quarta-feira, 28 de junho de 2017
Nevoeiro ou labirinto?
Somos obrigados a falar uma só língua por um motivo óbvio: se cada indivíduo inventasse seu código de comunicação, ressuscitaríamos Babel. Múltiplas línguas e éticas engendram o caos e, no limite, a violência. É — como advertiu FH, mais como observador do que como participante — algo gravíssimo.
Línguas e éticas delineiam limites. Num nível profundo, são elas que nos falam. Roland Barthes dizia que “a língua não é nem reacionária nem progressista; ela é pura e simplesmente fascista.” Ninguém se lembra de ter aprendido sua língua materna, mas todos recordam suas lições de francês, italiano ou mandarim.
Sem uma única língua não se pode exercer o sumo da democracia: discordar. E sem reclamação e debate honesto, vivemos o nevoeiro que resulta de um imenso labirinto legal. Esse marco do nosso sistema político.
Nesse plano há pontos capitais mas esquecidos. Eu posso ser contrário a um sistema político, mas devo ser honesto nos meus propósitos. Não posso ser um defensor dos pobres enriquecendo pelo compadrio com capitalistas; não posso ajudar a depor uma rainha sendo um rei suspeito dos mesmos delitos.
Se nos inspirarmos em Shakespeare, concordando que o mundo é um palco, diríamos que o texto dos dramas históricos é a moralidade ou a ética inspiradora do drama. Você só pode ser um personagem se tiver o propósito de sustentar (como mocinho, bufão, traidor ou bandido) a cena, levando-o ao seu arremate. Se, contudo, o seu objetivo era entrar na peça com a intenção de roubar a qualquer custo todas as cenas e, em seguida, destruir o palco e o teatro matando o autor da peça, então não há o que discutir.
Essa analogia ajuda a enxergar a gravíssima crise que hoje vivemos. O colapso tem como centro um sistema de papéis amparados por uma estrutura burocrática destinada a manter privilégios. Meu lado antropológico sugere que o nosso republicanismo a usa e se recusa a levar avante os seus valores. Saindo de uma monarquia patriarcal e escravocrata, transferimos aos cargos republicanos os conteúdos aristocráticos vigentes na monarquia. A República não foi pactuada, ela foi “proclamada”. Um dado óbvio da crise é nossa dificuldade de unidade, de um acordo mais profundo do que o ganhar ou perder no Parlamento. Não chegamos nem a discutir qual seria o mínimo denominador nacional. Seria o mérito? A amizade? O cargo legalmente embasado nas piruetas jurídicas?
Onde seria ancorada a nossa vida pública? Nas biografias que desmoralizam os cargos; ou nos cargos que desmoralizam seus atores? Nossas práticas sociais destroem qualquer racionalidade. A vantagem de uma língua comum é poder discordar. A de uma moralidade é o controle do jogo político que não pode mais continuar fundado nos oportunismos do vale-tudo. Teoricamente, o interesse político esbarra na lei. Mas e quando ele deseja ser a própria lei?
Qual seria a unidade de um povo (feito até anteontem de senhores e escravos; e de nobres e comuns) se até hoje alguns podem fazer o que bem entendem ignorando a igualdade? Todos são iguais, mas os inúmeros foros privilegiados transformam a igualdade em desigualdade.
O sistema legaliza, sem legitimar, um sistema de cargos obtidos numa competição eleitoral na qual — eis a imoralidade — os vencedores traem abusivamente seus projetos e promessas. O resultado é uma nomenclatura investida de desigualdades jurídicas, a qual não é mais aceita pela sociedade consciente que é ela quem paga o preço da pirâmide. A racionalidade do mercado inundou a sociedade e não se pode mais disfarçar o quanto se paga pela ética do compadrio, que impede passar a limpo os conflitos motivados pela aliança entre poder e dinheiro.
E o pior é descobrir que, mesmo quando descobrimos que as mais altas autoridades da cidade, do estado e do país se transformaram em assaltantes das instituições que deveriam governar, não chegamos ao fundo do poço.
Impermeáveis aos requisitos racionais do diabolizado capitalismo cuja ética engendrou e estimulou o direito à diferença, à discórdia, à oposição, à competição e ao mérito, confundimos muitos direitos com legitimidade, muitas polícias com o controle do crime e inúmeros tribunais com acesso igualitário à Justiça. O resultado não antecipado de tantos controles é uma contaminação patológica, na qual se salvam todos os interesses, menos o do povo brasileiro.Roberto DaMatta
Línguas e éticas delineiam limites. Num nível profundo, são elas que nos falam. Roland Barthes dizia que “a língua não é nem reacionária nem progressista; ela é pura e simplesmente fascista.” Ninguém se lembra de ter aprendido sua língua materna, mas todos recordam suas lições de francês, italiano ou mandarim.
Sem uma única língua não se pode exercer o sumo da democracia: discordar. E sem reclamação e debate honesto, vivemos o nevoeiro que resulta de um imenso labirinto legal. Esse marco do nosso sistema político.
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Nesse plano há pontos capitais mas esquecidos. Eu posso ser contrário a um sistema político, mas devo ser honesto nos meus propósitos. Não posso ser um defensor dos pobres enriquecendo pelo compadrio com capitalistas; não posso ajudar a depor uma rainha sendo um rei suspeito dos mesmos delitos.
Se nos inspirarmos em Shakespeare, concordando que o mundo é um palco, diríamos que o texto dos dramas históricos é a moralidade ou a ética inspiradora do drama. Você só pode ser um personagem se tiver o propósito de sustentar (como mocinho, bufão, traidor ou bandido) a cena, levando-o ao seu arremate. Se, contudo, o seu objetivo era entrar na peça com a intenção de roubar a qualquer custo todas as cenas e, em seguida, destruir o palco e o teatro matando o autor da peça, então não há o que discutir.
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Qual seria a unidade de um povo (feito até anteontem de senhores e escravos; e de nobres e comuns) se até hoje alguns podem fazer o que bem entendem ignorando a igualdade? Todos são iguais, mas os inúmeros foros privilegiados transformam a igualdade em desigualdade.
O sistema legaliza, sem legitimar, um sistema de cargos obtidos numa competição eleitoral na qual — eis a imoralidade — os vencedores traem abusivamente seus projetos e promessas. O resultado é uma nomenclatura investida de desigualdades jurídicas, a qual não é mais aceita pela sociedade consciente que é ela quem paga o preço da pirâmide. A racionalidade do mercado inundou a sociedade e não se pode mais disfarçar o quanto se paga pela ética do compadrio, que impede passar a limpo os conflitos motivados pela aliança entre poder e dinheiro.
E o pior é descobrir que, mesmo quando descobrimos que as mais altas autoridades da cidade, do estado e do país se transformaram em assaltantes das instituições que deveriam governar, não chegamos ao fundo do poço.
