sábado, 27 de outubro de 2018

Uma eleição singular

Esta é uma eleição marcada por anomalias – e a principal é a de não ser auditável. Não é pouca coisa – e resume o resto.

Uma eleição cujo resultado pode ser posto em dúvida pelo eleitor fragiliza a democracia. E esse desserviço foi prestado, de forma unilateral e despropositada, pelo Judiciário: TSE e STF.

A resistência ao voto impresso, como adicional ao eletrônico, aprovado por ampla maioria no Congresso, dá lastro a todas as suspeições, já em curso – sobretudo porque não precisava ser assim.

Todo o ambiente de teoria da conspiração vigente decorre dessa atitude do Judiciário. Se as urnas são confiáveis, em quê o voto impresso as comprometeria? Apenas chancelaria esse pressuposto.

A princípio, o TSE, então presidido por Gilmar Mendes, alegou razões financeiras. As impressoras custariam R$ 2 bilhões. O jurista Modesto Carvalhosa fez amplo levantamento de preços no mercado e chegou a valor bem menor: R$ 200 milhões. E ficou por isso.

Por fim, na mais inusitada das decisões, o STF, provocado pela PGR, concluiu que se tratava de inconstitucionalidade, mesmo a Constituição não descendo ao varejo da forma de votação.



O resultado é o ambiente de temor e perplexidade, de consequências imprevisíveis, cuja conta será cobrada ao Judiciário.

A expectativa, amplamente chancelada pelas pesquisas – e já prenunciada nos números do primeiro turno –, é de que Jair Bolsonaro saia vitorioso por significativa margem de votos. Mas é uma expectativa pontuada por tensões e rumores de toda ordem.

O temor de fraude é generalizado – e não é despropositado. Numerosos especialistas o atestam. Ainda que as urnas sejam perfeitas como o dizem seus defensores, o simples fato de isso não ser demonstrável justifica o temor. O TSE, sem meios de desfazê-lo, se empenha em reprimi-lo. Chegou mesmo a retirar do ar manifestação nesse sentido do candidato Bolsonaro.

A manifestação foi censurada, mas o temor é incensurável e pode gerar turbulências no pós-eleitoral.

Outra anomalia foi o ambiente de insultos que marcou a campanha; entre outras coisas, produziu um atentado a faca ao candidato Bolsonaro, por parte de um militante de esquerda.

Tão chocante quanto a agressão foi a tentativa de banalizá-la – não apenas pelos concorrentes, mas também por parte da grande mídia, que se limitou a divulgar boletins médicos e não cobrar das autoridades competentes investigações e providências.

O cerco moral que a esquerda impôs a Bolsonaro passou ao largo da discussão de propostas, concentrando-se nos insultos. Acusou-o obstinadamente de nazista, não obstante o apoio que lhe hipoteca o Estado de Israel, ao qual não se cansa de elogiar.

A lógica do insulto prescinde da lógica da história; nazista apoiado por Israel é algo tão absurdo quanto um quadrado redondo.

O projeto Bolsonaro é pontuado de incertezas e apoiado por uma frente sem unidade doutrinária. Formou-se e consolidou-se na aversão ao petismo, cujo projeto rejeita não por desconhecê-lo, mas exatamente pelo contrário: por conhecê-lo até demais.

A maioria parece mais segura em apostar em um caminho a ser construído, que em outro que já levou à destruição.

Ruy Fabiano

Lições de 2018

Cientistas políticos, sociólogos e outros estudiosos da situação brasileira indagam quais foram as razões que levaram o País a essa polarização extrema entre os apoiadores de dois candidatos antípodas. Situação que, mesmo com a eleição de amanhã, que escolherá um deles presidente da República, dificilmente acabará.

É possível que esses estudiosos venham a se concentrar sobre o tema por muito tempo. Pode ser que a resposta nunca seja encontrada. Ou que não exista apenas uma resposta, mas várias.


O que se pode dizer nesse momento é que o eleitor se cansou. De tudo. Do serviço público de pouca qualidade na saúde, educação, transporte, saneamento básico. Da insegurança que leva à mortandade dos mais pobres. Dos privilégios que integrantes de todos os poderes se dão, como verbas de gabinete para gastos quase ilimitados, auxílio moradia para juízes e parlamentares, mordomias.

O Brasil se cansou dessa vida de abusos quase que diários no que se refere ao ir e vir do cidadão. Ele sai de sua casa de madrugada, a duas horas do trabalho, quando tem trabalho, e corre o risco de encontrar a rua bloqueada por algumas pessoas que, também descontentes com alguma coisa, resolvem botar fogo em pneus e fazer o bloqueio da passagem por horas.

