergunto se tem algum sentido numa situação ou no quadro de existência de uma espécie que se diz racional. Isso, de facto, não posso entender, é uma das minhas grandes angústias. 
José Saramago

O sol para todos

Vou arriscar. O ano de 2015 foi regido por Shiva, o aspecto da Tríade hinduísta que tem em Brahma, o criador de tudo, a inteligência suprema, a mente cósmica, a emanação; em Vishnu, a força mantenedora, o dharma, o dever de fazer o que é certo e correto; em Shiva, a força destruidora, não daquilo que é ainda necessário, mas do que se esgotou, que enfaixa uma situação. Shiva destrói a casca do egoísmo e permite a libertação da consciência.

No ano que se finda Shiva deu golpes certeiros em quem se acreditava ao reparo das atenções divinas. Colocou em crise quem adota qualquer método para atingir seus fins. Para alguns intocáveis fez ruir a ilusão da impunidade. Rachou alicerces que pareciam eternos.

Se nas dificuldades existe uma importante lição, chegou para muitas pessoas a hora de apreender e, para outras, compreender o que não sabiam.


Embora ser rico ou ser pobre sejam coisas que nos acontecem, saber ser rico ou ser pobre é algo que nós produzimos por dentro. O que nos faz felizes não é essencialmente aquilo que temos, mas sim o que nós somos.

Ser rico não é pecado, e ser pobre não é virtude. O pecado é não saber ser rico ou ser pobre, pois os dois aspectos têm aspectos positivos, virtudes e defeitos.

O que não pode acontecer é ser egoísta, figura antidivina, e, por isso, não conseguir compreender o que é sublime sem adquirir “pureza de coração”, aprofundados no nível mais cruel da vida.

Existe uma lei cósmica infalível que gera o enriquecimento do homem que em si mantém uma atitude doadora, que está sempre disposto a dar do que tem e a dar o que é. Isto é, ajudar os semelhantes com o que possui e com aquilo que ele “é”. Não basta “fazer o bem” dando coisas – é necessário também “ser bom”, dando a própria capacidade e exemplo.

Os cálculos mesquinhos podem lograr êxito por algum tempo, mas certamente sucumbirão a sua inconsistência crônica.

Quem sabe que é embaixador de Deus aqui, na Terra, e em outros mundos trabalha por amor a sua grande missão. E é por isso que ele trabalha com alegria procurando a perfeição, tanto nas coisas grandes como nas coisas peque­nas.

Não subestima os detalhes, não trabalha para ter público que o aplauda. Receia os louvores e não se deprime com as censuras. Consegue aceitar com razoável indiferença as homenagens e as vaias, porque se libertou das escravidões do homem raso e se revestiu da luminosidade do homem que pratica a Verdade.

Podemos prever – e não há por que imaginar que de repente tudo cesse – que 2016 será um ano predominantemente dedicado aos acertos de Shiva. Um ano fundamentalmente útil para apreender novas e melhores formas de convivermos.

Precisamos agradecer a cada dia não só os amigos que nos confortaram, mas nossos adversários que nos estimularam a vigiar constantemente, a sermos mais compreensivos e compassivos.

Na vida tudo tem sentido e utilidade.

Desejo, assim, que “você” tenha a força para desempenhar seu papel em plenitude – festejando as 365 vezes em que o sol nascerá em 2016, permitindo-lhe corrigir-se e ampliar suas virtudes
.

Impossível domar o bom monstro

A matriz econômica que criou as empresas campeãs, a complacência com a inflação, as regras intervencionistas nas concessões de PPPs, as intervenções desastrosas no setor de energia, do açúcar e do álcool, o controle irracional de preços administrados, a inconsistência regulatória e a insegurança jurídica fortaleceram o monstro que é a economia brasileira. Nossa economia está disfuncional. Não apenas pela crise econômica nem somente pelas investigações da Operação Lava-Jato, mas pelo descompasso entre as respostas do mundo político à situação que se apresenta.

No passado recente, as intenções eram as melhores possíveis: acelerar o crescimento, criar empresas nacionais com robustez internacional, distribuir renda e aliviar os problemas sociais crônicos. Uma espécie de Frankenstein, um bom monstro. O projeto, porém, tinha pés de barro e cabeça de vento. Não deu certo. Não há crescimento sustentável na base da bolsa TJLP sem regras claras e segurança jurídica.


A impossibilidade de domar o bom monstro se revela no fato de que, mesmo tendo boas intenções, ele não é bom. Sua essência, como tal, pressupõe interesses que, aparentemente, bons não são. O bom monstro existiria para a prática de uma espécie de colonização dos interesses do povo. Um sistema gerado pela soberba ideológica justificado a partir de um ideário de boas intenções. Numa sociedade de paspalhos e néscios, as boas intenções seriam suficientes para nos resgatar do fracasso. Mas não é bem assim que o mundo real funciona. Nem deve ser assim por aqui.

Qualquer projeto de poder que assuma a direção dos destinos dos homens com uma vocação salvacionista deve ser repelido como escravagista e colonizador. Não é o caminho certo para se construir uma sociedade livre e responsável, de direitos e deveres. Não faz sentido superlotar uma sociedade de benesses sem lhe dar a noção de direitos e responsabilidades. Não funcionou nos países socialistas, apesar da força da ditadura que tentou implantar tal modelo social e econômico.

No Brasil de hoje, não havia clareza de que as benesses eram condicionadas ao momento fiscal. Sacrificou-se o equilíbrio da nação para manter a distribuição de recursos para os programas sociais. Com isso, o governo enganou a todos, já que, no limite, podemos entrar em default. É a síndrome do bom monstro que tudo faz para agradar. Inclusive, sem querer, matar a todos.

Hoje, o bom monstro nos mata com a inflação recorde, o desemprego e o desinvestimento. Infelizmente, a recessão e o insucesso não fizeram, ainda, com que o bom monstro fosse para o Polo Norte ou sumisse da humanidade, como no romance de Mary Shelley. Vamos penar algum tempo até que o fracasso seja grande o suficiente para forçar um novo jogo. A opção do momento é tentar conciliar as boas intenções do bom monstro com a dura realidade atual.

As chances de dar errado são imensas. Não é hora de conciliar. Mas, sim, de enfrentar os desafios e reconhecer o fracasso da matriz econômica que robusteceu o monstro que nos escraviza. Em não acontecendo o desafio fatal, prosseguiremos em nossa sina de acreditar que o monstro é apenas desastrado. Disse a poetisa portuguesa Florbela Espanca: “de tudo o que nós fazemos de sincero e bem intencionado alguma coisa fica.” Digo eu: até mesmo os efeitos perversos de nossas escolhas e de nossos fracassos.

Perdido por um...

O ano se foi pelo ralo e o país acabou na lama do volume morto. Perdeu-se um ano, o que não se recupera senão em anos. Ainda foram para o brejo as proclamadas conquistas sociais do petismo.

A situação crítica gerada pela incompetência e os mandamentos ditatoriais do esquerdismo mambembe fizeram e farão nos próximos anos mais mal aos mais necessitados como nunca antes na história deste país.

A proliferação de bolsas não poderá suprir o desfalque nos bolsos proletários com alta inflação e taxas assustadoras de desemprego.

A megalomania de serem os melhores para governar fez com que os mais abastados se dessem bem, pagando um troquinho de dízimo partidário.

Boa vida terão os ricos, os que vivem nas boquinhas e os escalões governamentais do comissariado, sem contar a tropa de corruptos a serviço partidário. Medíocres e ideologicamente ultrapassados, fizeram o Brasil dançar.

A conta agora está na porta para ser paga e anunciam que será rateada inclusive por quem ainda nascerá.

Um governo que endivida o próprio futuro da nação não tem crédito. Pagará nas páginas da História como devedor eterno do prejuízo de levar fome e desespero a milhares de cidadãos.

Governo perdido por um, perdido por mil anos.

'Ser feliz sem motivo é a mais autêntica forma de felicidade'

Se fosse obedecer ao que agora me diz o insistente diabinho da vaidade ou da soberba que habita em todos nós e, constantemente, nos desafia, sucumbiria ao silêncio. Ou, quem sabe, caso isso fosse possível, me ateria a uma coluna só preenchida – por quê não? –, em letras garrafais (ainda se usa essa expressão?), com a frase que dá título a estas últimas linhas do ano. Carlos Drummond de Andrade, que conheci pessoalmente e de quem fui contemporâneo (que honra!) no velho e sempre saudoso “JB” (lembra-se, leitor, desse grande jornal?), e de quem recebi o poema inédito “Minas Mineral” para publicar numa das suas edições especiais, coordenada por mim, é o autor desse belíssimo verso que, de maneira muito simples, diz absolutamente tudo.

O pensador e escritor francês George Bernanos, que, durante alguns anos, residiu na cidade mineira de Barbacena, também disse que “saber encontrar alegria na alegria dos outros é o segredo da felicidade”. Publicamos dele, na revista “Coluna”, do Centro Acadêmico Afonso Pena, da Faculdade de Direito da UFMG, artigo inédito – uma descoberta, com minha ajuda, do amigo e poeta Pierre Santos – dedicado ao também saudoso médico João Resende Alves. E foi nele que Bernanos nos deixou esta lição inesquecível, que me acompanha desde 1957: “A vida não é um problema a resolver, é um risco a correr – o maior de todos os riscos”. O ato de viver, além de arriscado, exige coragem. 