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Um vice para Temer
Há semelhanças e dessemelhanças relevantes entre os processos de impeachment que depuseram os ex-presidentes Fernando Collor de Mello, em 1992, e Dilma Rousseff, em 2016, e a situação do desgoverno de Michel Temer. Este, mesmo parecendo moribundo ou zumbi, não inspira profecias de igual desfecho, ao menos por enquanto. Sem conhecê-las, entendê-las e enfrentá-las, por mais absurda que pareça a hipótese, resta esperar pela improvável demonstração de espírito público do chefe do Executivo, a renúncia, imitando, não Getúlio Vargas no suicídio, mas Jânio Quadros no abandono voluntário do melhor emprego da República.
Diferença fundamental nos dois exemplos anteriores é que tanto para Collor quanto para Dilma havia um substituto automático, um vice, a possibilidade de se agrupar em torno de um nome. Esta talvez seja, na atual conjuntura, a principal diferença do caso de agora em relação a ambos os anteriores. Com Temer já no exercício do poder presidencial, o Supremo Tribunal Federal (STF) chegou a decidir a dúvida específica de o então presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL), poder, ou não, participar de uma fictícia “linha sucessória” do presidente pelo fato de responder a processos judiciais. A decisão final foi esdrúxula, como muitas outras adotadas recentemente pelo órgão supremo do Poder Judiciário: Renan foi autorizado a permanecer no comando da chamada Câmara Alta, que não tem dado demonstrações de muita altitude ultimamente. Mas foi retirado da chamada, mas inexistente, linha de sucessão na chefia do Executivo.
De fato, no presidencialismo mitigado, dito semiparlamentarista ou “de coalizão”, vigente conforme as normas da Constituição de 1988, só há um sucessor autorizado a assumir automaticamente a Presidência em estado de vacância: o vice-presidente. Já o era na democracia de 1946, quando Café Filho substituiu Vargas após o suicídio e João Goulart assumiu, depois de longa negociação, o posto abandonado por Jânio.
Com exceção do Partido dos Trabalhadores (PT), que então era, ou pretendia ser, infenso a pactos de governabilidade, houve, de fato, substituição consensual de Collor – deposto por impeachment de indiscutível legitimidade – pelo vice, Itamar Franco. O próprio PT, sob a batuta de Luiz Inácio Lula da Silva, que antes havia rejeitado votar em Tancredo Neves, do PMDB, para substituir o último general da ditadura, João Batista Figueiredo, apoiou a deposição no Congresso. Mas desautorizou sua militante Luiza Erundina de Souza, ex-prefeita de São Paulo, a assumir um ministério, a Secretaria de Administração, no mandato-tampão do ex-governador de Minas, forçando-a a sair do partido.
Não se pode dizer o mesmo do impeachment de Dilma, até hoje contestado como se tivesse resultado de uma intervenção fora dos parâmetros constitucionais para extinção do mandato. Onde lhe é autorizado protestar, como agora na visita de Michel Temer à Rússia e à Noruega e em shows de artistas populares de esquerda, este é xingado de “golpista” e ouve berros de “fora Temer”.
Esse comportamento inconsolável da militância esquerdista, expelida com Dilma das boquinhas do poder, chama a atenção para outra dessemelhança dos casos de Itamar e Temer. O mineiro nascido em mar baiano sempre se manteve longe do carcará sanguinolento, sendo, na prática, um desafeto do titular da chapa pela qual se elegeu e mercê da qual chegou ao poder maior depois do impeachment. Após assumir a chefia do Executivo, o ex-vice comportou-se de forma exemplar, nunca tendo herdado nenhuma suspeita de participação no esquema de corrupção operado pelo notório PC Farias. Afinal, ele fora, seja na campanha, seja na administração, um corpo completamente estranho à famigerada “república de Alagoas”, de tristíssima memória, marca registrada do desmantelo Collor.
Com essa autoridade moral, que reforçou ao afastar seu homem de confiança, Henrique Hargreaves, da chefia da Casa Civil, à qual este só voltaria após provar inocência, Itamar montou o time que fez o Plano Real, acabou com a inflação e apostou no futuro, criando a alternativa Fernando Henrique. Desta o PSDB se aproveitou para vencer Lula e o PT em duas eleições consecutivas e sem precisar de segundo turno.
Ao ler o relato acima, o leitor de posse das faculdades mentais, imparcial, impoluto e munido do mínimo de lógica perceberá que Temer é inteiramente diferente. Primeiramente, ele antes pertencia à quadrilha que assaltou os cofres republicanos nos 13 anos, 4 meses e 12 dias de desmazelo sob Lula e Dilma, chegando até a funcionar provisoriamente como coordenador político da cabeça da chapa que se reelegeu. Por causa disso lhe coube o desgaste do processo contra a chapa vitoriosa em 2014 no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), que, aliás, o favoreceu num julgamento que só desmoralizou a já desmoralizada Justiça Eleitoral de antanho.
Portanto, o oxigênio que mantém o governo Temer respirando por aparelhos é não haver vice disponível para evitar a necessidade da solução constitucional da eleição indireta no Congresso, que é quase tão impopular quanto o ex-vice beneficiado. E aterroriza o tal do mercado, que acredita que se ele sair do governo, apesar de todas as evidências de seus passeios pelo Código Penal, será substituído por alguém capaz de jogar as conquistas econômicas no lixo, num ambiente infecto em que todos os Poderes da República padecem de absoluta falta de crédito.
Até agora Temer tem mantido seus parceiros de rapina no Executivo e seus sócios no Legislativo asseguram o terço de votos necessário para mantê-lo no poder, ao arrepio da lei criminal. Conta ainda com parte do Judiciário que se dispõe a interpretar a lei de acordo com as conveniências dos amigos, comprovando que cabeça de juiz pode surpreender tanto quanto bumbum de bebê.
Diferença fundamental nos dois exemplos anteriores é que tanto para Collor quanto para Dilma havia um substituto automático, um vice, a possibilidade de se agrupar em torno de um nome. Esta talvez seja, na atual conjuntura, a principal diferença do caso de agora em relação a ambos os anteriores. Com Temer já no exercício do poder presidencial, o Supremo Tribunal Federal (STF) chegou a decidir a dúvida específica de o então presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL), poder, ou não, participar de uma fictícia “linha sucessória” do presidente pelo fato de responder a processos judiciais. A decisão final foi esdrúxula, como muitas outras adotadas recentemente pelo órgão supremo do Poder Judiciário: Renan foi autorizado a permanecer no comando da chamada Câmara Alta, que não tem dado demonstrações de muita altitude ultimamente. Mas foi retirado da chamada, mas inexistente, linha de sucessão na chefia do Executivo.