É quase que uma vida de castas. Mesmo que não hajam regras regulamentando isso, a prática mostra que existem os cidadãos de categorias A, B, C, D, e assim vai. Um detalhe: esses cidadãos votam.

Os partidos políticos não perceberam o descontentamento que tomou conta da população desde 2013. Em junho, protestos tiveram início nas ruas de todo o País. A princípio, contra o aumento das passagens de ônibus. Depois, contra o escândalo da construção dos estádios superfaturados da Copa da Fifa, ou contra coisa nenhuma.

Dilma Rousseff, a presidente mais sem noção do período recente, viu naquilo um desafio à sua própria pessoa, não ao sistema de privilégio de uns e maltrato de outros. Os manifestantes gritavam: “Não vai ter Copa”. Dilma respondia: “Vai ter Copa. Será a Copa das Copas”. (Nem é preciso lembrar que o Brasil tomou uma surra da Alemanha por 7 a 1 e a Copa das Copas foi esquecida). Quando a situação saiu do controle e a sede do Itamaraty quase foi incendiada, Dilma convocou uma reunião de emergência de governadores e prefeitos de grandes cidades.

Anunciou um plano com cinco eixos, um deles uma reforma política a ser feita por uma Constituinte exclusiva, que seria aprovada por meio de um plebiscito. Um delírio. Os outros pactos tratavam da saúde, educação, transportes e responsabilidade fiscal.

Nada se cumpriu. Da responsabilidade não se falou mais. Em 2016 o País entrou na maior recessão de sua História. Dilma acabou afastada, pois sem base parlamentar.

O PT e seus estrategistas disseram que as manifestações faziam parte de um movimento de direita, destinado a sabotar o governo. As prisões de dirigentes do partido por envolvimento em corrupção pesada foram todas jogadas nessa suposta orquestração, da qual participariam os meios de comunicação e o Judiciário.

Os petistas acharam que as coisas se acomodariam. Nem perceberam que um deputado do baixo clero, considerado quase que folclórico por seus pares, viu na rejeição ao PT sua oportunidade. Começou a trabalhar.

De repente, outdoors com fotografias gigantes de Jair Bolsonaro começaram a aparecer por diversos cantos do País. O PT avaliou a situação e concluiu que Bolsonaro era sua oportunidade de voltar ao poder. Era muito melhor enfrentá-lo do que a Geraldo Alckmin. Assim, orientou seus militantes a centrar fogo no tucano e a poupar Bolsonaro durante a pré-campanha. Direta ou indiretamente, o PT foi responsável pela candidatura de Jair Bolsonaro.

Brasil da véspera


Os próximos dias do resto da nossa vida

Seja qual for o resultado das urnas de amanhã, uma constatação está dada: protagonizamos a mais tensa e desqualificada disputa presidencial da História nacional. Poderemos gastar um bom tempo de pesquisa para interpretar o uso que se fez das redes e das fake news, os erros e acertos das campanhas, mas nada será mais desafiador do que compreender o terremoto que abalou as estruturas políticas da sociedade e alterou de forma substantiva a cabeça dos brasileiros.

Como foi possível que, na segunda década do século 21, a disputa presidencial transcorresse como se o País ainda estivesse no século 20? Suas elites políticas e intelectuais ignoraram os sinais de que algo estava a fermentar nos subterrâneos da vida social. Nada se discutiu de substantivo, nenhum mapa cognitivo saiu dos debates, nenhuma luz iluminou o eleitorado, que chegou às urnas enfeitiçado por pregações mágicas e regressistas, alheias ao razoável, mudas diante dos desafios que se abrem para o futuro.

O resultado foi a ampliação dramática das divisões políticas e do desentendimento social.


Tornamos inviável o centro político, a inteligência e a moderação, em benefício da estridência reacionária, da agitação irresponsável, do apelo a um passado mitificado. O oportunismo, a demagogia e a prevalência de interesses mesquinhos tomaram o palco de assalto, marginalizando as demais candidaturas. Sobraram os antípodas, que se escolheram reciprocamente, impelidos por uma ordem social despedaçada e sequiosa de “segurança”, um o espelho invertido do outro.

Nenhuma vitória terá força suficiente para desprezar esse quadro social. O vencedor e sua oposição terão de negociar, dialogar, contemporizar. Um pacto terá de ser costurado.

Se Haddad vencer, será uma vitória da resiliência democrática e do poder das redes. Na semana derradeira, as mensagens pró-Haddad e uma militância determinada deram-lhe o gás que faltava. Não será uma vitória do PT. O partido, porém, cuidou de armar uma nova narrativa para si: sai o Lula perseguido pelo golpe, entra o “fascismo fraudulento” de Bolsonaro, impulsionado pelo pânico que impregnou a alma de muita gente.

