segunda-feira, 14 de março de 2022

É por isso que Putin não pode recuar

Carl von Clausewitz afirmou que a guerra é a continuação da política por outros meios. A invasão russa da Ucrânia é a continuação da política de identidade por outros meios.

Não sei quanto a você, mas descobri que os escritos de especialistas convencionais em relações internacionais não são muito úteis para entender do que se trata toda essa crise. Mas descobri que a escrita de especialistas em psicologia social é extremamente útil.

Isso porque Vladimir Putin não é um político convencional de grande potência. Ele é fundamentalmente um empreendedor de identidade. Sua conquista singular foi ajudar os russos a se recuperarem de um trauma psíquico – as consequências da União Soviética – e dar-lhes uma identidade coletiva para que possam sentir que são importantes, que sua vida tem dignidade.

A guerra na Ucrânia não é principalmente por terra; trata-se principalmente de status. Putin invadiu para que os russos pudessem sentir que são uma grande nação mais uma vez e para que o próprio Putin pudesse sentir que ele é uma figura histórica mundial nos moldes de Pedro, o Grande .


Talvez devêssemos ver essa invasão como uma forma raivosa de política de identidade. Putin passou anos alimentando ressentimentos russos em relação ao Ocidente. Ele afirmou falsamente que os falantes de russo estão sob ataque generalizado na Ucrânia. Ele usa as ferramentas da guerra na tentativa de fazer os russos se orgulharem de sua identidade de grupo.

A União Soviética era uma tirania confusa, mas como Gulnaz Sharafutdinova escreve em seu livro “O Espelho Vermelho”, a história e a retórica soviética deram aos russos a sensação de que eles estavam “vivendo em um país que era, em muitos aspectos, único e superior ao resto do mundo.” As pessoas podiam obter um senso de significado pessoal por fazer parte desse projeto soviético maior.

O fim da União Soviética poderia ter sido visto como uma libertação, uma chance de construir uma nova e maior Rússia. Mas Putin escolheu ver isso como uma perda catastrófica, que cria um sentimento de desamparo e uma identidade destruída. Quem somos nós agora? Nós importamos mais?

Como políticos de identidade em todos os lugares, Putin transformou essa crise de identidade em uma história de humilhação. Ele encobriu qualquer sentimento incipiente de vergonha e inferioridade declarando: Nós somos as vítimas inocentes. Eles — os americanos, os ocidentais, os caras legais de Davos — fizeram isso conosco. Como outros políticos de identidade ao redor do mundo, ele promoveu o ressentimento de status para aliviar as feridas do trauma, os medos da inferioridade.

Nos primeiros anos de seu reinado, ele reconstruiu a identidade russa. Ele reivindicou partes do legado soviético como algo para se orgulhar. Principalmente, sua visão da identidade russa girava em torno de si mesmo. Ao desfilar como uma figura poderosa no cenário mundial, Putin poderia fazer os russos se sentirem orgulhosos e parte de algo grande. Vyacheslav Volodin, então vice-chefe de gabinete do Kremlin, capturou a mentalidade do regime em 2014: “Não há Rússia hoje se não houver Putin”.

Essa grande estratégia parecia ter sido plenamente justificada naquele ano com a bem-sucedida invasão da Crimeia. Tendo recuperado esta terra, a Rússia poderia se exibir como uma grande potência mais uma vez. Cada vez mais, Putin se retratava não apenas como um líder nacional, mas como um líder civilizacional, liderando as forças da moralidade tradicional contra a depravação moral do Ocidente.

Mas agora está tudo fora de controle. As políticas de identidade de Putin são tão virulentas porque são tão narcisistas. Assim como os narcisistas individuais parecem ser egoístas inflados, mas são almas realmente inseguras tentando cobrir sua fragilidade, nações e grupos narcisistas que desfilam seu poder são frequentemente assombrados pelo medo de sua própria fraqueza. Os narcisistas anseiam por reconhecimento, mas nunca conseguem o suficiente. Os narcisistas anseiam por segurança psíquica, mas agem de maneiras autodestrutivas que garantem que estejam frequentemente sob ataque.