De fato, no presidencialismo mitigado, dito semiparlamentarista ou “de coalizão”, vigente conforme as normas da Constituição de 1988, só há um sucessor autorizado a assumir automaticamente a Presidência em estado de vacância: o vice-presidente. Já o era na democracia de 1946, quando Café Filho substituiu Vargas após o suicídio e João Goulart assumiu, depois de longa negociação, o posto abandonado por Jânio.
Com exceção do Partido dos Trabalhadores (PT), que então era, ou pretendia ser, infenso a pactos de governabilidade, houve, de fato, substituição consensual de Collor – deposto por impeachment de indiscutível legitimidade – pelo vice, Itamar Franco. O próprio PT, sob a batuta de Luiz Inácio Lula da Silva, que antes havia rejeitado votar em Tancredo Neves, do PMDB, para substituir o último general da ditadura, João Batista Figueiredo, apoiou a deposição no Congresso. Mas desautorizou sua militante Luiza Erundina de Souza, ex-prefeita de São Paulo, a assumir um ministério, a Secretaria de Administração, no mandato-tampão do ex-governador de Minas, forçando-a a sair do partido.
Não se pode dizer o mesmo do impeachment de Dilma, até hoje contestado como se tivesse resultado de uma intervenção fora dos parâmetros constitucionais para extinção do mandato. Onde lhe é autorizado protestar, como agora na visita de Michel Temer à Rússia e à Noruega e em shows de artistas populares de esquerda, este é xingado de “golpista” e ouve berros de “fora Temer”.
Esse comportamento inconsolável da militância esquerdista, expelida com Dilma das boquinhas do poder, chama a atenção para outra dessemelhança dos casos de Itamar e Temer. O mineiro nascido em mar baiano sempre se manteve longe do carcará sanguinolento, sendo, na prática, um desafeto do titular da chapa pela qual se elegeu e mercê da qual chegou ao poder maior depois do impeachment. Após assumir a chefia do Executivo, o ex-vice comportou-se de forma exemplar, nunca tendo herdado nenhuma suspeita de participação no esquema de corrupção operado pelo notório PC Farias. Afinal, ele fora, seja na campanha, seja na administração, um corpo completamente estranho à famigerada “república de Alagoas”, de tristíssima memória, marca registrada do desmantelo Collor.
Com essa autoridade moral, que reforçou ao afastar seu homem de confiança, Henrique Hargreaves, da chefia da Casa Civil, à qual este só voltaria após provar inocência, Itamar montou o time que fez o Plano Real, acabou com a inflação e apostou no futuro, criando a alternativa Fernando Henrique. Desta o PSDB se aproveitou para vencer Lula e o PT em duas eleições consecutivas e sem precisar de segundo turno.
Ao ler o relato acima, o leitor de posse das faculdades mentais, imparcial, impoluto e munido do mínimo de lógica perceberá que Temer é inteiramente diferente. Primeiramente, ele antes pertencia à quadrilha que assaltou os cofres republicanos nos 13 anos, 4 meses e 12 dias de desmazelo sob Lula e Dilma, chegando até a funcionar provisoriamente como coordenador político da cabeça da chapa que se reelegeu. Por causa disso lhe coube o desgaste do processo contra a chapa vitoriosa em 2014 no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), que, aliás, o favoreceu num julgamento que só desmoralizou a já desmoralizada Justiça Eleitoral de antanho.
Portanto, o oxigênio que mantém o governo Temer respirando por aparelhos é não haver vice disponível para evitar a necessidade da solução constitucional da eleição indireta no Congresso, que é quase tão impopular quanto o ex-vice beneficiado. E aterroriza o tal do mercado, que acredita que se ele sair do governo, apesar de todas as evidências de seus passeios pelo Código Penal, será substituído por alguém capaz de jogar as conquistas econômicas no lixo, num ambiente infecto em que todos os Poderes da República padecem de absoluta falta de crédito.
Até agora Temer tem mantido seus parceiros de rapina no Executivo e seus sócios no Legislativo asseguram o terço de votos necessário para mantê-lo no poder, ao arrepio da lei criminal. Conta ainda com parte do Judiciário que se dispõe a interpretar a lei de acordo com as conveniências dos amigos, comprovando que cabeça de juiz pode surpreender tanto quanto bumbum de bebê.
Temer ataca Janot e se esquece do autoexame
No pronunciamento sobre a denúncia que o acusa de corrupção passiva, Michel Temer revelou-se capaz de quase tudo, menos de fornecer explicações que eliminem as suspeitas que consomem a sua Presidência. Temer chamou a denúncia de “ficção”. Disse que ela se baseia em ilações, não em provas. E insinuou que o procurador-geral da República, Rodrigo Janot, recebeu dinheiro. Muito ataque. Nenhuma defesa.
Temer discutiu sua fala com o marqueteiro Elsinho Mouco. Valeu-se de uma velha regra da propaganda política: identificar claramente o inimigo. O demônio de Temer agora é Rodrigo Janot. Atacando o procurador-geral, Temer imagina que fica liberado de todo o exame do mal —principalmente o mais difícil, que é o autoexame.
Temer citou o caso de um procurador que trabalhava com Janot e se bandeou para um escritório que negocia delações. Insinuou que os milhões recebidos pelo desertor foram divididos com Janot.
Esse enredo só tem um problema: ainda que Janot fosse o Tinhoso, há na cena do crime fatos incômodos à espera de explicação: Temer recebeu um corruptor no Jaburu, indicou ao visitante um interlocutor e, dias depois, esse preposto do presidente foi filmado atracado à propina de R$ 500 mil, numa mala. Sobre isso, Temer não disse nenhuma palavra.
Temer discutiu sua fala com o marqueteiro Elsinho Mouco. Valeu-se de uma velha regra da propaganda política: identificar claramente o inimigo. O demônio de Temer agora é Rodrigo Janot. Atacando o procurador-geral, Temer imagina que fica liberado de todo o exame do mal —principalmente o mais difícil, que é o autoexame.
Temer citou o caso de um procurador que trabalhava com Janot e se bandeou para um escritório que negocia delações. Insinuou que os milhões recebidos pelo desertor foram divididos com Janot.
Esse enredo só tem um problema: ainda que Janot fosse o Tinhoso, há na cena do crime fatos incômodos à espera de explicação: Temer recebeu um corruptor no Jaburu, indicou ao visitante um interlocutor e, dias depois, esse preposto do presidente foi filmado atracado à propina de R$ 500 mil, numa mala. Sobre isso, Temer não disse nenhuma palavra.