Se o vitorioso for Bolsonaro, pode-se esperar qualquer coisa, um enigma. A nova narrativa petista encontrará ressonância numa sociedade machucada por tantas divisões políticas e partidárias. Será como acender um fósforo diante de um baú de dinamite. O governo Bolsonaro não terá sossego. Mas a esquerda que a ele se opuser desse modo também não conseguirá reorganizar-se para cumprir uma função democrática e reformadora. Permanecerá amarrada numa cultura negativa, de “resistência”, vocacionada para dividir e diferenciar mais do que agregar e unificar.

Não dá para cravar que o eventual governo Bolsonaro levará o Brasil para uma ditadura fascista. Os componentes fascistoides exibidos durante a campanha terão de passar pela prova dos fatos. Uma escolha terá de ser feita: ou jogar o País num regime de força e na histeria social desagregadora, ou buscar a reconciliação. Neste segundo caso, Bolsonaro terá de arquivar a retórica belicista e reacionária. Sem isso seu governo submergirá. Precisará dissolver sua própria folha de serviços hostil aos direitos e às liberdades civis. Terá de ser o estadista que não apareceu durante a campanha.

Uma Presidência mais democrática, como a que promete Haddad, deixará o País parecido com o que se conhece, mas não necessariamente trabalhará para qualificar a democracia. Primeiro, porque trará consigo outro “mito” igualmente nefasto – o do Lula perseguido e santificado –, que fará a balança pender mais para o Estado do que para a sociedade. Depois, porque o PT poderá voltar ao poder com sangue nos olhos e desejo de vingança, o que ensejará uma reação social ruim para a governança democrática. Também aqui o presidente terá de ser muito mais do que um homem de partido.

O Brasil do próximo ciclo não terá como ser governado sem uma pacificação geral dos espíritos, para a qual o papel do presidente será estratégico.

O novo chefe do Executivo começará a trabalhar com uma democracia de má qualidade, que funciona e tem suas instituições, mas produz poucos resultados naquilo que deveria ser seu alvo principal: educar a cidadania e satisfazer sua expectativa de que as escolhas governamentais sejam justas e eficazes.

O País está despedaçado, os nichos políticos estão “empoderados” de modo insano, cegos para o outro, sem disposição para o diálogo, as divisões ameaçam se prolongar no tempo. Nada disso ajuda a preservar e fortalecer a democracia. Os problemas econômicos, infraestruturais, educacionais, relacionados à saúde e à proteção social são desafiadores. A próxima legislatura parlamentar é uma incógnita: os partidos estão enfraquecidos e a composição do Congresso Nacional combina a manutenção de algumas famílias tradicionais com uma chusma de novas figuras de quem não se conhecem o perfil e a densidade democrática.

O País continuará surpreendendo, com sua força, sua população, suas conquistas. Foi assim durante todo o século 20. De algum modo, ainda que por vias tortas, haverá política. E nela os democratas haverão de depositar suas fichas. A “pequena política” – concentrada no jogo miúdo do poder, na destruição dos adversários, na chantagem – terá de se encontrar com a “grande política”, voltada para a recomposição da comunidade política.

O futuro será comprometido se perdermos essa perspectiva e continuarmos a alimentar as divisões perfunctórias, a competição pelas migalhas do poder, a lógica partidária que mal consegue permanecer de pé, a retórica de “guerra”.

O importante é que nossa emoção sobreviva, amanhã há de ser outro dia, dizem os poetas. Somente a perspectiva da política democrática resolverá o problema de saber quem somos, por que estamos juntos e o que queremos alcançar.

Vai passar...

A democracia está sendo desafiada, mas que não há céu tempestuoso que resista a ela. Ela não vence por nocaute, mas com toda certeza vence por pontos. Desde que bata mais na velha ordem, velha mentalidade, do que apanhe. É o que está acontecendo. Essa chuva ácida vai passar com toda a certeza
Carlos Ayres Britto, ex-presidente do Supremo Tribunal Federal

Redução de danos

Li, nos últimos dias, várias referências à ascensão de Hitler ao poder na Alemanha dos anos 30, que foi aceita de forma mais ou menos passiva pelas elites políticas e intelectuais do país. Não é impossível que Bolsonaro repita os passos do ditador alemão e nos conduza ao totalitarismo e à barbárie, mas também não me parece que isso seja provável.

Não podemos perder de vista o chamado espaço amostral. O mundo já produziu várias dezenas de líderes populistas e apenas um Hitler. É mais provável que o capitão reformado se revele mais um populista medíocre do que um gênio do mal.