A identidade de Putin e a identidade russa são atualmente inseparáveis. A pergunta de um bilhão de rublos é: como um cara que passou a vida lutando contra sentimentos de vergonha e humilhação reage quando grandes partes do mundo o envergonham e humilham? Como um cara que passou a vida tentando parecer poderoso e visionário reage à medida que ele parece cada vez mais fraco e míope?

Imagino que, pelo menos por um tempo, Putin possa voltar à conhecida narrativa russa de “fortaleza sitiada”: o Ocidente está sempre atrás de nós. Sempre vencemos no final.

Houve indícios de que Putin poderia estar disposto a fechar um acordo com algum tipo de compromisso e se retirar da Ucrânia, mas isso seria um choque. Isso destruiria a identidade pessoal e nacional inchada e frágil que ele vem construindo todos esses anos. As pessoas tendem a não se comprometer quando sua própria identidade está em jogo.

Meu medo é que Putin conheça apenas uma maneira de lidar com a humilhação, que é culpar os outros e atacar. Há alguns anos, meu colega Thomas L. Friedman escreveu uma coluna presciente sobre a política da humilhação na qual citava Nelson Mandela: “Não há ninguém mais perigoso do que aquele que foi humilhado”.

Putin trouxe essa humilhação para si mesmo e para seu país. Falando como alguém que admira profundamente a cultura russa, acho um grande crime que uma nação com tantos caminhos para a dignidade e a grandeza tenha escolhido o caminho que leva tão cruelmente à degradação.
David Brooks, The New York Times

Pensamento do Dia

 


Orwell antecipou a sombra de Putin

O alistamento espontâneo de civis de diversas nacionalidades ao lado dos ucranianos desmonta uma certeza do filósofo francês (de direita) Luc Ferry: que nenhuma causa contemporânea mereceria a imolação da vida.

Estariam longe e abandonadas as paixões políticas, as empolgações estéticas (Maiakóvski saía no braço com seus interlocutores) e as identidades nacionais. Furores e arrebatamentos responsáveis por toneladas de mortes, principalmente no século passado.

Em sua conta não entram os fundamentalistas islâmicos, os tais homens-bomba — no caso, não seria sequer uma causa, mas um vácuo civilizacional.

O engajamento da população civil ucraniana, de outro lado, escande a identificação com um revelador instinto de nacionalidade, certamente para a desagradável surpresa de Putin, e em oposição ao conceito niilista e desossado de Luc Ferry, ex-ministro da Educação da França.

Diante de Putin, parte da esquerda retomou o coro com a extrema direita. Bozo e o PCO se encontram do mesmo lado da trincheira — ele, porque jura ser seguidor da crença de Silas Malafaia; o grupelho, por lutar contra a vida alheia.


Não assusta outro naco da esquerda perfilar ao lado de Putin, portanto corroborando com as bombas sobre maternidades e asilos ucranianos, apenas para estar contra os Estados Unidos. É nesse instante que a obra-prima de George Orwell, “Homenagem à Catalunha”, mereceria entrar na cabeça dos putinescos de oportunidade.

Ao passar por Paris, e jantar com Henry Miller, glorioso autor da trilogia “Sexus”, “Nexus” e “Plexus”, Orwell contou-lhe que se juntaria às Brigadas Internacionais na luta contra Franco. Pacifista, Miller deu-lhe seu casaco. E disse: “Infelizmente não o protegerá das balas, apenas do frio”.

Como Putin agora na Ucrânia, os golpistas do general Franco não imaginavam ser ferozmente enfrentados por setores organizados da sociedade espanhola (sindicatos dos trabalhadores, principalmente) ou ainda por uma força internacional, num elenco estelar de intelectuais, como George Orwell, Ernest Hemingway, André Malraux e Arthur Koestler, entre muitos outros.

Talvez fosse ilusão.

Havia então uma crença. E um ingênuo romantismo.