E é por aí, de risco em risco, que vou trilhando um caminho que a vida me ofereceu (pois, sinceramente, nem sei se de fato o escolhi…), cujo fim é uma realidade mais do que palpável, mas que sempre nos negamos a aceitar. Confesso, contudo, humildemente, que não é só a procura da felicidade que me preocupa e me leva a esse desabafo impróprio e talvez desnecessário. É a tristeza que toma conta de mim logo às vésperas do Natal. Não sei ao certo se a palavra perdeu mesmo a delicadeza que tinha antes, como disse, em sua coluna (“Natal Desesperado”), o cronista e cineasta Arnaldo Jabor. Nem se é o Menino Deus que me leva a refletir, sem dúvida com mais consciência, mais do que normalmente já o faço, sobre a verdade, a justiça e a compaixão.
É do meu irmão Otto Lara Resende a seguinte frase: “Todo mundo que cruzou comigo, sem precisar parar, está incorporado ao meu destino”. Talvez seja isso, a preocupação com o “anônimo” (que, por si só, vale pouco), que me deixa mais triste nas festas de fim de ano.

Ademais, elas me fazem recordar a minha infância (que deve ter sido boa…) e, também, de entes da minha família, que já se foram, e, simultaneamente, de velhos amigos, que, sem aviso prévio, igualmente se foram. Enquanto vivos, sempre me pareceram eternos.

Pior, todavia, do que a morte de familiares e amigos, talvez seja a decepção com alguns (ou com todos?) dos vivos, em todo sentido, que se transformaram em políticos ou agentes públicos, embora totalmente destituídos, desde sempre, de um mínimo de sensibilidade diante do sofrimento humano. O que se passa, por exemplo, no Rio de Janeiro, com o setor da saúde, dói como uma punhalada no peito. Mas nem por isso os responsáveis por essa calamidade deixam de dormir…

Perder a esperança é puro desperdício. Que nossos atuais (e futuros) governantes botem a mão na consciência e, enfim, sucumbam a estas palavrinhas milagrosas: verdade, justiça e compaixão
Elas são indispensáveis à missão de nos representar.

Feliz Ano Novo para todos!

Mariana, não esquecemos!

Samarco
“O rio Doce corria majestoso entre as escuras florestas que o margeiam. Completa calma reinava em toda a natureza (...) Solidões vastas assim têm qualquer coisa de importante e eu me sentia humilhado diante dessa natureza tão possante e austera”. A descrição é do naturalista francês Auguste de Saint-Hilaire, que em 1818 percorreu o rio em expedição. Hoje, imaginar a exuberância daquele cenário chega a levar às lágrimas, quando se tem a dimensão do “golpe de morte” desferido na Bacia Hidrográfica do rio Doce em nome da busca desenfreada pelo lucro.

quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

Dilma previsao futuro 2016 cigana corre em panico medo grito munch

Ano Novo?

Chega o Ano Novo (do calendário), e eu me sinto mais velho do que nunca. E o nunca é uma palavra pesada porque — além de predispor quem a usa ao traiçoeiro cacófato (veja-se, o trivial e horrível “nunca-ganha”) — ela se refere a um tempo sem tempo...

O fato, porém, é que o menino dentro de mim tem que segurar esses incríveis dois milênios, uma década e seis anos. E o menino é também um velho — ou um jovem de idade, como me diz um bondoso geriatra —, está tão alarmado quanto esperançoso. Já tivemos passagens mais auspiciosas e menos vexatórias.


O novo ano que era sempre “bom” tornou-se duvidoso. Todas as previsões econométricas e éticas dizem que ele vai ser um ano ruim. Mas como festejar um “mau ano” na virada protocolar com a qual marcamos o tempo, dividimos eras e, mais uma vez, tentamos cortar a água?

Revolvi calendários de muitas crises — suicídio de Vargas, golpe militar, ditadura, ato institucional, prisões por motivos políticos, ódios partidários irremissíveis, discussões acaloradas permeadas de bofetes, hiperinflação e roubalheiras com macumba presidencial — e eis que muitos desses supostos antigos brasileirismos estão na nossas costas neste ambíguo e novíssimo 2016.

Posso fugir do espaço, mas não posso me evadir do tempo. E para aumentar minhas ansiedades, inauguramos um belíssimo Museu do Amanhã justo num momento que o amanhã ensolarado do progresso, da solução de problemas recorrentes, e de um Brasil mais justo, administrado com mais rigor e honestidade, sumiu de todos nós.

Em 2016, não será fácil “arrumar” esse nosso Brasil do qual sabemos mais do que queremos. A restrospectiva é tenebrosa.

Jamais vi em toda a minha vida um desmanche tão grande do drama político nacional.

Jamais fui espectador de tantos atores medíocres tentando fazer o papel público que lhes cabia desempenhar e, em pleno ato, desabando pela mais completa ausência de sinceridade diante do papel. A presidente, por exemplo, não consegue acertar as falas nem quando as lê!

Não se assiste a tal desastre sem pedir de volta o dinheiro da entrada. Imagine a cena: o presidente da Câmara, sério e de olho na câmera, diz não ter conta na Suíça. Dias depois, a procuradoria suíça o desmente. O presidente nega mentira dita em tempo real. Uma lógica idêntica enquadra o presidente do Senado, o qual fala como um pároco moralista, quando se sabe que ele próprio deve explicações à Republica. Mas, muito pior que isso, é aguentar a recapitulação da roubalheira planejada e consentida da Petrobras. Um roubo inédito do governo roubando a si mesmo.

E nisso vai a conta dos generosos empréstimos do BNDES ao Sr. Bumlai, amigo do peito do ex-presidente Lula, um cara que tinha entrada livre no Palácio. Um amigo de fé mas com o qual Lula somente falava de coisas banais e impessoais. Nem futebol Bumlai discutia com Lula, o qual, como informante da polícia, afirma que a Petrobras era controlada pelo famoso “guerreiro do povo brasileiro”, José Dirceu. Herói injustamente condenado que, contudo, teve a imaginação e a capacidade para ganhar mais do que nós recebemos em todas as nossas vidas enquanto estava é mais embrulhado com a lei do que presente de Natal. Dentro em breve, porém, eis uma boa nova no novo ano: circula que ele será indultado.

No Brasil sempre valeu o axioma do “aos inimigos a lei; aos amigos, tudo!” Menos, é claro para o ex-presidente Lula, para a presidenta Dilma e para os petistas graduados. Entre eles, não cabe esse lema político que tem fabricado a História do Brasil e explicado o país mais do que a fábula da tal “Revolução Burguesa”. Revolução aliás, com burguesia, mas sem os burgueses de Maupassant, Balzac e Flaubert.

Vamos entrar 2016 com a República nos devendo muito. Sobretudo no que tange ao equilibrio delicado entre Executivo, Legislativo e Jucidiário, pois o que testemunhamos é o alto risco de um total desequilibrio entre esses poderes. Isso para não falar da Procuradoria-Geral da República e da Polícia Federal.

Mesmo não sendo pessimista, eu sei que devemos todos passar por um sério momento de reconstrução da honestidade e do sentido de dever neste ano de 2016. Caso contrário, morremos civicamente.

De um lado, tudo retorna mas volta como farsa, conforme se gosta de repetir, mas como densa tragédia; do outro, tudo vai ser novo e cristalino porque assim exigimos. E nisso está, espero, o espirito de 2016.

Feliz Ano Novo!

Roberto DaMatta

Obra do diabo

A colheita será sempre de acordo com a qualidade da semente plantada. E eleição também não deixa de seguir esse princípio.

A verdade é que temos votado mal – nossos votos têm sido como sementes podres. Votar nesses candidatos do PT é plantar em terras áridas e desérticas. Mais cedo do que pensamos, vamos ver a desgraça que foi o inverno tenebroso do período Lula-Dilma – o tempo é o senhor da razão, diz o provérbio português.


Política é mesmo uma ciência do diabo, e o Brasil, tudo leva a crer, fez pacto com o demo. De acordo com o dito popular, pau que nasce torto morre torto, e nós, brasileiros, entortamos antes de nascer...

Imaginem só: o que aconteceu com Tancredo, fruto de armação do Ulisses, fez sobrar para nós o Sarney, que continua frequentando, como alma do outro mundo, os acontecimentos que marcam isso que está aí – uma verdadeira obra do diabo.

Apesar da vaidade do Fernando Henrique, o que teria sido de nós, nesse inverno petista que dura mais de doze anos, não fosse a modesta clarividência de Itamar Franco, autor do Plano Real?

Minha geração e as seguintes pagarão a conta, pendurada por um governo de analfabetos, que teve como sucessora, no mínimo, uma mentirosa. Que dizer de uma “doutora” que se diz orgulhosa pela conquista da mandioca, “uma coisa muito importante”? E o inventor da figura, o ex-Luiz? Escolheu alguém que o sucedesse sem deixar dúvidas de que era um produto de sua própria ignorância e de ninguém mais. E deu no que deu.

Ao final deste ano que se encerra depois de amanhã, o Brasil, sempre varonil, estará devendo U$ 550 bilhões e mais R$ 2,5 trilhões, mais ou menos, R$ 4,5 trilhões... E para onde terá ido esse dinheirão, a não ser para a corrupção? A Constituição cidadã de 1988 manda que essa dívida seja auditada. Foi? Foi e continuará sendo, no dia de São Nunca, na parte da tarde...

A partir do dia primeiro, ou seja, a partir de sábado próximo, até meados de junho, nós, brasileiros, estaremos trabalhando só para pagar impostos. Pagamos imposto pra tudo, até pra dormir, e adiantado. Após o ano fiscal, que coincide com o ano civil, todos nós faremos nossa declaração de renda e ficaremos esperando o resultado. Quem fez negócios no ano findo já pagou na fonte, e quem vive de vencimentos, a maioria esmagadora dos brasileiros, vai esperar a boa vontade da Receita Federal para ter a devolução dos impostos pagos adiantados e em excesso.