Como já disse aqui, o tamanho da regressão que uma ainda provável administração Bolsonaro significará depende de nossa capacidade de organizarmos as linhas de defesa das instituições liberais. O futuro pode parecer sombrio, mas nem o Brasil, nem a democracia estão perdidos. A democracia, ao contrário da gravidez, não é um estado binário, que existe ou não existe. Ela pode ser mais ou menos completa e resiste a algum nível de agressão.

Em certas áreas experimentaremos retrocessos. Preocupam-me em especial o meio ambiente e a pauta dos costumes. Ainda que não tenha maioria nominal no Parlamento, Bolsonaro não encontraria dificuldades em conseguir com as bancadas ruralista e religiosa os votos necessários para relaxar controles ambientais e aprovar iniciativas legislativas de grupos conservadores.

Não penso, porém, que seria tão fácil alterar o funcionamento dos Poderes e do sistema político (deputados e senadores são beneficiários das regras vigentes) nem obliterar os direitos e garantias fundamentais, o que seria necessário para caracterizar uma escalada autoritária de fôlego.

O STF tem se mostrado dividido nos últimos anos, mas creio que se manteria unido em torno dessas questões, sobretudo se encontrar respaldo da sociedade civil.

Redução de danos é o conceito em torno do qual precisamos nos pautar.

O povo é o eterno culpado

O previsível resultado do segundo turno da eleição presidencial de 2018 tem sido atribuído, no Brasil e no exterior, a um crescimento avassalador do conservadorismo do eleitor brasileiro. Esse diagnóstico implica acusar o povo brasileiro de ser incapaz de votar racionalmente, e só se explica como efeito do que chamarei de vitimologia eleitoral.

Criada para traçar um perfil das vítimas como instrumento para explicar a motivação de um crime e o comportamento de criminosos, a técnica da vitimologia tem sido empregada na análise do comportamento político, quando se trata de explicar um resultado eleitoral inesperado: prendam-se os suspeitos de sempre.

Ora, não é razoável acusar o eleitorado pelo resultado das eleições, porque o voto não é uma escolha de livre-arbítrio do eleitor, mas, sim, uma opção limitada por uma agenda que lhe é imposta pelo sistema eleitoral, pelo sistema partidário que dele decorre e pelas cúpulas partidárias, pressionadas mais pelos interesses da classe dirigente do que pelo clamor popular. A liberdade política do cidadão brasileiro pode ser considerada uma liberdade condicionada.


O voto popular limita-se a responder a uma agenda compulsória, construída de cima para baixo, não é uma livre escolha. A pesquisa sobre comportamento eleitoral tem foco na descrição estatística, ou na interpretação “qualitativa” de variáveis presentes nas respostas dos eleitores, mas nada ensina sobre o processo político que criou o leque de escolhas que lhe são impostas. É como um experimento em que se consideram as respostas, ignorando inteiramente os estímulos que lhes deram origem.

Parte-se sempre do perfil do eleitor, pressupondo que o povo é o único fator que determina o resultado das urnas. O processo eleitoral envolve, porém, uma interação complexa entre dimensões mais ou menos independentes entre si. Entre outras, elas incluem variáveis relativas à história política, à percepção desse contexto político pelos atores envolvidos e atitudes, expectativas e reações que daí resultam, diante das candidaturas em jogo.

Minha hipótese é que o comportamento dos eleitores é determinado pela maneira como o povo percebe a evolução do processo político, isto é, para onde caminham as ameaças ao bem-estar e à liberdade do povo, em face da ganância e da paixão de poder dos Grandes (tal como as define Maquiavel). O eleitor comum escolhe entre quais candidatos, partidos, novas políticas adotadas ou revogadas são percebidos como ameaça ao bem-estar e à liberdade do cidadão – isto é, mantêm e ampliam os privilégios e a corrupção dos poderosos – e quais, ao contrário, são percebidos como barreiras contra a opressão e a exploração do cidadão comum pela classe dirigente. No presente caso, desde as revelação dos escândalos do mensalão a classe política como um todo tem encarnado, na percepção popular, toda a malignidade dessa ameaça à vida, à honra e aos parcos bens que garantem a sobrevivência da imensa maioria.

Essa percepção não é cristalina. É mediada pelos partidos e movimentos de opinião, e raramente se expressa numa imagem única – como, por exemplo, a percepção da inflação, do desemprego, do empobrecimento, da corrupção da máquina pública, da insegurança, da degradação moral. Essas “preferências” populares são tudo menos nítidas e unívocas. São, ao contrário, difusas e equívocas.

Com isso, as análises do processo eleitoral não captam o caráter único do caso presente. Não lhes vem à mente que há cinco longos e sofridos anos o povo brasileiro tem manifestado, reiteradamente, sua indignação quanto à maneira como tem sido governado.