O conflito político será longo e arrastado
Quando Dilma Rousseff teve seu mandato cassado, não houve resistência. No plano do Legislativo, a presidente, isolada pela ação do PMDB, perdera apoio; sequer míseros 172 votos Dilma e o PT foram capazes de garantir — o que não deixa de ser um fenômeno, diante do poder que a caneta do Poder Executivo possui no Brasil. No plano social, nem a mítica militância petista nem o tal ''exército do Stédile'' deram as caras. Foi surpreendentemente fácil: o governo caiu como a cabana de palha do porquinho Cícero, bastou um assopro.
Com Michel Temer, o processo não será tão simples, sem enfrentamento. Dadas as condições gerais da política nacional, o avanço da Operação Lava Jato e as perspectivas de punição, para Temer e seu grupo, permanecer no poder é muito mais vital do que foi para Dilma. A denúncia do Procurador-Geral da República contra o presidente iniciará, portanto, uma nova e mais complexa fase da crise: o ambiente político vai piorar, o ruído, a dissonância e a pressão subirão vários graus.
Evidente que Michel Temer poderá contar com grupos sociais nas ruas, em sua proteção; a popularidade presidencial rasteja e não será por aí que se defenderá — ainda que se valha do silêncio obsequioso de grupos antes radicalizados contra a política nacional. Será na Câmara dos Deputados que os operadores do presidente se pintarão para a guerra e mostrarão sua força, resistindo e atacando; negando ao limite os pedidos de Rodrigo Janot, blindando ao presidente para protegerem-se a si próprios.
O atual governo não se inibirá em mobilizar todos os recursos de Estado de que dispõe: a discricionariedade do ministério da Justiça, as prerrogativas presidenciais na escolha do novo Procurador-Geral da República, os instrumentos da Abin, as conexões com setores e personagens do Judiciário; e, claro — pela força de recursos ministeriais e pelo pavor com a Lava Jato —, o poder de cooptação capaz de movimentar a infantaria parlamentar.
Por outro lado, também o Ministério Público, importantes veículos de comunicação e setores não comprometidos da oposição (Rede e PSOL) não recolherão armas. Dificilmente, cederão à pressões, bravatas e aos encantos do Executivo. Novos escândalos, o aprofundamento dos já existentes, a intransigente obstrução de sessões na Câmara e o chamamento à participação popular, tudo isto estará na ordem do dia. A batalha será diária, longa e cansativa. E, quanto mais acirrada, tanto mais sangrenta.
Rodrigo Janot, já se disse aqui, é um enxadrista competente: tem em mente as reações a este lance e projeta as próximas peças que deslocará em seu tabuleiro. Por prever as jogadas do adversário, a denúncia virá em parcelas; apresentá-la em três etapas, forçará a Câmara a exaurir-se em desgastes múltiplos, induzida ao constrangimento repetitivo e renovado, marcada na lembrança do eleitor na postura, no posicionamento e no voto de cada parlamentar. Janot planeja acuar o adversário, colocando-o ao xeque — mesmo que não seja ''mate''.
Em paralelo, o combustível que ainda virá de Curitiba: a nova série de delações premiadas que está sendo preparada — Antônio Palocci, Lúcio Funaro e, por inércia, Eduardo Cunha. Sem contar, é evidente, com o desespero de Rodrigo Rocha Loures, quando levado for à Papuda. O ministério Público parece ter em mãos um arsenal bastante superior ao exército já combalido do presidente, que antes de tudo, joga com o tempo, esperando setembro chegar, na esperança de remover o adversário da PGR.
Junto disto, virão as tais ondas de comunicação: a divulgação do conflito, a difusão dos escândalos, a aflição com o futuro moldando a opinião pública e vergando aliados flexíveis como o PSDB, por exemplo. Manifestações como a de Fernando Henrique Cardoso, isolando Temer de setores empresariais — cada vez menos iludidos com as possibilidades de reforma com este governo —, recomendando ao presidente que peça para sair, tendem a se repetir.
Há, no entanto, pouquíssimo espaço para saídas negociadas, acordos de conciliação. O humor popular e as instituições que se empoderaram com o impeachment não assimilariam indulgências que o sistema político pudesse aceitar de bom grado, como uma saída pelos fundos, mesmo que desonrosa. Tampouco não há liderança política capaz de persuadir a opinião pública nesse sentido.
Nada disto, no entanto, indica que Michel Temer, ao fim e ao cabo, cairá de seu cargo antes de 31 de dezembro de 2018. O impasse que se prolonga no tempo e que arrasta a disputa é sempre uma opção para o jogador. Esperar a cavalaria, sabe-se lá de onde, resume o vício da esperança de qualquer moribundo. Diante das restrições que se impõem, o ''gesto de grandeza'', como apelou FHC, é pouco provável. De modo geral, em política, isto só existe como rara exceção.
Carlos Melo
Com Michel Temer, o processo não será tão simples, sem enfrentamento. Dadas as condições gerais da política nacional, o avanço da Operação Lava Jato e as perspectivas de punição, para Temer e seu grupo, permanecer no poder é muito mais vital do que foi para Dilma. A denúncia do Procurador-Geral da República contra o presidente iniciará, portanto, uma nova e mais complexa fase da crise: o ambiente político vai piorar, o ruído, a dissonância e a pressão subirão vários graus.
Evidente que Michel Temer poderá contar com grupos sociais nas ruas, em sua proteção; a popularidade presidencial rasteja e não será por aí que se defenderá — ainda que se valha do silêncio obsequioso de grupos antes radicalizados contra a política nacional. Será na Câmara dos Deputados que os operadores do presidente se pintarão para a guerra e mostrarão sua força, resistindo e atacando; negando ao limite os pedidos de Rodrigo Janot, blindando ao presidente para protegerem-se a si próprios.
Por outro lado, também o Ministério Público, importantes veículos de comunicação e setores não comprometidos da oposição (Rede e PSOL) não recolherão armas. Dificilmente, cederão à pressões, bravatas e aos encantos do Executivo. Novos escândalos, o aprofundamento dos já existentes, a intransigente obstrução de sessões na Câmara e o chamamento à participação popular, tudo isto estará na ordem do dia. A batalha será diária, longa e cansativa. E, quanto mais acirrada, tanto mais sangrenta.
Rodrigo Janot, já se disse aqui, é um enxadrista competente: tem em mente as reações a este lance e projeta as próximas peças que deslocará em seu tabuleiro. Por prever as jogadas do adversário, a denúncia virá em parcelas; apresentá-la em três etapas, forçará a Câmara a exaurir-se em desgastes múltiplos, induzida ao constrangimento repetitivo e renovado, marcada na lembrança do eleitor na postura, no posicionamento e no voto de cada parlamentar. Janot planeja acuar o adversário, colocando-o ao xeque — mesmo que não seja ''mate''.