Mas cada povo tem o governo que merece. Então: ou nós entendemos isso ou vamos viver eternamente deitados em berço esplêndido, morrendo de raiva com nossa própria apatia.

Enquanto tudo isso acontece, transformaram o Cunha, que também não é santo, em protagonista desse filme de terror e desviaram a atenção da Lava Jato dos verdadeiros culpados. E o ex-Luiz continuará fazendo conferências para trouxas e Dona Dilma voando com ar “blasé” apreciando enchentes com cara de piedade. E o povo? Ah! Sim, o povo...

Vida de parafuso

O parafuso anda cheio,
pois tem o corpo enrolado,
cabeça partida ao meio,
e vive sendo apertado

Izo Goldman

O ódio na política e a política do ódio

A divisão do Brasil de alto a baixo, as ideias raivosas que poluem as redes sociais e lamentáveis episódios de truculência e intransigência fazem relembrar, nesta virada de ano, um dos grandes filmes de Bernardo Bertolucci: 1900. Não é o caso de analisar sua genial narrativa, um pouco maniqueísta, é verdade, da luta de classes no século passado e da ascensão de duas ideologias totalitárias tão marcantes do século XX; o fascismo e o comunismo.

A cena final serve como exemplo do risco do ridículo que corre a atual polarização político-ideológica, se continuar na mesma toada. Só para relembrar, nela Bertolucci satiriza com muito bom humor a luta de classes, em vez de legitimá-la. Já velhinhos, de bengala e se arrastando, os personagens Olmo (Gerard Depardieu) e Alfredo (Robert De Niro) prosseguem com sua briga incansavel, enfadonha e inutil, como se assim marchassem para o fim de suas vidas.

Relembrar a cena magistral do cineasta italiano nos faz rir mas, na vida real, no Brasil de hoje, não tem a menor graça. Tudo o que foi construído por um meio de uma longa e custosa engenharia política, onde a travessia da ditadura para a democracia e a transição do governo FHC para governo Lula foram dois marcos, vem sendo consumido pelas chamas da insensatez, pelas labaredas da intolerância, que queimam o Brasil no norte a sul, de leste a oeste.

Sabe-se como isso começou e qual é a cota que cabe a cada um neste latifúndio. Mas é melhor não esmiuçar, até para não jogar mais lenha em uma fogueira já em alta combustão. Importa aqui chamar a atenção para dois sentimentos negativos que urge ser combatidos.

O primeiro deles é o ódio à política. Até certo ponto e grau é perfeitamente compreensível o senso comum de largos contingentes da sociedade, segundo o qual a política é uma coisa abjeta, exercida para que muitos possam dela se servirem. Os sucessivos escândalos dos últimos treze anos, o mundo carcomido da política real, elevaram tais sentimentos a um novo patamar.

Compreender não é sinônimo de aceitar ou concordar. E muito menos de não lutar para sua superação. Tal como está posta, a rejeição à política gera uma postura niilista, conformista. Além de abrir espaço para novos Messias e aventureiros.

Sim, Churchill tinha razão. “A democracia é o pior forma de governo, excetuando-se todas as demais”. Fora da política, a barbárie.

A segunda onda é mais deletéria. É a política do ódio, algo elaborado e praticado por forças que se apossam do senso comum das massas, do seu desencanto, para introduzir na nossa cultura a intolerância, a intransigência. Com vistas a objetivos obscuros e totalitários.

Estamos, portanto, diante de um ódio elaborado, erigido à ideologia, a uma espécie de religião, a uma nova cruzada. É uma nova concepção totalitária que se manifesta a destra e a sinistra, a montante e a jusante. Que entende o ódio como a continuidade da política por outros meios, numa deformação grosseira do pensamento do gênio militar Clauzewitz.

Errado!

O ódio é a negação da política no seu sentido mais nobre. Aquele descoberto pela Grécia Antiga, como o meio civilizado de a humanidade equacionar os seus conflitos.

Neste final de ano, além do filme de Bernardo Bertolucci, vem a mente um fato marcante da eleição de 1974. Naquele ano, um político ainda jovem se elegeu senador em Pernambuco. Seu nome, Marcos Freire. Seu slogan: “Sem ódio e sem medo”.

É o que desejo a todos em 2016.

PT, governo, Dilma e Lula: impasse irreversível

Mais do que um sinal de rompimento, foi uma declaração de guerra ao governo Dilma a mensagem distribuída nas redes sociais, segunda-feira, com a assinatura do presidente do PT, Rui Falcão. De início, leia-se Lula como o signatário real.

Significa o quê, nessa passagem de ano, a veemente crítica da direção dos companheiros à política econômica reafirmada dias atrás pelo novo ministro Nelson Barbosa? Nada mais, nada menos, do que o estado de beligerância entre o criador e a criatura. Referindo-se à participação da CUT e do MST na condenação às diretrizes adotadas antes por Joaquim Levy e agora pelo substituto, o PT demonstra repúdio e rejeição aos métodos de Madame para enfrentar a crise econômica. Nada de apoiar as soluções de mercado, neoliberais, que só tem feito aumentar o desemprego em massa, os impostos, taxas e tarifas, o custo de vida e a redução de direitos sociais. Esse modelo só beneficia as elites, fechando as portas para a retomada do crescimento. Não dá para, através dessas iniciativas, devolver à população a confiança perdida. De um ano para cá vem despencando a popularidade de Dilma, do governo e do PT. Como persistir na alta de juros e nos cortes em investimentos? Responsabilidade e ousadia são recomendações a contrapor à estratégia econômica atual.


Faz tempo que o Lula vem batendo nessa tecla, ignorado pela sucessora e agora disposto a seguir isolado e isolando o

grupo encastelado no palácio do Planalto. Porque o PT é o Lula, e o Lula, o PT. Importa menos saber se o desmonte do outrora objetivo maior do partido, de mudar o Brasil, acontece por obra e graça daqueles que o representam no governo.

O resultado do choque de concepções tornou-se público. Tem-se a impressão de ser definitiva a separação. Nem Dilma cederá aos apelos do PT e do Lula, nem esses admitirão ir para o precipício. Em meio ao impasse, identifica-se a sombra do impeachment, hoje esmaecida, mas capaz de ressurgir por conta da presença de deputados e senadores em suas bases, durante o recesso parlamentar. Queixas e reclamos da sociedade só fazem crescer, sem que o governo demonstre disposição de mudanças. Com todo o respeito, sem programas de recuperação e de reaproximação do governo com a opinião pública, logo se fará sentir a voz rouca das ruas.

Carlos Chagas

O nacional-estatismo nas cordas

O primeiro golpe veio no dia 22 de novembro passado, com a vitória do liberal Mauricio Macri sobre Daniel Scioli, candidato do peronismo, por apertada maioria. Pouco depois, em 2 de dezembro, o inacreditável e desacreditado Eduardo Cunha autorizava o início do processo de impeachment contra Dilma Rousseff. Mais quatro dias, seria a vez de Nicolás Maduro sofrer contundente derrota eleitoral por uma diferença de dois milhões de votos.

Em apenas duas semanas foram severamente abaladas as três atuais mais importantes experiências nacional-estatistas nas Américas ao sul do Rio Grande. Qual o contexto histórico das derrotas? Que futuro se poderá vislumbrar a partir delas?

Antes de falar do presente, é importante referir a densidade da cultura política nacional-estatista. Execrado por muitos, à direita e à esquerda, chamado de “populismo”, sinônimo das piores taras da história política latino-americana, o nacional-estatismo, em Nuestra America, tem sólidas raízes — sociais, históricas e culturais.

Getúlio Vargas, Domingo Perón e Gustavo Rojas Pinilla, o populismo na América Latina
Elaborado como programa nos anos 1930, no Brasil (varguismo), na Argentina (peronismo) e no México (cardenismo), foi obrigado a recuar no imediato pós-Segunda Guerra Mundial.

Refez-se, porém, nos anos 1950 com tinturas variadas, indo de um nacionalismo moderado (Vargas e Jango no Brasil), a programas radicais (Bolívia, Guatemala e Cuba), construindo, em certos momentos, pontes entre o nacionalismo e o socialismo (castrismo e guevarismo). A sequência das ditaduras dos anos 1960/1970 sufocaria a maré montante desta segunda versão do nacional-estatismo, com a exceção solitária de Cuba.

A última década do século XX, contudo, registrou uma nova onda. Como se fora uma fênix, reapareceu como alternativa à hegemonia do liberalismo dos anos 1980, colecionando vitórias, através de diferentes experiências, mas com aspectos comuns: Venezuela (chavismo), Argentina (kirchnerismo), Brasil (Lula/Dilma), Bolívia (Evo Morales), Uruguai (José Mujica), Paraguai (Fernando Lugo), Equador (Rafael Correa) e Nicarágua (Daniel Ortega).

Como no passado, o nacional-estatismo elege o Estado (burocracias militar e civil), encabeçado por líderes carismáticos, como fator decisivo para o desenvolvimento da nação. Sua ambição: unir os cidadãos num amplo arco de alianças, incluindo desde setores da burguesia agrária, industrial e financeira, aspergidos com empréstimos subsidiados, proteções e incentivos de toda ordem, passando por apetitosas classes médias emergentes, bafejadas pela prosperidade econômica, e mais trabalhadores urbanos e rurais, cujos direitos sociais são reconhecidos, sem falar nas camadas empobrecidas e marginalizadas, beneficiadas com políticas de inclusão (assistência social). Um detalhe negativo: as gentes acostumam-se a olhar para o alto, o Estado e o líder e não aprendem a valorizar a autonomia, condição de real emancipação.