Diante do desprezo cego, surdo e mudo dos governantes, e do silêncio envergonhado das candidaturas, continuam prometendo creches, hospitais, metrôs, que todos sabem que não serão construídos, se o forem, não vão funcionar, se funcionarem, não vão atender decentemente ao povo. Uma garantia de mudança da política e dos políticos, desde que minimamente crível, seria o único caminho para disputar a maioria do eleitorado indignado com tudo e com todos.

Defender a continuidade, embora com mais eficiência, experiência, ou vinho novo em velhas barricas foi, contudo, o caminho do suicídio dos partidos tradicionais. Nesse caminho, o PT foi mais longe, porque encarnou, como os demais, a continuidade da velha política, mas defendeu também o retrocesso, ressuscitando o velho programa radical, de 30 anos atrás, com que Lula perdeu três eleições seguidas. Seu fraco desempenho no primeiro turno não foi pior porque se beneficiou da polarização contra Bolsonaro.

Como o PT, Bolsonaro também se beneficiou da polarização e, como os políticos tradicionais, tampouco deu qualquer resposta concreta, mas foi o único a vociferar contra tudo e contra todos. Com isso, sua falta de rumo e de propostas permitiu que encarnasse a mudança a todo custo. Tornou-se um candidato-ônibus: oferece lugar para todos e vai em todas as direções. Sua candidatura pode, assim, acolher uma multidão de eleitores motivados por ameaças diversas, ignoradas ou desprezadas pelas lideranças tradicionais. Note-se, entre as ameaças percebidas por eleitores de Bolsonaro, o temor do patrulhamento que acompanhou políticas discriminatórias adotadas por governos petistas. Assim, parcela não desprezível de seus eleitores não se identifica necessariamente com ideologias extremas nem com a retórica de ódio dominante em sua campanha.

Em suma, o resultado da eleição não é determinado pelo eleitor, que apenas reage a um cenário que lhe é imposto. Tampouco o voto em um ou outro candidato cancela a indignação generalizada contra a política e os políticos e, portanto, não oferece um cheque em branco. O presidente a ser empossado no dia 1.° de janeiro não gozará uma lua de mel, mas um sursis, com curtíssimo prazo para cumprir, de mãos atadas, uma agenda tão extensa e multifacetada como suas promessas.

Paisagem brasileira


Às gerações perdidas

- Vê aquele senhor ali? É “Bolsonaro”

A radicalização imposta seguidamente por um esquerdismo de araque fez propalar entre os ignorantes o estigma mesmo do que não se é. Jovens agora, conforme a cartilha que lembra bem os anos de chumbo dos sovietes, nada mais parecido com a juventude hitlerista, passeiam pelas ruas imbuídos do mesmo arroubo de quem conhece o tipo de eleitor pela cara.

A polarização das últimas campanhas criou raízes e vai perdurar por muito tempo em meio à ignorância dos que têm as falhas de formação e escolar. É o legado político ou herança maldita que governos, em seus baronatos, continuam a sustentar para assegurar suas imunidades e impunidades administrativas.


Embora o senhor citado na frase nem seja bolsonarista, por não aceitar o governo de uma incógnita folclórica, nem petista, por não compactuar com o continuísmo da pilantragem explícita, foi tachado como em outras épocas os ”judeus” eram todos aqueles que não tivessem características arianas.

A violência verbal das jovens lembrou o ataque vivido por Moacir Werneck de Castro, citado em “Europa 1935 uma Aventura de Juventude”, quando o jornalista e escritor brasileiro leva uma surra de um bando de pivetes nazistas.

Os tempos, segundo apontam alguns, são nebulosos, mas a pichação verbal é a mesma. Há uma agressividade pelo ar que tem responsáveis bem conhecidos por incutir a divisão como arma de assegurar o poder acima de qualquer suspeita.

O radicalismo não tem cor, credo, partido, gênero. É apenas crime, venha de onde vier. A instabilidade política destas eleições reflete o longo período sob cretinice explícita em todos os setores, que nadaram de costas num mar de sofrimento de olho no céu de brigadeiro de garantias políticas.

O Brasil ainda terá infelizmente que conviver com essas ações criminosas por tempos, inoculada que foi para uma grande massa, em particular de jovens, por sua maior maleabilidade. É o castigo por acreditar em deuses de francaria.
Luiz Gadelha

Ao vencedor, as batatas quentes do momento

Toda eleição serve para lavar a roupa suja do país, acumulada no cesto ao longo de quatro anos, para depois ser quarada sob o sol da democracia, o começar de novo. Mas, desta vez, o país sai do processo pior do que entrou. Mais dividido, mais inseguro e de muito pior humor e abertura para o diálogo. A mais complexa e tensa eleição da história do Brasil chega à reta final com muitas perdas e danos e pouco, talvez nenhum, ganho.