As Brigadas Internacionais atraíram militantes de diversas nacionalidades, quase todos inexperientes em combates, mas apaixonados pela luta contra a tirania representada pelo General Franco e seu golpe num governo democraticamente eleito, levemente esquerdista, porém expressão do voto. A Guerra Civil Espanhola entraria para a História como sinônimo de traição às causas e às ideias.

Em 1936, à primeira vista, parecia não haver dúvida entre os opositores antifascistas. Franco deveria ser batido; a República, defendida; e não se negociava dar a vida em troca da liberdade.

Mesmo na superfície já ocorriam as clássicas divisões da esquerda. Comunistas não se bicavam com os trotskistas e os anarquistas, que desconfiavam de todos. Pareciam apenas divergências políticas, visões opostas na condução à vitória. O fascismo seria o único inimigo, escreveu Orwell em seu dramático relato.

Stálin não pensava assim. Porque ele era a sombra.

Orwell encarnava um tipo de intelectual que andou meio fora de moda até a atual guerra da Ucrânia. Acreditava nas suas ideias — e por elas, como Apollinaire ou Blaise Cendrars, pegou em armas, mesmo com a vida em risco.

Lutando na Catalunha, miliciano nas fileiras do Partido Operário de Unificação Marxista (Poum), de inspiração trotskista, junto a um pelotão quase sem munição, passou fome, frio intenso, esteve sob feroz bombardeio, sofreu com os piolhos e acabou seriamente ferido. Por pouco não perdeu os movimentos do braço esquerdo — ao contrário de Bozo, não chorou.

Quando deixou o hospital, leu nos jornais comunistas que ele e seus companheiros do Poum eram fascistas. Com os anarquistas, se viam acusados de espionagem e traição. Andreu Nin, dirigente do Poum, já fora preso e “desaparecido”. Outros trotskistas também seriam eliminados. Estava em marcha a política stalinista de dizimação das forças opositoras a sua esquerda. Bastava espalhar mentiras (“espiões”) e os chamar de fascistas, talkey? Funcionou: milhares de trotskistas e anarquistas caíram presos — e mortos.

Ainda convalescente, Orwell, para não acabar como Nin, se escondeu dos franquistas e da polícia manietada pelos stalinistas. Dormiu nos escombros de uma igreja sem teto, nos canteiros de estradas, andou de esguelha pelas ruas, novamente passou fome. Mas não chorou. Tentou salvar seus companheiros, presos sob falsas acusações, mas, sem sucesso, teve de fugir da Espanha — dos franquistas e dos comunistas de Stálin.

A traição dos comunistas na Guerra Civil Espanhola custou a derrota da República, a vitória de Franco e uma ditadura sanguinária que matou milhares (entre eles, o poeta Federico García Lorca). Só terminou em 1975, com a morte do déspota.

Orwell chegou socialista. Mas saiu da Guerra Civil espanhola com a ideia de escrever “1984”, espécie de epitáfio do totalitarismo em nome da causa.

Putin é a sombra.

Para que servem os tribunais?

Numa aldeia, alguns camponeses que se haviam reunidos para ler os Evangelhos foram dispersados pelos guardas. No domingo seguinte voltaram a se reunir. Então o chefe dos soldados levantou-lhes um processo e levou-os a julgamento. Após um inquérito feito pelo juiz de instrução, o substituto redigiu uma ata de acusação, que o tribunal confirmou. Durante o requisitório foram apresentadas as provas do delito; eram os Evangelhos. Os camponeses foram deportados.

- É horrível! – Concluiu Nekliudov. – Será possível que isto é verdade?

- O que é que nisso o surpreende tanto?

- Tudo. Não falemos já no chefe dos soldados, mero executor e ordens, mas o substituto que redigiu a ata é um homem instruído...


- Aí é que está o erro. Estamos acostumados a creditar que os magistrados são homens modernos, de ideias liberais. Foi assim noutros tempos, mas agora é tudo diferente. São funcionários e apenas estão preocupados em que chegue o dia vinte de cada mês para receberem os seus vencimentos, que gostariam de ver continuamente aumentados. A isto se limitam os seus princípios. Julgam, acusam e condenam quem quer que seja.