Em paralelo, o combustível que ainda virá de Curitiba: a nova série de delações premiadas que está sendo preparada — Antônio Palocci, Lúcio Funaro e, por inércia, Eduardo Cunha. Sem contar, é evidente, com o desespero de Rodrigo Rocha Loures, quando levado for à Papuda. O ministério Público parece ter em mãos um arsenal bastante superior ao exército já combalido do presidente, que antes de tudo, joga com o tempo, esperando setembro chegar, na esperança de remover o adversário da PGR.
Junto disto, virão as tais ondas de comunicação: a divulgação do conflito, a difusão dos escândalos, a aflição com o futuro moldando a opinião pública e vergando aliados flexíveis como o PSDB, por exemplo. Manifestações como a de Fernando Henrique Cardoso, isolando Temer de setores empresariais — cada vez menos iludidos com as possibilidades de reforma com este governo —, recomendando ao presidente que peça para sair, tendem a se repetir.
Há, no entanto, pouquíssimo espaço para saídas negociadas, acordos de conciliação. O humor popular e as instituições que se empoderaram com o impeachment não assimilariam indulgências que o sistema político pudesse aceitar de bom grado, como uma saída pelos fundos, mesmo que desonrosa. Tampouco não há liderança política capaz de persuadir a opinião pública nesse sentido.
Nada disto, no entanto, indica que Michel Temer, ao fim e ao cabo, cairá de seu cargo antes de 31 de dezembro de 2018. O impasse que se prolonga no tempo e que arrasta a disputa é sempre uma opção para o jogador. Esperar a cavalaria, sabe-se lá de onde, resume o vício da esperança de qualquer moribundo. Diante das restrições que se impõem, o ''gesto de grandeza'', como apelou FHC, é pouco provável. De modo geral, em política, isto só existe como rara exceção.
Carlos Melo
Os brasileiros já não votarão no 'melhor corrupto'
Há uma pergunta que os institutos de pesquisa deveriam fazer neste momento ao eleitor brasileiro: o que ele exige, acima de tudo, de um candidato à Presidência da República? Seria revelador sobre o estágio da crise política vivida pelo país. Em minha coluna anterior, comentei a pergunta que Joaquim Barbosa, possível candidato a presidente, havia feito a um grupo de artistas que o incentivava a disputar as eleições: “Será que o Brasil está preparado para ter um presidente negro?” Entre os quase 300 comentários dos leitores sobre o artigo, ficou clara a minha teoria de que os brasileiros, apesar de todas as críticas que são feitas a eles, dentro e fora do país, de continuarem sendo racistas e com fortes preconceitos contra os negros, elegeriam um negro, sim, e inclusive um gay, do mesmo jeito que já elegeram um operário sem estudos (Lula) e uma mulher (Dilma).
Não encontrei um único comentário de alguém afirmando que nunca votaria em um negro. Até mesmo os que disseram que Barbosa não seria seu candidato enfatizaram que decidiram isso não por ele ser negro, e sim porque não o consideram preparado para o cargo. Junto com a confirmação da grande maioria de que não teria problema em votar “pela cor da pele”, foi também quase unânime a revelação sobre a primeira qualidade que exigiriam hoje de um candidato à Presidência: a honestidade. Não ser corrupto. “O Brasil precisa de um(a) presidente honesto e competente para tirá-lo do atoleiro. Pode ser negro, branco, amarelo, homem, mulher, gay, etc”, escreve Max de Freitas. “Negro ou branco? O que precisamos, urgentemente, é de gente honesta e séria” (Pedro Batista). E houve quem reagisse com ironia: “Contanto que seja competente e não corrupto, pode ser até um alienígena que tudo bem” (Leandra Oliveira).
O fato de que, segundo os leitores, o que realmente importa neste momento é a escolha de um presidente honrado é uma constante em quase todo os comentários. “A questão não é ser negro; é não ser corrupto” (Adriano Morais). Analisando essas frases, um amigo me dizia que parece claro, nas próximas eleições, que será difícil para o candidato eleito se seu nome aparecer manchado, de alguma maneira, por acusações de corrupção. Mas também é significativo, pelo menos nas centenas de comentários da minha coluna, que nenhuma pessoa tenha escrito que não votará em um político. O que não querem é alguém, político ou não, acusado de corrupção – e muito menos condenado. Assim, a primeira e praticamente única condição que os brasileiros exigem hoje de um futuro presidente é que seja, simplesmente, “honrado”. Tratando-se de leitores inteligentes e interessados em política, não da massa sem estudos, já que leem jornais, é muito significativa essa insistência em desejar um candidato sobretudo honesto, que não roube o dinheiro público.
Em outro momento histórico, os brasileiros nem teriam nomeado essa qualidade de honradez como condição para ser presidente do país. Teriam prestado mais atenção na importância de seus programas, em suas aptidões de líder, agregador e pacificador, assim como em sua capacidade de saber dialogar com as outras forças políticas. Teriam destacado seu projeto para criar um novo Brasil com menos desigualdades sociais, maiores oportunidades para todos, capaz de inspirar novas esperanças. Digo que não teriam destacado com tal força o tema da honradez pessoal e de não ser um corrupto pelo fato de que isso, num momento normal, é algo implícito, que se dá naturalmente, já que ninguém pensaria em votar num corrupto para presidente. Um presidente, além de ser honrado, deve no entanto estar preparado para o cargo e saber demonstrar isso com o seu currículo. É, portanto, significativo e digno de reflexão essa ênfase dos eleitores sobre a necessidade de eleger um “não corrupto”. Algo que os partidos deverão ter em conta ao escolherem seus candidatos. Que não se enganem mantendo a crença de que, como no passado, os brasileiros acabarão votando ou vendendo seu voto para o “melhor corrupto”. As coisas estão mudando.
Como revela uma recente pesquisa do Ibope, as próximas eleições presidenciais, pela primeira vez na história do Brasil, serão resolvidas mais nas redes sociais do que nos jornais, TVs e outros meios de comunicação. De fato, 56% dos eleitores afirmam que serão influenciados de algum modo pelas redes sociais e 36% dizem que serão essas redes que praticamente decidirão seu voto. E se há uma unanimidade incontestável no Brasil é a rejeição nas redes sociais, sem distinção de cores políticas, aos candidatos “que cheiram a corrupção”.
Não encontrei um único comentário de alguém afirmando que nunca votaria em um negro. Até mesmo os que disseram que Barbosa não seria seu candidato enfatizaram que decidiram isso não por ele ser negro, e sim porque não o consideram preparado para o cargo. Junto com a confirmação da grande maioria de que não teria problema em votar “pela cor da pele”, foi também quase unânime a revelação sobre a primeira qualidade que exigiriam hoje de um candidato à Presidência: a honestidade. Não ser corrupto. “O Brasil precisa de um(a) presidente honesto e competente para tirá-lo do atoleiro. Pode ser negro, branco, amarelo, homem, mulher, gay, etc”, escreve Max de Freitas. “Negro ou branco? O que precisamos, urgentemente, é de gente honesta e séria” (Pedro Batista). E houve quem reagisse com ironia: “Contanto que seja competente e não corrupto, pode ser até um alienígena que tudo bem” (Leandra Oliveira).