Se em 2014 as pessoas se dividiram entre Dilma Rousseff e Aécio Neves, desta vez foi ainda mais visceral: a disputa separou amigos, dividiu famílias, impôs muros às comunidades. Uma guerra santa que contrapôs tudo a tudo: de questões políticas à morais, de concepções de Estado à críticas ao caráter dos oponentes. O alvo principal foi o PT, que claro, tem contas a acertar, mas que também carregou todos os pecados do sistema político.

(É incrível como, de repente, ninguém mais fala de Michel Temer, Aécio Neves, PSDB, MDB e demais atores implicados com os mesmos problemas, afogados no mesmo rio e atolados na mesma lama.)

O resultado só não está definido com a vitória do bolsonarismo porque o Brasil é o país dos fatos mais improváveis. O ex-capitão e sua turma falam demais e, em virtude disto, tudo pode acontecer. O PT não jogou a toalha e ainda acredita numa virada, numa onda, numa vibração de chegada. Ao longo da semana muita gente se mobilizou, se não por amor a Fernando Haddad, em razão do medo aguçado pela retórica de Jair Bolsonaro e dos seus.

Mas, independente de surpresas, a realidade é que quem vier a vencer a disputa não vencerá de lavada, não será massacrante, nem consagrador. A quantidade de indivíduos contrariados com o resultado será enorme, nada desprezível. Improvável que se resignem imediatamente com o resultado. O país sairá dividido. E, para o eleito, não será inteligente apostar no aprofundamento dessa fratura.

Bolsonaro e Haddad tentaram expressar alguma moderação ao longo da última quinta-feira. Já perceberam que o vencedor não levará tudo. O certo é que, mais que em eleições anteriores, o discurso da vitória será de fundamental importância.

Em 2014, Aécio não ligou para Dilma, reconhecendo a derrota, se não para lhe desejar sorte, pelo menos parabenizando-a protocolarmente. Dilma, ainda mais imprudente, no primeiro pronunciamento que fez como presidente reeleita, recusou-se em ao menos citar o nome do adversário. Morreram abraçados à mesma estupidez. Em relação ao país, conhecemos as consequências da birra entre os dois.

Se a Câmara dos Deputados representa o povo e o Senado os estados, a presidência da República simboliza a nação, a unidade nacional. Jurando cumprir a Constituição, um novo presidente reafirma o pacto político. Passando a ser “o presidente de todos os brasileiros”, reparando rachaduras, reconecta os grupos e o país.

Contudo, depois de tudo o que se deu nestes últimos anos, é de supor as dificuldades do derrotado para fazer o gesto de reconhecimento, seja Fernando Haddad seja Jair Bolsonaro. Se assim for, será um péssimo recomeço, ainda que não seja inédito dado o pioneirismo de Aécio.

A tensão da campanha despertou rancores que não ficarão nos palanques, nem serão páginas viradas. Precavidos, os dois lados já construíram narrativas de fraude e trapaça do adversário. De ambos os lados, restaram desrespeito e desconfiança em relação ao outro. Há poucos (ou nenhum) operadores políticos capazes de costurar esses cortes. Embora natural a disputa, processos assim são feridas abertas e purulentas, cobertas de moscas; não somente demoram a cicatrizar, como podem se alastrar pelo corpo.

Por isso, seja quem for, ao eleito caberá a prudência, o comedimento; a humildade na conquista. Para que sua vitória não seja de Pirro — a vitória que arruína —, seu discurso na noite de domingo deverá ser entendido como sincero sinal, se não de aproximação, de convivência respeitosa e democrática. Um esforço para que a guerra eleitoral não persista, então, como outros tipos de guerra ou guerra de verdade.

Se minimante perspicaz, o vitorioso perceberá que a vitória eleitoral não implica em rendição do derrotado, não indica a desforra do ganhador. Antes, requer a consciência de novo acordo onde naturais diferenças são respeitadas. E que o árbitro de qualquer conflito será a lei, não a força.

Se não for por democracia, que seja assim por, pelo menos, a mínima inteligência. Que o próximo presidente, já na noite de domingo, estenda a mão ao invés de tripudiar. Postura de estadista, cuja ausência o país se ressente. Tampouco caberá comemorar ou questionar o resultado nas ruas, de modo triunfal ou furioso. Conveniente será baixar a bola, conter radicais exaltados, não colocar tudo a perder antes mesmo de ter começado.