A arquitetura, para dar certo, depende de circunstâncias positivas: conjunturas internacionais permitindo ciclos de prosperidade, quando se viabilizam jogos de ganha-ganha, atribuindo-se a todos um lugar ao sol; governos legitimados; grandes líderes, capazes de conciliar e harmonizar a variedade de interesses e demandas que se estruturam no interior dos arranjos pactuados.

Foi o concurso destes fatores que ensejou o ressurgimento e um novo apogeu do nacional-estatismo: prosperidade, conciliação de classes, euforia nacional. Entretanto, o conjunto da situação alterou-se de modo significativo, impondo desafios. O contexto internacional mudou para pior. A prosperidade naufragou, dando lugar a crises — econômica e política. Já não há recursos para bancar subsídios e financiamentos amigos, e mesmo os programas sociais periclitam. Volta o espectro da inflação num processo de desaquecimento da economia, de desemprego, de crise fiscal e desestabilização política. E o pior de tudo é que os grandes líderes, senhores do Verbo e do Carisma, pelo chamado da morte (Chávez e Néstor Kirchner) ou por infelizes escolhas (Lula), cederam lugar a pálidas figuras, que penam para lidar com o momento difícil.

Para sair do buraco, sem dúvida, haverá um custo, e será alto. A velha questão, familiar às crises, retorna com força imprevista: quem vai pagar a conta? Tempos de escolhas e de decisões. De apuros para as lideranças nacional-estatistas, acostumadas à conciliação. O que farão elas? Mobilizarão as camadas populares em sua defesa? Ou aceitarão passivamente a derrota, retirando-se sem luta e descarregando o custo da superação da crise, como de hábito, nas costas dos trabalhadores? Considerando a densidade de sua história, o colapso definitivo da proposta não é uma hipótese provável, como já quiseram e ainda querem seus inimigos de sempre. Mas o fato é que, a depender de suas respostas, o nacional-estatismo, agora nas cordas, poderá conhecer um outro eclipse histórico.

Daniel Aarão Reis

Corrupto, é a mãe!

Com a redação “Todos nós somos corruptos”, a estudante Liliana Rodrigues, de 14 anos, que cursa o 9º ano da Escola Municipal Jorge Amado, em Salvador, venceu o concurso de redação lançado pelo Ministério Público Federal, com o tema “Corrupção, Não!”.

Assustadoramente o que se vê é a doutrinação extrapolando a mídia e chegando às escolas. Há muito interesse nos poderes em esclarecer "cientificamente" que o brasileiro já nasce corrupto. Ou no mínimo, nossa corrupção é made in Portugal, absurdo de que somos corruptos devido à colonização lusa.

O besteirol, defendido mesmo por mentes brilhantes como purpurina, virou moda e vai ficar difícil em breve descobrir brasileiro que não se ache corrupto desde criancinha, quando chorava para mamar no seio. Quem sabe, talvez mesmo se ache corrupção por descendência. 


A generalização só interessa aos corruptos, assim como a afirmativa de que o Aedes aegypti é inseto doméstico livra os governo de responsabilidade por falta de saneamento básico. Nos dois casos, a participação popular é um ingrediente bem menor do que se imagina, mas generalizar tem efeito benéfico para os delinquentes político-governamentais.

Se todos são corruptos, os bandidos da Lava Jato são equiparados àqueles que molham a mão de policiais. Assim roubar milhões ou corromper funcionário público terá o mesmo valor penal apesar de qualificadamente diferentes - um sendo ato pessoal e outro, quadrilheiro.

Com o peso do crime rebaixado bem por baixo, se estará reduzindo a carga de importância da propina de alto escalão. Psicologicamente, quem estacionou em local proibido se sentirá tão culpado quanto se tivesse recebido propina de milhões de dólares. Uma excelente manobra, mas que transforma um país em nação de corruptos apenas para efeito de contabilidade marginal.

A estratégia malandra tem apenas uma falha: não há 220 milhões de corruptos no Brasil. São milhares, bem menos do que se calcula, mas deixaram há muito a corrupção: são ladrões governamentais, categoria bem diferente do corrupto comum e rastaquera, que é roubado pelo quadrilheiro partidário, pela gangue de governos e partidos. 

Um sonho para 2016: cidades felizes

Ouvi esta expressão “cidade feliz” recentemente durante um encontro de fim de ano do PACC – o Programa Avançado de Cultura Contemporânea da UFRJ. Ela veio da historiadora e socióloga Maria Alice Rezende de Carvalho, da PUC-Rio, que falava sobre ‘cidades: história e teoria’. Cidade feliz no sentido de uma utopia urbana no Brasil atual, pois, lembrou Maria Alice, as nossas cidades estão difíceis para viver, feias, desajustadas. Creio que é verdade. Conforme a professora falava para o grupo de intelectuais e pensadores, entrei num estado de sonho.
JeronimoSanz/Flickr
Transito entre o Rio de Janeiro, onde moro, e São Paulo, de onde vim e me recordo de várzeas e terrenos baldios hoje repletos de concessionárias de veículos, lojas de autopeças e comércios vários ao longo da Avenida Sumaré, na zona oeste, outrora um córrego. No caso do Rio de Janeiro contemporâneo, e pelo menos naquilo que me afeta diretamente o cotidiano, a cidade se encheu de carros. As ruas, porém, continuaram tão estreitas quanto antes. Quando acompanhei uma jornalista chinesa da BBC essas ruas esguias do Rio lhe pareceram apenas as veias de uma imensa bagunça (o fluxo de pensamento foi seguindo seu rumo na sala da universidade – é para isso que estas instituições servem, para que pensemos). Em São Paulo, algum tempo atrás, andei por uma alameda perto da Avenida Paulista e senti o cheiro forte de gasolina. Já na favela do Jardim Colombo, na zona sul da capital, onde dei aulas de alfabetização nos anos 1980, quando lá voltei recentemente para visitar um ex-aluno, vi que tudo tinha melhorado e piorado ao mesmo tempo nos últimos 20 anos. Havia mais saneamento indicavam os números frios do IBGE; mas pelas vielas ainda corria esgoto a céu aberto; havia luz para todos, mas muitas ligações eram clandestinas e os apagões constantes; em duas décadas as construções deixaram de ser de tábua e agora são de bloco, a favela cresceu para cima, ao mesmo tempo em que a insegurança aumentou. Lá houve uma guerra, me contou um morador, o mais antigo do local. Coisa de drogas, algo assim, não me aprofundei nos detalhes pois quando chega nesses assuntos todos apenas sussurram – e ‘seu’ Tião queria mesmo era lembrar do tempo em que lá havia um córrego que dava uma espécie de pitu, pois ele chegou da Bahia à capital paulista em meados dos anos 1970 e a estação da Luz lhe pareceu uma imensa teia de aranha. “Tudo mudou, nada mudou”, ele balançava a cabeça, enquanto ouvíamos o som de um rap: “aqui não é mais favela, Rogério, aqui agora é cidade”.

Lembrei disso tudo ao ouvir a professora falar na possibilidade – um projeto político na verdade – de uma “cidade feliz”. Claro, o transporte, a segurança, o saneamento serão apenas parte dela. Modo geral, esta cidade feliz brasileira oferecerá a infraestrutura necessária para que as pessoas possam realizar na trama urbana o seu potencial de vida. Pensando bem, é o básico que uma cidade pode oferecer a seus habitantes. Temos chance?

Rogério Jordão

A conscientização sobre a pobreza e a mudança climática, finalmente

Desenvolvimento urbanístico junto ao deserto, em Cathedral City, Califórnia, em plena seca
Este ano será lembrado pelos importantes avanços que foram obtidos mediante a cooperação internacional para o enfrentamento de dois desafios basilares de nossa geração: a erradicação da pobreza e a luta contra a mudança climática.

Em julho, países ricos e pobres se reuniram em Adis Abeba (Etiópia) para a Terceira Conferência Internacional sobre Financiamento do Desenvolvimento. Os representantes governamentais admitiram que muito se avançou desde a primeira conferência, realizada em Monterrey (México) em 2002, mas que continuam existindo enormes desafios em muitos lugares do mundo, especialmente na África subsaariana.

Foi muito decepcionante que muitos países ricos não tenham respeitado o compromisso assumido em Monterrey de investir 0,7% de seu Produto Interno Bruto na ajuda internacional aos países pobres. Muito poucos países alcançaram este objetivo, e isso deveria provocar uma grande vergonha aos Governos que não cumpriram a promessa feita aos povos mais pobres do mundo.

Mas no encontro de Adis Abeba tomou-se consciência da escala dos esforços necessários para atingir o objetivo de erradicar a pobreza e a fome, e para se obter um desenvolvimento sustentável mediante o fomento do crescimento econômico inclusivo, da proteção ao meio ambiente e do aumento da inclusão social.

A conscientização coletiva sobre este desafio e o compromisso dos países ricos no sentido de incrementar a ajuda internacional assentaram as bases do acordo alcançado em setembro na Assembleia Geral das Nações Unidas. Os 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável para 2030, e um conjunto de 169 propósitos relacionados a eles, pretendem lutar contra a desigualdade, o consumo e as formas de produção insustentáveis, a infraestrutura deficiente e a falta de trabalho digno em todos os países do mundo.

Enquanto os diferentes países trabalham duro na elaboração do novo plano de desenvolvimento sustentável, também levam adiante as iniciativas para enfrentar os enormes perigos da mudança climática, completando um processo iniciado há quatro anos em Durban (África do Sul).