O fato de que, segundo os leitores, o que realmente importa neste momento é a escolha de um presidente honrado é uma constante em quase todo os comentários. “A questão não é ser negro; é não ser corrupto” (Adriano Morais). Analisando essas frases, um amigo me dizia que parece claro, nas próximas eleições, que será difícil para o candidato eleito se seu nome aparecer manchado, de alguma maneira, por acusações de corrupção. Mas também é significativo, pelo menos nas centenas de comentários da minha coluna, que nenhuma pessoa tenha escrito que não votará em um político. O que não querem é alguém, político ou não, acusado de corrupção – e muito menos condenado. Assim, a primeira e praticamente única condição que os brasileiros exigem hoje de um futuro presidente é que seja, simplesmente, “honrado”. Tratando-se de leitores inteligentes e interessados em política, não da massa sem estudos, já que leem jornais, é muito significativa essa insistência em desejar um candidato sobretudo honesto, que não roube o dinheiro público.
Em outro momento histórico, os brasileiros nem teriam nomeado essa qualidade de honradez como condição para ser presidente do país. Teriam prestado mais atenção na importância de seus programas, em suas aptidões de líder, agregador e pacificador, assim como em sua capacidade de saber dialogar com as outras forças políticas. Teriam destacado seu projeto para criar um novo Brasil com menos desigualdades sociais, maiores oportunidades para todos, capaz de inspirar novas esperanças. Digo que não teriam destacado com tal força o tema da honradez pessoal e de não ser um corrupto pelo fato de que isso, num momento normal, é algo implícito, que se dá naturalmente, já que ninguém pensaria em votar num corrupto para presidente. Um presidente, além de ser honrado, deve no entanto estar preparado para o cargo e saber demonstrar isso com o seu currículo. É, portanto, significativo e digno de reflexão essa ênfase dos eleitores sobre a necessidade de eleger um “não corrupto”. Algo que os partidos deverão ter em conta ao escolherem seus candidatos. Que não se enganem mantendo a crença de que, como no passado, os brasileiros acabarão votando ou vendendo seu voto para o “melhor corrupto”. As coisas estão mudando.
Como revela uma recente pesquisa do Ibope, as próximas eleições presidenciais, pela primeira vez na história do Brasil, serão resolvidas mais nas redes sociais do que nos jornais, TVs e outros meios de comunicação. De fato, 56% dos eleitores afirmam que serão influenciados de algum modo pelas redes sociais e 36% dizem que serão essas redes que praticamente decidirão seu voto. E se há uma unanimidade incontestável no Brasil é a rejeição nas redes sociais, sem distinção de cores políticas, aos candidatos “que cheiram a corrupção”.
Às favas, a biografia
Se não me falha a memória do Google, só dois presidentes deixaram o cargo por vontade própria em pouco mais de meio século: Getúlio Vargas, em 1954, por suicídio, e Jânio Quadros, em 1961, por renúncia. Dos quatro que não puderam terminar o mandato, um, João Goulart, foi deposto por golpe militar; Tancredo Neves, por ter morrido antes de tomar posse, e os outros dois, retirados por impeachment: Fernando Collor e Dilma Rousseff. Pelo que afirmou — “nada nos destruirá” — Temer está disposto a cantar “daqui não saio, daqui ninguém me tira”. Ele conhece a Câmara que tem e confia nela.
Mas por que tanto apego e tanta insistência em ficar, se moralmente o seu governo acabou? Será porque, como se diz, o poder é afrodisíaco? Não haverá outra motivação que não passe, digamos, pela libido? Também se diz que o poder corrompe, mas falar em corrupção soa como gafe no momento em que, pela primeira vez na História do país, um presidente da República é denunciado por tê-la praticado — e como! Corrupto, não como xingamento irresponsável de um opositor, mas como acusação oficial de outro poder da República, a Procuradoria-Geral. E tendo ainda que pagar uma indenização de R$ 10 milhões.
O mistério continua. Acusado pelo Ministério Público, investigado pela Polícia Federal, rejeitado pela opinião pública, perseguido por gritos de “Fora Temer” até na Noruega, qual é a graça de chefiar uma nação sem poder sair à rua, ir ao teatro ou a um jogo de futebol para não ser vaiado, pois de cem pessoas, só sete (os 7% da pesquisa Datafolha) apoiam seu governo? Nem Dilma (10%) foi alvo de tanta recusa. A comparação mais humilhante, porém, é com Itamar Franco, um vice que também chegou à Presidência depois de um impeachment, mas que saiu com 40% de aprovação.
Não se tem certeza do que vai acontecer. Há possibilidade de recurso, manobras, filigranas jurídicas em favor do acusado. Mas uma coisa pelo menos é certa. O destino ofereceu a Temer a oportunidade de entrar para a História com um gesto de grandeza: retirar-se antes de ser escorraçado. Ao recusar essa chance, porém, ele está mandando às favas sua biografia política. Será lembrado não por algumas boas intenções reformistas, mas pelos malfeitos, cujo símbolo é aquela imagem inesquecível: um ex-assessor, homem de sua confiança, correndo e carregando numa mala R$ 500 mil que, segundo o procurador Rodrigo Janot, seriam de propina do corruptor Joesley Batista para o próprio Temer.
É outro episódio inédito. Acho que ninguém em tempo algum presenciou uma cena como essa na nossa História. O que leva um ambicioso homem público a jogar no lixo desse jeito sua carreira? Chamem um psicanalista com urgência.
Zuenir Ventura
O mistério continua. Acusado pelo Ministério Público, investigado pela Polícia Federal, rejeitado pela opinião pública, perseguido por gritos de “Fora Temer” até na Noruega, qual é a graça de chefiar uma nação sem poder sair à rua, ir ao teatro ou a um jogo de futebol para não ser vaiado, pois de cem pessoas, só sete (os 7% da pesquisa Datafolha) apoiam seu governo? Nem Dilma (10%) foi alvo de tanta recusa. A comparação mais humilhante, porém, é com Itamar Franco, um vice que também chegou à Presidência depois de um impeachment, mas que saiu com 40% de aprovação.