Compreender que se tratou tão somente de passageira e efêmera vitória ou circunstancial derrota, como deve ser numa democracia. Apenas mais uma. Como tantas que já foram e tantas outras que, espera-se, ainda virão. Ao vencido, apenas a compaixão — sem ódio; ao vencedor, as batatas quentes que lhe cabem no momento.
Carlos Melo

Perguntas

A Covardia pergunta:

– É seguro?

A Conveniência pergunta:

– É oportuno?

E a Vaidade pergunta:

– É popular?

Mas a Consciência pergunta:

– É justo? 

Martin Luther King

'Patriazinha'

A poucos dias da eleição que definirá quem vai presidir o Brasil a partir de janeiro de 2019, acordo mais do que nunca apaixonada pelo meu país e morta de pena dele. Há quanto tempo esperamos que o Brasil se transforme no país do futuro…

Não é, como foi imaginado pelos mais ingênuos ou desinformados, o progresso de mais carros nas ruas, mais máquinas de lavar ao lado do tanque, mais celulares nas mãos de todos, mais aviões lotados.. . O que sonhávamos, desejávamos e pedíamos aos céus era o progresso das ideias, dos pensamentos, da ética e da dedicação verdadeira de nossos políticos.

Ainda ecoa em nossos corações a carta-testamento de Getúlio Vargas, quando lá pelas tantas ele diz: “Levo o pesar de não haver podido fazer, por este bom e generoso povo brasileiro e principalmente pelos mais necessitados, todo o bem que pretendia”.

Se Getúlio, um verdadeiro estadista, não conseguiu, como fomos imaginar que o líder hoje encarcerado o faria?

Nem os dois, nem nenhum dos outros que comandaram o país o fez. Pobre Brasil que segunda-feira 29 de outubro de 2018 inicia nova viagem… O que será de nós? Para onde nos levarão? O que farão de nosso país?

Leio e releio o belo poema ‘Pátria Amada’, que Vinícius de Moraes escreveu em 1949, quando servia em Barcelona e sentia muita saudade do Brasil. Eu não estou ausente, como o poeta, estou aqui no Rio de Janeiro onde vivo e que, como a mãe gentil que o pariu também está tão pobrezinho. Mas é ao poeta que recorro para me consolar e reavivar minha esperança:

Vontade de beijar os olhos de minha pátria
De niná-la, de passar-lhe a mão pelos cabelos…
Vontade de mudar as cores do vestido (auriverde!) tão feias
De minha pátria, de minha pátria sem sapatos
E sem meias, pátria minha
Tão pobrinha! 

***
Teu nome é pátria amada, é patriazinha
Não rima com mãe gentil
Vives em mim como uma filha, que és
Uma ilha de ternura: a Ilha
Brasil, talvez… 

***
Agora chamarei a amiga cotovia
E pedirei que peça ao rouxinol do dia
Que peça ao sabiá
Para levar-te presto este avigrama:
“Pátria minha, saudades de quem te ama…" 

Ao carioca Vinícius que no Céu está, peço que reze pela sua Patriazinha e por nós, seus conterrâneos.

Maria Helena Rubinato Rodrigues de Sousa 

Pensamento do Dia


As cidades delgadas

Aquelas que continuam ao longo dos anos e das mutações a dar forma aos desejos e aquelas em que os desejos conseguem cancelar a cidade ou são por estas cancelados
Italo Calvino, "as cidades invisíveis"

A mentira é tão velha quanto a política, mas ganhou novos meios

Mentir na política não é algo novo. Pelo contrário: para muitos filósofos a política é o principal espaço para a propagação de inverdades. Assim eleições já foram definidas, e guerras foram iniciadas ou justificadas, em governos democráticos ou em ditaduras. Só que agora a mentira ganhou novos meios – e com a velocidade que ela chega, ela se espalha.

Nas eleições deste ano, os brasileiros estão vivendo isso na prática, e a Justiça Eleitoral admite não saber o que fazer com as chamadas fake news. Enquanto órgãos que deveriam controlar apenas acompanham, quase passivamente, a enxurrada de informações duvidosas, as empresas que servem de meio para essas mensagens enxugam gelo ou dão respostas insuficientes.


O professor de ética e política Milton Meira do Nascimento, do Departamento de Filosofia da USP, explica que a mentira está presente na política desde a Grécia antiga, mas a forma como o espaço político lida com esse discurso mudou com o tempo, e ele perdeu os meios para contradizer uma informação falsa.

"O mundo da política é o lugar do debate e da persuasão, desde a Grécia Antiga. Existia a mentira, mas também um espaço para a argumentação, onde essa mentira era combatida. Quando a democracia moderna, já na formação do Parlamento inglês no século 19, passa a ser construída pela representação política, em vez de se discutir propostas, a política ficou centrada nas pessoas. Assim se perdeu o espaço de debate", diz o professor.