- Mas existe alguma lei que permita deportar homens só porque se reúnem para ler os Evangelhos?

- Não só a lei permite deportá-los, mas até condená-los a trabalhos forçados quando se prove que se atreveram a comentar os Evangelhos de maneira diferente daquela que está estabelecida, pois isso constitui uma crítica ao comentário oficial. Ora, o artigo cento e noventa e seis pune com desterro o ultraje à fé ortodoxa.

- Isso não é possível!

- Afirmo-lho. Digo a todo momento aos senhores magistrados – continuou o advogado – que não posso vê-los sem sentir um profundo sentimento de gratidão para com eles, pois, se eu não estou na prisão, nem o senhor, nem toda a gente, é à sua benevolência que o devemos. Quanto a privar qualquer pessoa dos seus direitos civis e a deportá-la para um lugar mais ou menos longínquo, não há nada mais fácil.

- Sendo assim, se tudo depende da disposição do procurador ou das pessoas suscetíveis de aplicar ou não a lei, para que servem os tribunais?

O advogado soltou uma gargalhada.
Leon Tolstoi, "Ressurreição"

A guerra mundial contra os fatos

Vladimir Putin é um tirano bonapartista, típico do século 19. Para ele, a prosperidade só vem com o alargamento dos domínios territoriais. Exibicionista, proclama que seus armamentos são maiores que os dos outros. Aboletado no Executivo, atropela o Legislativo, subjuga o Judiciário e banca o pai forte do povo, passando por cima das mediações da democracia.

Outra faceta do autocrata de Moscou é sua obsessão por idolatrar o passado. O futuro dos sonhos dele é a restauração de uma fantasiosa glória pretérita (a sua “grande Rússia” parece o decalque de um mapa mistificado do século 18). Na verdade, mais do que bonapartista, seu ideário tem marcas de fascismo bruto.


Já se disse que a ambição do presidente russo poderia ser sintetizada no bordão “make Russia great again”. A boutade procede. O sujeito tem ares de um Trump em cenários de KGB, um Trump sem freios nem contrapesos. Aliás, ele faz tudo o que Trump gostaria de fazer e não consegue. Para trazer a conversa um pouco mais aqui para o nosso lado, ele é tudo o que Jair Bolsonaro gostaria de ser e jamais conseguirá ser. O russo parece um destes vilões trilionários de filme de 007, enquanto o presidente brasileiro nunca passou de lobisomem chinfrim de comédia de Mazzaropi. Vai daí que, tolerado pela China, bajulado pela Venezuela e elogiado discretamente por Trump, Putin é secretamente invejado pelo inquilino do Palácio da Alvorada.

Em resumo, quando o assunto é Vladimir Putin, figuras que parecem não ter nada em comum, como Maduro e Bolsonaro, entram num balé sincronizado. Por que será? O que faz vibrar na mesma frequência o trumpismo dos terraplanistas e o confucionismo maoísta do Partido Comunista Chinês? Por que os autocratas de Caracas, que enchem a boca para falar em “guerra anti-imperialista”, ganham eco no Palácio do Planalto, cujos ocupantes discursam em nome de “Deus” e da “família”? Que eixo transcontinental é este, tortuoso e rijo, que alinha corpos terrestres tão díspares?

As respostas para tais perguntas costumam denunciar equívocos nas análises de uns e outros, como se o apoio ao tirano russo decorresse de um defeito da razão ou de equívocos involuntários. Essas respostas têm sentido, claro, mas talvez não sejam a melhor explicação. É mais provável que o eixo libidinal do putinismo não tenha nada que ver com a razão – nada que ver com Otan, com fertilizantes, com petróleo, agronegócio ou geopolítica –, mas com o desejo. Os fãs de Putin, por mais arestas que tenham entre si, cultivam o mesmo ódio apaixonado e selvagem contra o que a civilização nos legou de melhor: o pensamento crítico, a liberdade em feitio de fraternidade e o primado da verdade de fato, também conhecida como verdade factual.