Não se tem certeza do que vai acontecer. Há possibilidade de recurso, manobras, filigranas jurídicas em favor do acusado. Mas uma coisa pelo menos é certa. O destino ofereceu a Temer a oportunidade de entrar para a História com um gesto de grandeza: retirar-se antes de ser escorraçado. Ao recusar essa chance, porém, ele está mandando às favas sua biografia política. Será lembrado não por algumas boas intenções reformistas, mas pelos malfeitos, cujo símbolo é aquela imagem inesquecível: um ex-assessor, homem de sua confiança, correndo e carregando numa mala R$ 500 mil que, segundo o procurador Rodrigo Janot, seriam de propina do corruptor Joesley Batista para o próprio Temer.
É outro episódio inédito. Acho que ninguém em tempo algum presenciou uma cena como essa na nossa História. O que leva um ambicioso homem público a jogar no lixo desse jeito sua carreira? Chamem um psicanalista com urgência.
Zuenir Ventura
Matrioska a la Brasil
A metáfora não tem relação direta com a recente viagem de Michel Temer à Rússia, mas a situação brasileira lembra bem a boneca russa, com uma boneca dentro da outra. No nosso caso, a cada crise que se destampa há outra dentro dela.
A boneca-mor é um governo sitiado, com linha de defesa frágil para enfrentar a artilharia pesada que se abate sobre sua paliçada. O mais recente bombardeio foi a denúncia do Procurador Geral da República, Rodrigo Janot, contra Temer, antecedida pelo Datafolha com péssimos resultados para o governo, e do petardo disparado pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso em seu último artigo. E tudo em três dias. Haja adrenalina!
O teatro de operações é a política. Temer se movimenta, não mais para entrar na história como o condottieri da travessia e sim para sobreviver a qualquer custo, até para continuar usufruindo do foro privilegiado. É difícil exigir gesto de grandeza de quem pode sair do Palácio do Planalto direto para as grades.
Temer pode sobreviver ao sítio, mas a preço altíssimo. Por meio de pacotes da bondade, do balcão de negócios no Congresso Nacional, de rebaixamento das reformas trabalhista e previdenciária.
Aí será mais crise dentro da crise.
O mercado que ainda tem expectativas positivas quanto ao seu governo, pode operar no sentido contrário ao sentir o abandono do programa das reformas e da austeridade fiscal.
Mesmo se presidente lograr êxito em barrar na Câmara Federal o pedido de abertura de inquérito contra ele, a crise não vai diminuir. Há um exemplo histórico a ser relembrado. Para inviabilizar a emenda das Diretas Já, o regime militar fez com que 112 parlamentares se ausentassem do plenário. Isso não evitou sua agonia. Sua base de sustentação cindiu-se, e a ditadura chegou ao fim com a eleição de Tancredo Neves.
São tempos diferentes, mas aqui nossa boneca russa revela outra crise, a erosão do centro.
Não nos falta apenas um Tancredo Neves. Falta um centro aglutinador, com estratégia clara. A força que poderia ser a mola propulsora desse campo, o PSDB, está emaranhado em suas contradições internas, não conseguindo, sequer, equacionar o passivo ético de seu presidente licenciado.
Há uma crença de que o centro se salvará por osmose. Bastaria uma aliança PSDB-PMDB em 2018. A máquina estatal nas mãos dos dois partidos somada ao tempo televisivo tornaria imbatível um candidato dessas forças. De novo é bom recorrer a exemplos históricos.
Em 1989 a candidatura Ulysses Guimarães estava respaldada por um PMDB mastodôntico, com 22 governadores e a maioria de senadores e deputados, mas como estava identificada com o fracasso do governo de José Sarney, deu vexame nas urnas.
Quando se pergunta a um soldado, sob fogo cerrado da artilharia inimiga, qual o pior bombardeio que já viveu, ele sempre responde: o mais recente. Assim acontece com as crises. Para quem as sente na pele a pior é sempre a última. A crise de Dilma vai deixando de ser a última...
Não há crises eternamente sem respostas. Basta saber ler as pesquisas de intenção de voto. A atomização do centro já está levando água para a polarização Lula-Bolsonaro. Concretamente, fortalece os extremos e suas propostas regressivas. Subestimá-los é um erro primário.
No Brasil de hoje existem apenas dois políticos com visão estratégica e que se movimentam no teatro de operações de forma sofisticada. Um é Lula que começa a se reposicionar no tabuleiro para atrair forças atrasadas e patrimonialistas duramente afetadas pela Lava Jato. Que ele é “derrotável”, não temos dúvidas. Mas quem é “ganhável”, eis a questão.
O outro é Fernando Henrique Cardoso. Engana-se quem atribui seus últimos movimentos ao peso da idade ou a preocupações com a sua biografia. Ainda não é possível descortinar inteiramente qual estratégia está por trás dos seus movimentos, aparentemente ziguezagueantes.
Uma hipótese é que o ex-presidente esteja prevendo um agravamento da situação de tal ordem que coloque as “soluções aleatórias”, para usar uma expressão de um analista de pesquisa que conhece muito bem o modo de raciocinar de FHC, como um dos cenários possíveis. Nesse caso, a antecipação da eleição seria o meio de se evitar desfechos mais graves fora da institucionalidade, uma vez que nos seus cálculos estaria a certeza de que Temer não chega a 2018.
Subsidiariamente, o ex-presidente estaria fornecendo discurso para seu partido sair do governo, caso seu apelo não seja aceito por Temer. O PSDB poderia, assim, se dedicar à reaglutinação do centro democrático.
De certo, apenas uma constatação. Dentro dessa Matrioska as bonecas parecem infinitas - ainda tem muita crise para vir à luz do dia.
A boneca-mor é um governo sitiado, com linha de defesa frágil para enfrentar a artilharia pesada que se abate sobre sua paliçada. O mais recente bombardeio foi a denúncia do Procurador Geral da República, Rodrigo Janot, contra Temer, antecedida pelo Datafolha com péssimos resultados para o governo, e do petardo disparado pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso em seu último artigo. E tudo em três dias. Haja adrenalina!
O próprio governo é uma matrioska, com suas sucessivas crises. No tempo de Dilma Rousseff, a crise econômica impulsionou as demais. Com Temer, a crise política sobrepujou-se a todas elas, adquiriu voo próprio. Exatamente por isso, a incipiente retomada econômica não serve de refrigério para o presidente.
O teatro de operações é a política. Temer se movimenta, não mais para entrar na história como o condottieri da travessia e sim para sobreviver a qualquer custo, até para continuar usufruindo do foro privilegiado. É difícil exigir gesto de grandeza de quem pode sair do Palácio do Planalto direto para as grades.
Temer pode sobreviver ao sítio, mas a preço altíssimo. Por meio de pacotes da bondade, do balcão de negócios no Congresso Nacional, de rebaixamento das reformas trabalhista e previdenciária.
Aí será mais crise dentro da crise.
O mercado que ainda tem expectativas positivas quanto ao seu governo, pode operar no sentido contrário ao sentir o abandono do programa das reformas e da austeridade fiscal.