Em dezembro de 2011, os Governos concordaram, na reunião anual das Nações Unidas sobre a mudança climática, em trabalhar para alcançar um novo pacto em 2015. Até o fim de 2014, tinham sido produzido avanços lentos, mas este ano era necessário acelerar o processo. Por sorte, alguns acontecimentos contribuíram para que as negociações internacionais chegassem a bom porto.

Em novembro de 2014, o presidente Xi Jinping e o presidente Barack Obama, dirigentes da China e Estados Unidos, respectivamente, que são os maiores emissores de gases de efeito estufa do mundo, assinaram uma declaração conjunta que propunha novos compromissos para reduzir e limitar as emissões anuais a partir de 2020. Isso persuadiu mais de 180 países a se comprometer também, com vistas à reunião das Nações Unidas sobre mudança climática, prevista para dezembro deste ano em Paris.

As negociações entre os diferentes países se aceleraram em maio deste ano, quando o papa Francisco publicou o Laudato Si, sua encíclica sobre o meio ambiente e a ecologia humana. O papa combinava sua avaliação dos aspectos científicos e econômicos com um poderoso argumento moral a favor da luta contra a mudança climática, o que contribuiu para convencer muitos católicos, e sem dúvida a população em geral, sobre a necessidade de tomar medidas urgentes.

Quando chegou o momento de mais de 190 Governos se reunirem na COP21 em Paris, tinha sido gerado um impulso que propiciou um acordo verdadeiramente histórico, adotado em 12 de dezembro, para limitar o aquecimento do planeta muito abaixo dos 2 graus centígrados da temperatura pré-industrial.

Uma das razões cruciais pelas quais o Acordo de Paris foi possível é que cada vez mais países se deram conta de que, para lutar contra a mudança climática, não é preciso sacrificar o crescimento econômico e o desenvolvimento. A transição para um nível baixo de emissões de carbono nos leva para um caminho de incrementar a qualidade de vida e erradicar a pobreza, que é mais atraente e emocionante que seu predecessor muito daninho, o das elevadas emissões de carbono.

Acredito e espero que este ano seja lembrado no futuro como um ponto de inflexão importante na história humana, quando se conseguiu uma vitória crucial na batalha contra a pobreza e a mudança climática, que trouxe mais prosperidade e bem-estar não só a nós, mas também a nossos filhos, netos e gerações futuras.

Nicholas Sterné

terça-feira, 29 de dezembro de 2015


Ano novo, vida velha

O ano da mandioca, o ano do vento engarrafado, dos pastéis de vento, o ano da mulher sapiens, o ano da incompetência arrogante, o ano em que tudo que era sólido desmanchou no ar, o ano em que a república ficou com dois poderes em luta – o Executivo chantageado por dois elementos suspeitos de crime no Legislativo, o ano da “segunda vinda” do Cristo Bolivar, invadindo a America Latina pela janela da Venezuela (um malandro que até o Marx chamava de “personagem medíocre e grotesco”), o ano do bigode do Maduro e do Chavez virado em passarinho, cantando-lhe nos ouvidos, o ano do pixuleco, o ano das propinas, das gorjetas, dos mimos, dos brindes, dos óbolos, dos esbulhos, o ano dos recordes: nunca no mundo ninguém tinha levado US$ 90 milhões de “cervejinha”, o ano da cumbuca, da mão grande, o ano em que vimos que o país está pior do que pensávamos, o ano do povo ou obeso ou faminto, o ano dos milhões de analfabetos e de eruditos burros nas universidades pregando stalinismo para jovens indefesos, ano dos heróicos tesoureiros presos, o ano do olho mortinho do Cerveró, da barriga do Ricardo Pessoa, do sorriso estoico do Marcelo Odebrecht, da barba de esquerda do Vaccari, o ano das manifestações abstratas, o ano dos bonecos flutuantes de Lula, Dilma e Cunha, o ano em que filhos e próximos amigos de Lula estão caindo, enquanto ele pinta o cabelo de acaju, o ano dos cabelos lindos e brancos do Delcidio do Amaral e também o ano do cabelo negro do Lobão, esse perigoso elemento servo do Sarney, que roubou o nome da pobre cidade do Maranhão “Riberãozinho” e se auto-nomeou município, o ano do amigão Bumlai, que Lula renegará três vezes, como fez com Dirceu, o ano das negações, do nada, do “não sei”, do “jamais roubei”, o ano dos “guerreiros do povo brasileiro” em cana, o ano da carne enlatada na Suíça pelo Cunha, mercador de bois e vacas raladas e ano das provas que nada provam, o ano da mentira como verdade ou o contrário: a verdade é tão escrota que parece mentira, o ano das desculpas esfarrapadas, o ano do triunfo de um grande precursor: Maluf, o Criador que deu o salto qualitativo da escrotidão nacional, o ano da metáfora de lama caindo sobre o país, maior tragédia ecológica da história, que derramou 62 milhões de metros cúbicos de bosta eterna (o que não deixa de ser mais um belo recorde nosso…), o ano do mosquito, o ano da saúde doente, o ano das prefeitas prostitutas, o ano do Lamborguine da Dinda que nos deu saudades do Fiat Elba – o calhambeque que expulsou o Collor –, o ano do ex-país do futuro e em que não conseguimos ser o país do presente, o ano da irresponsabilidade fiscal oficial, do PIB zero, das bicicletas e pedaladas, o ano da “nova matriz psicótica” que vem aí e que fará tudo ao contrário do que deveria ser feito, por pirraça ideológica e burrice, o ano da burrice que (não esqueçamos) é “uma força da natureza”, o ano da volta da pior estagflação que será um novo recorde (viva!) do risco Brasil crescendo e do crescimento caindo, o ano do auge da rejeição popular, o ano das desculpas do caixa 2, o ano do triste fim de Joaquim Levy, que foi convocado para Dilma fingir que o obedecia, o ano da ascensão do Nelson Barbosa, dono de uma nova ideologia: o “lulo-capitalismo” – com uma estrelinha vermelha no peito fingindo de “liberal”, o ano de um ajuste fiscal que jamais será feito porque os sindicatos preferem o desemprego dos operários do que mexer em direitos dos pelegos, o ano do MST financiado pelo governo, o ano dos 39 ministérios, o ano da certezas teimosas, o ano do dólar disparado, fazendo-nos torcer para o país se fu#&* e o dólar subir mais, o ano em que o PMDB roubou a cartilha do PSDB e os tucanos ficaram sem projeto, o ano do grande Sergio Moro, que provoca rostos em pânico no Congresso, caras de fuinhas, de furões com medo, de cangurus pálidos, de tamanduás trêmulos, uma exposição de bichos covardes, uma feira agropecuária ali na Câmara, usando palavras solenes: “Minha honra”, “aleivosias contra mim”, “minhas mãos limpas!”, todos querendo ostentar pureza, angelitude, candor, com palavras encobrindo o despudor, a secular engrenagem latrinária que funciona abaixo dos esgotos, abaixo dos cientistas políticos, o ano dos intestinos da pátria ao vivo, os aumentos de patrimônio, os carrões, os iates, a casas com piscinas em forma de vaginas, as surubas lobistas no Lago Sul, os “fins justificando os meios” – dólares dentro de maletas pretas com a estrela vermelha do PT, o ano das calúnias, injúrias e difamações, da euforia de advogados enriquecendo e das promessas a Jesus para proteger os congressistas salteadores, as mandingas, os despachos, as galinhas mortas na encruzilhada e as esposas histéricas não-comidas e sem amor, o uísque caindo mal, as diarreias, as flatulências fétidas, os arrotos nervosos, os vômitos, o ano em que finalmente vemos a cara suja do Brasil, o ano do Temer com sua cara de mordomo de filme inglês de terror (apud ACM), em quem Dilma não confia, nem ninguém, o ano do cuspe, o ano da porrada na Câmara e nas esquinas, o ano dos palavrões, o ano da “merda” e da “puta que pariu”, o ano da inveja, o ano das bundas, das periguetes, dos nudes, o ano das selfies, o ano dos babacas, o ano da vaca louca, o ano da cachorra no ar, o ano da beira do abismo, o ano da cracolândia, e, principalmente, o ano do satânico dr. Cunha, a prova máxima da decadência pública, com a cara mostrando-lhe a alma e vice versa, o ano da marcha a ré, ano dos ladrões “revolucionários”, o ano das alianças sujas, o ano das ilusões perdidas, o ano do renascimento do Supremo Tribunal Federal, o único orgulho brasileiro, com a PF e o MPF bombando, o ano que vai começar mais uma vez e vai terminar mais uma vez daqui a um ano, deixando sempre a sensação de esperança fracassada, até que comece um novo ano trazendo novas expectativas sempre frustradas, até começar um novo ano.

Nunca antes na história do Supremo houve fraude como esta

Em 1933, nos primeiros anos da Era de Vargas, após a derrota da Revolução Constitucionalista em São Paulo, foi eleita uma Assembleia Constituinte para redigir a nova Constituição. Os jornalistas perguntaram ao grande historiador Capistrano de Abreu qual artigo ele gostaria de inserir. Ele respondeu que a nova Constituição deveria ter apenas dois artigos. O primeiro seria: “Todo brasileiro é obrigado a ter vergonha na cara”. E o segundo: “Ficam revogadas as disposições em contrário”.

Capistrano de Abreu era um intelectual respeitado e polêmico, que foi eleito para a Academia Brasileira de Letras, mas se recusou a assumir. Quase 100 anos depois desta irônica declaração dele, constata-se que tinha plena razão. Se todos os brasileiros fossem obrigados a ter vergonha na cara, os atuais membros do Supremo Tribunal Federal estariam em dificuldades para se olharem no espelho.