Eis por que estes brucutus que não sabem a diferença entre Crimeia e cremalheira se excitam diante das atrocidades milimetricamente calculadas pelo artífice da invasão armada da Ucrânia, que já matou aproximadamente 500 civis e já provocou a fuga de 2 milhões de pessoas. Putin angaria os fãs que tem – amuados ou ruidosos – não apesar de assassinar inocentes, mas justamente por não ter hesitação em dizimar quem quer que seja. Seu poder de atração não vem de um cálculo estratégico frio, mas do arrojo tanático, do manejo inescrupuloso do terror, da ausência de princípios e da desumanidade.

Agora, o ditador deflagrou uma guerra mundial contra a verdade de fato e contra a imprensa. Na sexta-feira, 4 de março, a Duma (o Parlamento russo), manietada por ele, aprovou uma lei proibindo o uso de palavras como “guerra” ou “invasão” para descrever os ataques russos contra a Ucrânia. Conforme estabelece a nova legislação, a guerra deve ser chamada de “operação militar especial”. Twitter e Facebook foram bloqueados. Os sites da BBC, da Voz da América e da Rádio Free Europe, interditados. O acesso à Deutsche Welle foi limitado. Ameaçadas, agências internacionais suspenderam ou reduziram as atividades no país. A guerra mundial contra a verdade dos fatos faz vítimas no mundo todo.

No lugar dos fatos, entram em cena as mentiras oficiais. Segundo a semântica do Kremlin, a “operação militar especial” foi deflagrada para libertar o povo ucraniano do “neonazismo”, e ninguém pode falar contra. Desde o dia 24 de fevereiro, estima-se que mais de 13 mil pessoas foram presas em protestos contra a guerra. Somente no domingo, dia 6 de março, as autoridades prenderam 4,3 mil manifestantes em Moscou e outras cidades, segundo números da ONG OVD-INFO.

Putin sabe que seu triunfo, cada vez mais incerto, depende de um nível planetário de desinformação industrializada e profunda. Seus apoiadores, velados ou descarados, sabem que estão no mesmo barco: se a verdade factual prevalecer, estão perdidos. Passa por aí a identidade dos estranhos que o admiram e a ele juram “solidariedade”. São “solidários” no repúdio às liberdades e aos direitos, são “solidários” na indústria internacional das fake news. Não é por ignorância que aplaudem o novo senhor da guerra – é por ódio.

Europa tem que parar de financiar a guerra de Putin

O presidente americano, Joe Biden, decretou um embargo de importações de petróleo bruto da Rússia, a fim de dar "mais um pesado golpe" na bárbara guerra de Vladimir Putin na Ucrânia: "Podemos dar este passo, se outros não podem", comentou.


Assim o político democrata se referia à autoimposta armadilha de abastecimento que é a dependência exagerada das importações de petróleo e gás russos. Cega para todos os riscos, a União Europeia caiu nela, mas sobretudo a Alemanha, desde 1998: 55% do gás natural e mais de 40% do petróleo consumidos no país são importados da Rússia.

Por décadas a fio, o lobby alemão da energia repetiu a cantilena de que uma dependência energética em relação à Rússia não trazia perigo, por ser recíproca: supostamente, o gigantesco império precisava tanto dos ingressos em euro quanto a Alemanha dos combustíveis russos.

Além disso, o slogan "Mudança através do comércio" (Wandel durch Handel), insinuava ser esse também um modo de apoiar supostas iniciativas de reforma do regime Putin. Na prática, contudo, só se legitimou esse regime, para poder fazer bons negócios.

Sob os chanceleres federais Gerhard Schröder e Angela Merkel, a política alemã dançou cegamente ao som desse canto de sereia. Assim chamados "especialistas" do Oxford Energy Institute, ligado ao setor econômico, ou do Conselho Alemão de Relações Estrangeiras (DGAP), próximo ao governo, engrossaram o coro, assim como outros "think tanks".