Nascimento lembra ainda que é justamente a falta de um espaço de debate que contribui para problemas atuais, como as notícias falsas difundidas em redes sociais.

"Na filosofia, o ideal socrático assume o compromisso de ir atrás da verdade, de investigar a verdade debatendo e conversando de forma saudável. Sócrates afirma que a busca pela verdade é um processo, mas para isso é preciso um espaço de debate, algo que não ocorre nas redes sociais. No Whatsapp, as pessoas querem apenas uma mensagem rápida, o fluxo só tem um sentido", afirma Nascimento.

Na história recente há diversos escândalos de mentiras orquestradas por governos. Um dos mais emblemáticos do século 20 foi o de informações sobre a Guerra do Vietnã omitidas pelo governo dos EUA. Em 1971, o jornal The New York Times publicou matérias sobre a real participação americana na guerra. A série de reportagens ficou conhecida como Papéis do Pentágono.

Meses depois, a filósofa alemã Hannah Arendt escreveu o artigo Mentira na política: reflexões sobre os Papéis do Pentágono para tratar sobre o tema. "A veracidade nunca esteve entre as virtudes políticas, e mentiras sempre foram encaradas como instrumentos justificáveis nesses assuntos", escreve Arendt.

O caso americano também é citado por André de Macedo Duarte, diretor da agência internacional da UFPR e professor de filosofia da mesma instituição. Ele lembra que ditaduras e democracias abrigaram mentiras.

"O nazismo alemão, o fascismo italiano e o stalinismo soviético utilizaram meios de comunicação para reescrever a história ou para difundir um clima de terror e ódio. Isso também ocorreu nas democracias, quando se descobriu que havia um conjunto de mentiras e histórias distorcidas sobre o Vietnã", comenta.

Voltando a Arendt, ela menciona no artigo sobre os Papéis do Pentágono a forma como não apenas quem recebe a mentira acredita na informação, mas também quem a produz. Isso faz parte do campo da imaginação, explica a filósofa alemã. Ainda no século 4, o filósofo do cristianismo Santo Agostinho já tratava sobre a crença na mentira.

"Dizer uma coisa falsa não é mentira se alguém a crê verdadeira ou se tem opinião formada de que é verdadeiro aquilo que diz", escreveu Santo Agostinho na obra Sobre a mentira: De Mendácio.

Duarte reforça essa questão da crença de quem replica uma informação falsa ao tratar sobre os tempos atuais.

"A produção da mentira exige certa plausibilidade. Não adianta dizer simplesmente que hoje marcianos vão invadir o Brasil porque não cola. É preciso levar em consideração a realidade social e o contexto político para mentir. Por exemplo, o antissemitismo não foi inventado pelo nazismo, ele já estava na Europa. Tinha apenas uma característica diferente na Alemanha, mas existia também em outros países. O antipetismo também não foi criado nesta eleição, já havia um passado de insatisfação com o partido que governou o país nos últimos anos devido aos escândalos da Lava Jato e a economia ruim", explica o professor da UFPR.

Conciliação política é a nova prioridade nacional

Num instante em que o Brasil vive um triste momento — a disputa presidencial entre o candidato ungido pelo padrinho-presidiário e uma chapa puro-sangue militar — vale à pena recordar uma das melhores passagens da história republicana: a conciliação política conduzida por Tancredo Neves. Há 33 anos, o país estava em ruínas. O governo, sem rumo. A mobilização pelas eleições diretas atolara no Congresso, abrindo um fosso entre a rua e o aparato de uma ditadura em fim de linha.

Mal comparando, ocorre agora algo parecido. Se o resultado do primeiro turno serviu para alguma coisa foi para confirmar que há uma irremediável ruptura entre a sociedade e um sistema político que apodreceu. Hoje, como ontem, a prioridade nacional é a conciliação. Sem ela, dificilmente o Brasil terá energias para enfrentar os dramas que o assediam —da ruína fiscal ao desemprego.

Tancredo Neves, como se sabe, chegou ao Planalto morto, para o velório. Deixou escrito o discurso que faria na posse. Haddad e Bolsonaro deveriam ler a peça. ''Esta solenidade não é a do júbilo de uma facção que tenha submetido a outra, mas festa de conciliação nacional'', escreveu Tancredo. ''Nosso progresso político deveu-se mais à força reinvidicadora dos homens do povo do que à consciência das elites'', anotou em outro trecho. ''A história nos tem mostrado que, invariavelmente, o exacerbado egoísmo das classes dirigentes as tem conduzido ao suicídio total'', acrescentou. Nada mais atual do que o discurso que Tancredo não pôde pronunciar.