Quando inventaram o equipamento Nagra, que nas filmagens fazia gravação simultânea da voz, o jornalista, escritor e dramaturgo irlandês Bernard Shaw deu uma entrevista em que previU que as mentiras dos políticos e autoridades estavam com os dias contados, porque tudo seria gravado e as fraudes facilmente reveladas.

Não deu outra. O presidente Richard Nixon, por exemplo, perdeu o poder, teve de renunciar quando descobriram ser mentira sua declaração de que desconhecia a invasão do edifício Watergate. E assim as confirmações da teoria de Shaw foram se sucedendo.

Agora, no Brasil, temos mais um caso desse tipo, com o desmascaramento do voto do ministro Luís Roberto Barroso, que propositadamente usou argumentos mentirosos e fraudados e fez com que outros integrantes do tribunal incorressem em erro ao votar num julgamento importantíssimo, escrevendo a mais negativa página da História do Supremo.

A grande mídia está calada a respeito, é fácil de entender, não precisa ser nenhum Shaw para compreender o silêncio, mas isso não adianta, a internet resolve tudo. Barroso deu entrevista patética ao Valor Econômico, tentou culpar o ministro Edson Fachin por pretender mudar o rito, fato que não houve, porque o voto de Fachin obedeceu estritamente o Regimento da Câmara. Agora, Barroso insiste em dizer que Fachin quis mudar o rito, mas ele o impediu, vejam a que ponto chega a desfaçatez desse jurista.

O prato principal dos Embargos de Declaração com efeito modificativo que serão apresentados ao Supremo no início de fevereiro, quando se extingue o prazo legal para recorrer, será não somente o comportamento aético e irregular do ministro Luís Roberto Barroso, que fraudou seu voto e levou outros ministros a erro, mas também o procedimento do presidente do Supremo, Ricardo Lewandowski, que transformou ilegalmente em julgamento do mérito uma simples sessão para exame de liminares, alterando propositadamente o objetivo da sessão e desrespeitando a legislação específica, conforme o jurista Jorge Béja denunciou na Tribuna da Internet, no último domingo, dia 27, com absoluta exclusividade.

Em fevereiro, quando terminar o recesso, no plenário do Supremo os onze ministros vão se entreolhar, envergonhados, enquanto os advogados estiverem na tribuna, demolindo o voto fraudado de Barroso, que levou outros ministros a acompanharem suas falácias, e destruindo também a jogada de Lewandowski, que terá de marcar nova sessão para julgamento do mérito da ação do PCdoB, na forma da Lei 9882/99.

A principal mentira de Barroso foi a frase com que fechou sua argumentação: “Considero, portanto, que o voto secreto foi instituído por uma deliberação unipessoal e discricionária do presidente da Câmara no meio do jogo”, sentenciou, esquecido que se tratava de um julgamento, não era um jogo e ele não deveria ter trazido cartas na manga.

Como agora todos sabem, o presidente da Câmara não instituiu nada, é obrigado a seguir o Regimento, que determina que as votações sejam secretas em nome da democracia, para diminuir o efeito das pressões que o Executivo faz sobre os parlamentares, exatamente como está acontecendo agora.

Bem, para resolver o imbróglio montado por Barroso e Lewandowski, será preciso que o relator abra prazo de dez dias para as partes se manifestarem, com a convocação de nova sessão para julgamento do mérito da ação, um vexame jamais visto na história do Supremo. Além disso, como dizia Capistrano de Abreu, será preciso também que cada brasileiro tenha vergonha na cara, especialmente quando estiver envergando a notável toga do Supremo, que representa o manto sagrado da Justiça brasileira.

O que falta é bom senso

A reunião emergencial dos governadores estaduais, ontem em Brasília, foi útil para confirmar o óbvio, ululante nos portões das unidades públicas de saúde : o Estado brasileiro quebrou.

Governadores de Rio, Minas e Rio Grande do Sul, por exemplo, constataram que já começam 2016 devendo R$ 2 para cada R$ 1 de receita líquida prevista no ano. Nesses três estados concentra-se um terço da economia.

Com 12 meses de mandato, Luiz Fernando Pezão (PMDB-RJ), Fernando Pimentel (PT-MG) e José Ivo Sartori (PMDB-RS) governam sem caixa e com o mais alto nível de endividamento dos últimos cinco anos.

Noel Psicanalista Freud sabe la o que nao ter e ter que ter pra dar

Temem chegar à temporada das eleições municipais sem dinheiro para salários do funcionalismo, aspirinas nos pronto-socorros e giz nas salas de aula. Como Dilma Rousseff, cada um criou a narrativa do próprio atoleiro: a culpa da crise deve ser atribuída aos outros.

Na angústia dos governantes, percebe-se o sentimento de impotência diante do clima de desesperança política — derivativo da percepção coletiva de anomia, da ausência de organização dos governos.

A expressão econômica disso é o empobrecimento. Nos últimos cinco anos, o Brasil cresceu 5%, pouco menos que a população, enquanto a riqueza mundial aumentou 18%. Excluindo-se o Brasil, o Produto Interno Bruto dos países em desenvolvimento avançou 28% nesse período — calcula o economista Delfim Netto.

Às vésperas de 2016, governantes e governados parecem concordar em um aspecto: pior que a situação que está aí é a perspectiva.

O consenso acaba nisso, porque enquanto a sociedade amarga um ciclo depressivo, paradoxalmente, governantes insistem em privilegiar a minoria que já concentra a maior fatia das benesses fiscais, financeiras e creditícias.

Ontem, na mesa dos governadores estaduais, pouco se falou sobre o custo desse tipo de gasto público, cuja conta já ultrapassou o patamar de 6% do PIB — estimam os economistas Vilma da Conceição Pinto e José Roberto Afonso, com base em dados do governo federal. De cada R$ 10 em renúncias fiscais, R$ 7 beneficiam empresas industriais e agropecuárias. O gasto anual supera a despesa com saúde pública, por exemplo.

Não há transparência sobre os resultados dessa dinheirama despejada em cofres privados. “Não há nem com o gasto tradicional, muito menos com os benefícios fiscais”, diz Afonso. “Ainda falta transformar em hábito o registro do que se prometeu ou o que se pretendia quando se concedeu uma benesse, e depois comparar com o efetivamente apurado.”

“Em outros países, sobretudo na Ásia” — acrescenta — “o Estado também é ativo na concessão de benefícios, mas sempre cobra e contrata com o beneficiário metas de aumento de produção, de exportação, de investimentos, de emprego. Aqui não houve contrato. Sobram discursos, promessas e marketing.”

Governantes doam recursos públicos, nas sombras da política eleitoral e partidária, sem nada exigir em troca.

A crise começa a iluminar uma aberração: o Estado brasileiro está gastando e pagando para empresas cortarem investimentos, produção e emprego. Como diz Afonso, nem é preciso ser economista para perceber que isso fere a lógica ou o bom senso.

2016, o ano em que viraremos atletas

Atletas batendo recordes. Isso é o que nós todos, brasileiros, seremos em 2016. Vamos fazer um exercício, sem trocadilho, porque é exercício, sim, mas de imaginação. A ideia é boa para agora logo depois do Natal, depois de tantas gordices ingeridas e a repetição contínua daquela certa culpa – “ai, comi demais”. Você fez isso sim, mas ou porque a comida era boa ou até para ver se espantava o tédio desse final de ano tão sem graça. Agora a hora é de preparação para a corrida de obstáculos mês a mês que está no horizonte. Olhe para lá.
O exercício é a preparação mental, física e respiratória para percorrer com elegância a raia olímpica e nadar de todas formas, peito aberto, revezamento de ministros, borboleta para os mais sensíveis. Melhor. Precisaremos ser atletas mais completos, que unam duas ou três forças. Categoria sobressaltos e notícias esquisitas todos os dias. Mais cabo-de-guerra com esses dois lados imbecis a que estamos sujeitos, como se fosse assim só o bem, só o mal, caprichoso versus garantido, coca-cola ou pepsi, vermelho ou azul, verde ou amarelo, praia ou montanha.

Temos boas formas de treinar. Aquáticas, com as enchentes invariáveis de verão e bocas-de-lobo abertas, e entupidas. Corrida de obstáculos, canoagem. Árvores caindo, luz que se apaga durante horas, e às cegas vamos seguindo fazendo ginástica. Salto no solo, aguentando malas sem alça. Na rítmica agitaremos bandeiras nas ruas graciosamente, além dos laços, cordas e fitas baratas com as quais renovaremos nossas roupas a preços mais módicos.

Além dos saltos, assaltos e sobressaltos, surgirão várias modalidades de atletismo na pista. Maratonas. Marchas, que podem até ser atléticas, mas estarão buscando algo. Além de cuspir fogo, teremos arremesso de dados no ar e a gente não vai saber bem o que fazer com eles. Para acertar o alvo, serão dardos. Nós iremos esgrimindo, espadas que estão sobre nossas cabeças.

Arremesso de discos teremos também, principalmente se continuarem lançando essas celebridades instantâneas barulhentas que vêm, gritam muito alto cantando nos nossos ouvidos à The Voice, e somem na mesma toada. Ping-pong.
Ciclismo, nem preciso dizer que é categoria especial principalmente aqui em São Paulo, onde ciclistas andam se sentindo os em-po-de-ra-dos – (ai, desculpa, juro que precisei usar essa palavra, mas a ouça bem irônica) – e junto com os motoqueiros concorrem na infernal casa da mãe joana que tornam as ruas. Fazem o que querem, adoram ultrapassar pela direita, não param nos sinais e ainda tentam fazer manobras bem aos seus pés, junto com os skatistas que também adorariam fazer strike humano usando o seu corpinho. Não esquecer as valetas, as calçadas esburacadas. E as poças d´água e cocozinhos.