As advertências partindo dos EUA já estavam desacreditadas por princípio, devido ao antiamericanismo latente dos alemães: alegava-se que elas só visavam incentivar a exportação de energia americana, em interesse próprio.

Quanto às advertências dos governos do Leste Europeu e de uns poucos pesquisadores independentes, estas foram rapidamente descartadas sob o rótulo "saudosistas da Guerra Fria".

E agora a Alemanha está presa justamente na armadilha da energia contra a qual vem sendo alertada há décadas. E mais uma vez os EUA têm que colocar a mão na massa.

Constituindo entre 30% e 40% do orçamento russo, a exportação de petróleo e gás é a principal fonte com que Putin financia essa pavorosa guerra. Em 2021, os conglomerados estatais de Moscou embolsaram cerca de 180 bilhões de dólares em exportações de petróleo.

A estes, a cada dia se juntam outros 500 milhões de dólares – no momento, ainda mais, com a alta dos preços do combustível. Por sua vez, o gás natural exportado rendeu ao país 62 bilhões de dólares em 2021, segundo o Banco Central da Rússia.

A guerra custa diariamente a Putin cerca de 1 bilhão de dólares. Porém as reservas de divisas do Banco Central russo estão atualmente congeladas; o país não pode mais pedir empréstimos no mercado internacional, seus títulos de dívida estão classificados no nível "lixo".

"Petróleo garante o dinheiro, gás garante o poder", ouve-se há muito nos meios russos da energia. Portanto, se a intenção é realmente prejudicar Putin e sua cleptocracia – e não só o povo russo –, vai ser preciso reduzir seus ingressos através de um embargo do petróleo. O presidente Biden já deu o primeiro passo, a UE deveria segui-lo logo, na cúpula informal de dois dias em Versalhes iniciada na quinta-feira.

Do ponto de vista técnico, seria bem fácil aguentar um embargo desses: a Rússia atende a menos do que 5% da demanda global; o mercado mundial de petróleo é bem integrado, navios petroleiros podem entregar suas cargas por todo o mundo.

A Rússia até poderia vender partilhas menores à China ou à Índia, mas só com descontos consideráveis. Além disso, muitas nações industriais dispõem de grandes reservas do combustível, parte das quais já foi liberada, devendo bastar para vários meses. E se conseguirá que diversos exportadores por todo o mundo aumentem seu volume de produção de petróleo.

O próximo passo, contudo, é a UE e Berlim suspenderem a importação de gás russo. Isso atinge Putin ainda mais, pois só é possível redirecionar esse insumo até certo ponto. Tanto a Academia de Ciências Leopoldina quanto pesquisadores conceituados da Alemanha consideram viável uma suspensão das importações, também para o país.

Eles aconselham que se recorra ao gás natural liquefeito dos mercados internacionais, no curto prazo, e a um aumento do carvão mineral para produção de eletricidade, como substitutos parciais provisórios.

Na calefação doméstica, onde a demanda de gás natural é especialmente elevada, uma redução de apenas dois graus centígrados já resultaria numa economia considerável, sem que ninguém precise congelar. É claro que os preços de petróleo e gás na Europa vão subir. Por isso, os cidadãos de renda mais baixa necessitarão de apoio estatal, e para as empresas cabe um alívio fiscal.

Na falta de vitórias militares, Putin agora vai bombardear a população civil das cidades ainda mais, e de maneira ainda mais cruel – como já fez na capital tchetchena Grozny e em Aleppo, na Síria. Mas se continuarmos a financiar isso com nossas importações, tornamo-nos cúmplices desse crime de guerra.

Só com um rechaço consequente das matérias-primas russas se fará cair o império fóssil de Putin e sua brutal cleptocracia. Democracias liberais são mais poderosas do que qualquer autocracia: isso é o que está em questão, nada menos. Devemos estar prontos a pagar qualquer preço.
Jörg Himmelreich, professor afiliado da École Supérieure de Commerce à Paris