Levantamento de pesos, mas só se fosse na Argentina. Aqui é de reais que a toda hora tentaremos achar nos bancos ou calcular seu valor diante do mundo.

Brincadeiras à parte, 2016 chegou. Não pode e não vai ser ruim não. Vamos ter Carnaval, vamos ter coisas boas, vamos ter Olimpíadas. Precisaremos só tentar ser mais modernos para receber o mundo que vai olhar para cá, de novo. Mico já pagamos na Copa.

Nossa política está atrasada e atrasando nossa vida, e a gente tem de correr atrás dos nossos recordes e sonhos. Vamos fazer mais reflexões para sair dessa. A luta é livre.

No alvo, 2016, Brasil

Marli Gonçalves

Band-aid faz milagre

O milagre de dividir cinco peixes e dois pães para alimentar 5 mil ouvintes até hoje provoca polêmica. Afinal não há provas, mas apenas controvérsias e desconfianças.

No entanto, parece que ninguém duvida que Luis Fernando Pezão, depois de rezar a "santa" Dilma, foi atendido para felicidade geral do estado. Resolveu com dinheiro, apenas bem menos do que necessita, o problema da saúde fluminense. Alvíssaras, será recomendado para canonização!

O milagre religioso merece a desconfiança, mas o milagre da cura e de atendimento a milhares, através de santa do pau oco, é reverenciado com farto noticiário.

Aqueles que fazem cara feia para a tradição milenar, estão sempre à toa na vida, acabam de se tornar crentes. Acreditam piamente que o beato governador e a santa presidente resolvem a saúde mais rápida e eficazmente, com maços de dinheiro, como nunca se viu em nenhuma religião.

Eis um país que aplaude o band-aid como milagroso. Não há muito o que se esperar disso.

O que nos resta

Temos o Estado Camarão. Uma cabeça muito grande com muito pouca coisa aproveitável
Bolívar Lamounier 

A impostora

Como história é muito triste; como metáfora, terrível. Uma senhora passou os últimos 40 anos de sua vida em busca da neta, filha de seu filho assassinado por militares argentinos, roubada quando tinha três meses, em novembro de 1976, por esses militares. A senhora María Isabel Chorobik de Mariani, que todo mundo conhece como Chicha, fundou em 1977 a instituição mais respeitada do país, asAvós da Praça de Maio, que, desde então, recuperou 119 netos, filhos de desaparecidos.

Mas ela, cujos esforços ajudaram a muitos, já completou 92 anos, está ficando cega e ainda não encontrou sua neta. Até que, alguns dias atrás, uma senhora, María Elena Wehrli, apareceu com um teste de DNA de uma clínica particular e disse ser Clara Anahí, a neta em questão, e todos comemoram: o país comemora. Por algumas horas, os argentinos se sentem prazerosamente unidos –peronistas, antiperonistas, vários pró-governo, oposicionistas impiedosos– numa celebração que parece enaltecer todos. Mas a alegria dura pouco; dois dias depois aparecem testes mais sérios, oficiais, que desmentem a relação genética: a suposta neta é uma farsa.

A história entristeceu milhões de argentinos: a esperança frustrada dessa avó que, por algumas horas, acreditou que tinha finalmente conseguido o objetivo da sua vida ao saber que não, que era uma mentira, e esgotar sua penúltima esperança. A outra, que a enganou, talvez tenha que responder por seus atos perante algum tribunal –ou talvez sinta apenas vergonha. Ainda não sabemos por que ela o fez: não é difícil supor que quisesse gozar das vantagens, dos privilégios, dos cuidados que esses netos recuperadosrecebem da sociedade e do Estado argentinos.

Como a história é triste; como metáfora, terrível. Há 12 anos, o governador de uma província no sul da Patagônia, que nunca tinha mostrado qualquer interesse pelos direitos humanos, que havia repudiado as Mães da Praça de Maioque tentaram visitar sua capital, que havia apoiado o indulto aos militares assassinos, se candidatou às eleições nacionais e, para sua surpresa, foi eleito. Tinha que governar, sem maior legitimidade, um país em chamas; talvez tenha sido por isso –sabe-se lá– que decidiu falsificar sua história e se apropriar das lutas e discursos das organizações de direitos humanos. E deu certo: seu Governo conseguiu mascarar sua injustiça social, seu clientelismo, sua corrupção descarada atrás das bandeiras da memória histórica.

Agora seu Governo –o de sua viúva– acaba de terminar, mas se vê que estabeleceu um precedente: uma mulher, talvez em necessidade, talvez fora de si, queria usar aquele mecanismo em benefício próprio. Alguns podem argumentar que a vítima, dessa vez, foi apenas uma pobre avó esperançosa. Parece claro que também foi, como em todos esses anos, a sociedade argentina,

Feliz 2017

Recessão de 3,6%, inflação de dois dígitos, bicando os 11%, mais de nove milhões sem emprego. Desastres naturais, outros nem tanto. Saúde em pandarecos, Educação ao Deus dará. Corrupção, bandalheira, escândalos em série. Caos na política, incompetência, desgoverno. O ano de 2015 começou torto e terminará ainda mais torto. Veio com defeito de origem, parte dele determinado pelo abuso de mentiras eleitorais do ano anterior.

Tudo que os brasileiros ouviram durante a campanha de reeleição da presidente Dilma Rousseff assegurava a bonança. A economia ia crescer, o emprego se multiplicaria, a inflação seria controlada, a miséria extirpada de vez. O país seria a Pátria educadora, o atendimento à saúde chegaria aos patamares da excelência, com médicos para todos - ainda que importados de Cuba - e ambulatórios de especialidades.

Nada parecido com os milhares de crianças condenadas a um cérebro diminuto porque suas mães foram picadas por um mosquito que há muito deveria ter sido exterminado. Nada perto da falta de ataduras e antibióticos. Das cenas pré-natalinas de grávidas encolhidas no chão de um hospital da cidade maravilhosa, a mesma que gasta milhões para fazer bonito para estrangeiros nos jogos olímpicos do ano que vem.

O faz-de-conta marqueteiro não resistiu nem mesmo aos primeiros dias de janeiro. O desequilíbrio das contas públicas saltou mais fortemente aos olhos e ao bolso e a reeleita Dilma teve de fazer tudo ao contrário do que dizia. E tudo que não queria: parar de gastar e ajustar. Fracassou nas duas frentes.

Por absoluta falta de dinheiro em cofre, cortou investimento, mas só depois de voltar a pedalar. E quase absolutamente nada em custeio, mantendo a obesidade da máquina que consome quase tudo que arrecada do cidadão.

Falou e falou de ajuste. Mas da boca para fora, sem qualquer convicção.

Improvisou, foi para um lado e outro como barata dedetizada. Chegou a propor ao Parlamento um inédito orçamento com déficit. Fritou um ministro da Fazenda e quase nada avançou em 11 meses. Ao contrário, a economia degringolou ainda mais.

E, em velocidade também dilacerante, o ambiente político azedou por completo.

Com o recrudescimento das investigações da Lava-Jato e a possibilidade concreta do impedimento da presidente Dilma, o terror tomou conta de protagonistas de primeira grandeza. Do ex Lula e sua prole, de gente graúda do PT e do PMDB. Ao toma lá dá cá que sempre caracterizou a coalizão governista agregou-se a chantagem, tanto dos presidentes da Câmara e do Senado quanto do Planalto. Um espetáculo de baixarias.

Além das ações do Ministério Público, da Polícia Federal e da Justiça na caça aos corruptos, o ano se salvou pelas ruas. Os não à Dilma e à roubalheira, vestidos de verde-amarelo e empunhando bandeiras do Brasil, tomaram as ruas por cinco vezes no ano, em uma delas, com mais de dois milhões de pessoas. Os pró-governo, com seus jalecos e bandeiras vermelhas da CUT - primeiro tímidos e agora com mais vigor -, também cobriram o asfalto. E os dois lados prometem voltar.

Para a paúra de muitos, a Lava-Jato, que condenou mais de 30, recuperando alguns dos milhões roubados da Petrobras para financiar o PT e aliados e encher bolsos dos amigos, deverá continuar importunando os poderosos.

Para a maioria dos brasileiros, esse é o maior alento.

Ao governo Dilma, as esperanças são outras: aprovar a nova CPMF e livrar-se do impeachment.

Contando com muita sorte e fé imensa, talvez dê para apostar em 2017.

Autodefesa política

O impeachment, do ponto de vista do sistema político, é uma estratégia de autodefesa contra a Lava Jato. Esse é o objetivo. A Lava Jato instaurou uma desorganização política muito grande, em que cada um está tentando defender seus interesses. A questão é que essa capacidade de autodefesa é simplesmente a de ganhar tempo. Como o sistema político não consegue escapar da Justiça, o impeachment vira uma ferramenta de defesa
Marcos Nobre

Coluna social

Este colunista está en-can-ta-do com o convite recebido, das famílias Roussef e Temer, impresso em verde-esmeralda e amarelo-ouro, uma belíssima criação da nova agência Valério & Youssef, convidando para o casamento de Dilma e Michel. Nossa pulguinha já coçava, atrás da orelha, desde que eles começaram a trocar cartas prometendo “relação fértil e profícua”, além de abrirem espaço em suas disputadíssimas agendas para encontros de onde saíam sempre com os olhos brilhando.


A cerimônia religiosa, aberta, será na Catedral de Brasília, com telões externos para quem não conseguir entrar. Já nos titizaram que MST, UNE e centrais sindicais acamparão no entorno para pegar os melhores lugares. A cerimônia civil será no Palácio do Planalto, gentilmente cedido pelo novo governo, mas apenas para mil e trezentos convidados, inclusive dezenas de ex-chefes de Estado. Aqui entre nós: Ângela Merkel e Hillary Clinton estão curiosíssimas para saber de Dilma dicas sobre “relações férteis e relaxamento de tensões”.

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Nosso menino terrível, Eduardinho, continua fazendo Histhoria na presidência da Câmara Federal, para onde retornou depois de passar por Curitiba, Pinhais e Papuda. Agora quer que o novo anexo do Congresso, que terá shopping e hotel 5-estrelas, também tenha o Recanto Babá, para repouso das cuidadoras da progênie de nossos deputados e senadores. Com salão de beleza, piscina aquecida, sauna bi-sex e bistrô. Eduardinho diz que “será um anexo de padrão suíço”.

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Enquanto isso, nossa Agente Minga, infiltrada nos meandros dos Três Poderes, informa que, depois das férias em dobro, auxílio-moradia e auxílio-alimentação, nossos juízes terão auxílio-fashion, para se manterem sempre em dia com os mais recentes ups da moda, tanto no vestuário quanto nos penteados e pinturas capilares. Os juízes justificam que a Justiça deve não apenas ser justa mas também integral: bem alimentada, bem amparada e, agora finalmente, ainda mais bonita! Nisso, Moro fez escola!

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Vem aí a nova bolsa-família-nova, para, conforme o ministro das Relações Neo-Sociais, toda família formada sem pai nem mãe convencionais, inclusive solteirões e viúvos, desde que adotem um animal silvestre resgatado pelo Ibama. A nova bolsa visa “diversificar e humanizar nossa tessitura socio-amorosa”. Coerente com o novo slogan federal: Brasil, pátria de amores mil!

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Cochicha-se intensamente em Brasília que certa ministra anda com garrafinhas de vinho na bolsa, para lançar em políticos machistas com piadinhas indecorosas. O senador Tiririca diz que pior não fica, e o presidente Renan, “contribuindo para uma agenda positiva”, já divulgou que mancha de vinho sai facilmente com sal ou limão, na hora, ou água com ácido muriático depois. Nada como gente experiente para cuidar da gente!

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Frase ouvida nos corredores de Brasília: “Tem quem nasce para carregar cargas, tem quem nasce para cargos de confiança”. E, depois desta, adomingã! 

segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

Troca de presentes Congresso palacio planalto consomem muito

A crise no Brasil e a liquidação de ativos constitucionais

A Constituição brasileira está sob pressão. Nossos ativos constitucionais foram postos à venda e parecem baratos como nunca. De um lado, um Congresso com todo o equipamento mental, moral e político para promover um extraordinário ciclo de regressão institucional e humanitária. Processo em marcha, ainda inconcluso. Do outro, um Governo que se dispõe a entregar o pouco que restava de sua própria alma para não perder o assento. Um, com raiva; o outro, com medo, combinação ideal de emoções primárias para a implosão de conquistas elementares de nossa breve história democrática. No susto, vamos aprendendo a lição de que bastam uma legislatura delinquente e um executivo recolhido e inepto para corroer aquilo que sucessivas gerações ainda tentam construir.

Ao lado das análises de conjuntura política e econômica, que inundam a mídia cotidiana, a magnitude da crise atual pede uma análise de conjuntura constitucional, um exercício que precisa entrar nos nossos hábitos de reflexão crítica sobre o Brasil. Qualificar o processo em curso à luz do projeto constitucional permite estimar melhor a dimensão da enfermidade e de seu impacto. A governabilidade, o (de)crescimento do PIB ou mesmo o impeachment são, sob este parâmetro, a ponta do iceberg, fragmentos luminosos de superfície que ofuscam outras camadas da imagem.

A constituição foi concebida como lastro de integridade política: no mínimo, um pacto de convivência orientado pelos ideais de auto-governo, de proteção do indivíduo frente à violência pública e privada, e de emancipação do indivíduo em condições de vulnerabilidade. Uma bússola compartilhada, que aponta procedimentos e valores indispensáveis para administração de nossas diferenças sem violar nossa dignidade. Ideais abstratos, estes. Tão eloquentes quanto inócuos se não forem bem traduzidos para a realidade brasileira, cuja marca é a da desigualdade aguda e explosiva em todos os níveis. É na qualidade dessa tradução que mora a medida de legitimidade de nossa luta política e das causas que resolvemos abraçar.

Importante buscar uma visão de mais longo alcance, que desacelere os sentidos e se distancie do ritmo estarrecedor que os eventos políticos assumiram nas últimas semanas. Em 2015, a agenda legislativa foi dominada por temas que eram vistos como remanescentes de uma minoria jurássica, caricata e pré-democrática. Mas não só, pois o Governo federal tem dado significativa contribuição para o alarme que já soa há muito tempo. Cidadãos atentos ao espírito da Constituição de 1988 e que reconheçam a importância das ciências para estudar e prever os efeitos concretos de políticas públicas ficariam de cabelo em pé.

Nesta agenda prevaleceu um conjunto de aberrações. Dos exemplos abaixo, alguns ainda tramitam no processo legislativo, outros são fato consumado.

Quer combater o crime? Reduza a maioridade penal, perpetue a guerra às drogas e celebre o encarceramento em massa. Aproveite e feche os olhos para o que acontece nas periferias e permaneça indiferente a qualquer proposta de reforma da polícia, uma das instituições mais blindadas do país contra qualquer controle e responsabilização. Quer promover a segurança? Enfraqueça o estatuto do desarmamento e alimente a ideia de que estar seguro é estar armado. Se puder, ponha uma lei anti-terrorismo no pacote.

Quer facilitar o desenvolvimento? Atenue o conceito legal de trabalho escravo, inviabilize o processo técnico de demarcação de terras indígenas, enfraqueça o Código Florestal. Simplifique custosos obstáculos jurídicos à exploração de recursos naturais ou a projetos de impacto ao meio ambiente, como o licenciamento ambiental. Gradualmente esvazie os quadros funcionais, o status institucional e a competência técnica de órgãos cruciais de regulação e fiscalização, tais como o Ibama e o Departamento Nacional de Produção Mineral.

Quer reduzir o déficit energético brasileiro? A Amazônia está à disposição para ser transformada num parque de mega-hidrelétricas, produtoras de energia ‘barata e limpa’ se calculamos o seu preço de olhos fechados ao patrimônio intangível da biodiversidade e do modo de vida das populações indígenas e ribeirinhas (para não falar de impacto climático). Belo Monte foi construída numa violenta operação à margem do Estado de direito. Por quem? Por uma parceria eficiente entre grandes empreiteiras e a Guarda Nacional. O Rio Xingu já foi, mas o Tapajós vem aí.

Quer preservar a moral e os bons costumes? Imponha um modelo homogêneo de família, combata a heterofobia, crie o dia do orgulho hétero e denuncie a perigosa "ideologia de gênero". Promova, enfim, a teopolítica sob o escudo de uma mal compreendida "liberdade religiosa" que, no seu limite, justifica a exploração econômica, a discriminação e a violência simbólica e material contra variados grupos.

Quer promover o direito à vida? Dificulte o aborto legal. Submeta mulheres vítimas de estupro ao regime da máxima desconfiança e dificulte o seu ônus da prova. Como promover a saúde? Corroa o SUS, anistie e fortaleça planos de saúde privados. Aproveite e rife o Ministério da Saúde e nomeie para a coordenação de saúde mental o ex-diretor de manicômio que praticava violações massivas de direitos humanos.

Essa breve lista dá uma ideia do legado de Eduardo Cunha e seus soldados, um legado em gestação e com destino incerto. Mas também tem a notável pincelada de Dilma Roussef, que não é só vítima mas partícipe dessa onda. Pesquise e saberá de quem é a autoria das ações listadas acima. A disputa não deixa de ser equilibrada.

Tanto Governo quanto oposição têm contas pesadas a prestar com a Constituição. Não se vê uma onda conservadora, em qualquer dos sentidos em que este adjetivo mereceria dignidade filosófica, política e jurídica. Vê-se cinismo autoritário e liberticida. O termo "retrocesso" já não dá conta de expressar o que se passa. Mais do que retroceder, rompem com uma identidade constitucional em construção.

A Constituição brasileira é transformadora e conservadora ao mesmo tempo: a tensão entre mudança e permanência é da sua própria natureza. É hora de acionar seu dispositivo conservador: aquele que contém, arrefece e convoca a resistência. O conservadorismo constitucional é um recurso contra o que a sociedade brasileira guarda de pior. É um “conservadorismo com ‘C’ maiúsculo”, que busca preservar aquilo que tem valor intrínseco e inegociável (nas palavras de GA Cohen).

O impeachment é apenas um capítulo de um movimento mais profundo e insidioso. Talvez um mero detalhe. Ocorra ou não, estamos diante de iminente derrota de um projeto ousado, que parecia pairar acima das divisões partidárias. Desde o advento da Constituição de 1988, o STF não enfrentou hora mais crítica. É uma das últimas trincheiras institucionais. Vai precisar de aliados numa batalha em que terá de investir capital político (e apostar no resgate futuro desse capital). Vai precisar de liderança e coragem para estar à altura da sua missão e não capitular. Ao ativismo legislativo desgovernado, usurpador de direitos e das regras do jogo, responde-se, entre outras coisas, com ativismo judicial.

Conrado Hübner Mendes