Mesmo se presidente lograr êxito em barrar na Câmara Federal o pedido de abertura de inquérito contra ele, a crise não vai diminuir. Há um exemplo histórico a ser relembrado. Para inviabilizar a emenda das Diretas Já, o regime militar fez com que 112 parlamentares se ausentassem do plenário. Isso não evitou sua agonia. Sua base de sustentação cindiu-se, e a ditadura chegou ao fim com a eleição de Tancredo Neves.
São tempos diferentes, mas aqui nossa boneca russa revela outra crise, a erosão do centro.
Não nos falta apenas um Tancredo Neves. Falta um centro aglutinador, com estratégia clara. A força que poderia ser a mola propulsora desse campo, o PSDB, está emaranhado em suas contradições internas, não conseguindo, sequer, equacionar o passivo ético de seu presidente licenciado.
Há uma crença de que o centro se salvará por osmose. Bastaria uma aliança PSDB-PMDB em 2018. A máquina estatal nas mãos dos dois partidos somada ao tempo televisivo tornaria imbatível um candidato dessas forças. De novo é bom recorrer a exemplos históricos.
Em 1989 a candidatura Ulysses Guimarães estava respaldada por um PMDB mastodôntico, com 22 governadores e a maioria de senadores e deputados, mas como estava identificada com o fracasso do governo de José Sarney, deu vexame nas urnas.
Quando se pergunta a um soldado, sob fogo cerrado da artilharia inimiga, qual o pior bombardeio que já viveu, ele sempre responde: o mais recente. Assim acontece com as crises. Para quem as sente na pele a pior é sempre a última. A crise de Dilma vai deixando de ser a última...
Não há crises eternamente sem respostas. Basta saber ler as pesquisas de intenção de voto. A atomização do centro já está levando água para a polarização Lula-Bolsonaro. Concretamente, fortalece os extremos e suas propostas regressivas. Subestimá-los é um erro primário.
No Brasil de hoje existem apenas dois políticos com visão estratégica e que se movimentam no teatro de operações de forma sofisticada. Um é Lula que começa a se reposicionar no tabuleiro para atrair forças atrasadas e patrimonialistas duramente afetadas pela Lava Jato. Que ele é “derrotável”, não temos dúvidas. Mas quem é “ganhável”, eis a questão.
O outro é Fernando Henrique Cardoso. Engana-se quem atribui seus últimos movimentos ao peso da idade ou a preocupações com a sua biografia. Ainda não é possível descortinar inteiramente qual estratégia está por trás dos seus movimentos, aparentemente ziguezagueantes.
Uma hipótese é que o ex-presidente esteja prevendo um agravamento da situação de tal ordem que coloque as “soluções aleatórias”, para usar uma expressão de um analista de pesquisa que conhece muito bem o modo de raciocinar de FHC, como um dos cenários possíveis. Nesse caso, a antecipação da eleição seria o meio de se evitar desfechos mais graves fora da institucionalidade, uma vez que nos seus cálculos estaria a certeza de que Temer não chega a 2018.
Subsidiariamente, o ex-presidente estaria fornecendo discurso para seu partido sair do governo, caso seu apelo não seja aceito por Temer. O PSDB poderia, assim, se dedicar à reaglutinação do centro democrático.
De certo, apenas uma constatação. Dentro dessa Matrioska as bonecas parecem infinitas - ainda tem muita crise para vir à luz do dia.
Ameaça vem do brejo
Desespero de causa
O presidente Michel Temer desceu um tom na forma e subiu vários em relação ao pronunciamento anterior sobre acusações que pesam contra ele. Abandonou a ênfase na voz para pesar a mão nas palavras. A maior parte delas, falaciosa. O trecho mais grave (por indicar a ausência de argumentos de defesa consistentes) foi o que insinua a possibilidade de Marcelo Miller, ex-assessor de Rodrigo Janot e hoje trabalhando na defesa da JBS, ter urdido termos favoráveis a Joesley Batista no acordo da delação premiada em parceria com o procurador-geral da República para com ele dividir os honorários recebidos.
Jurista experiente, na cena atuando como advogado de si mesmo, Michel Temer não cita o nome do procurador nem faz acusações diretas; qualifica seu raciocínio de “ilação” com o objetivo de classificar como “ilações” bases em que se assentam a denúncia por corrupção passiva, a fim de desqualificar o trabalho da Procuradoria-Geral que chamou de “trôpego”. Em suma, abre uma guerra de vida ou morte contra o procurador Janot. O último a fazer isso, sem a mesma intensidade, foi o ex-deputado Eduardo Cunha. Temer e seus conselheiros parecem ter optado pelo caminho do perdido por um, perdido por mil.
Enquanto ele como politico pode dizer o que bem entende em seus discursos, o procurador não pode fazer o mesmo em suas peças acusatórias: precisa se ater aos fatos e enquadrá-los dentro da lei. De onde a chance de derrota na guerra que resolveu travar. Apenas para lembrar no caso de Cunha: se o então presidente da Câmara nada devesse à legalidade, o procurador nada poderia ter feito contra ele. Assim está o presidente da República: levanta hipótese alegadamente retórica, como aquela envolvendo Marcelo Miller, e distorce a realidade, como quando se refere à gravação periciada pela Polícia Federal.
De propósito deixa de lado o fato de que Miller não participou das negociações do acordo de delação, a não ser no estágio preliminar, cuja validade foi atestada pelo ministro Edson Fachin. Estaria ele, na ilação de Temer, envolvido no acerto de divisão de honorários? Intencionalmente também alude às interrupções existentes na conversa entre ele e Joesley como possíveis indicativos de fraude, mesmo diante da explicação da PF de que são cortes naturais decorrentes das características do aparelho de gravação.
Jurista experiente, na cena atuando como advogado de si mesmo, Michel Temer não cita o nome do procurador nem faz acusações diretas; qualifica seu raciocínio de “ilação” com o objetivo de classificar como “ilações” bases em que se assentam a denúncia por corrupção passiva, a fim de desqualificar o trabalho da Procuradoria-Geral que chamou de “trôpego”. Em suma, abre uma guerra de vida ou morte contra o procurador Janot. O último a fazer isso, sem a mesma intensidade, foi o ex-deputado Eduardo Cunha. Temer e seus conselheiros parecem ter optado pelo caminho do perdido por um, perdido por mil.
Enquanto ele como politico pode dizer o que bem entende em seus discursos, o procurador não pode fazer o mesmo em suas peças acusatórias: precisa se ater aos fatos e enquadrá-los dentro da lei. De onde a chance de derrota na guerra que resolveu travar. Apenas para lembrar no caso de Cunha: se o então presidente da Câmara nada devesse à legalidade, o procurador nada poderia ter feito contra ele. Assim está o presidente da República: levanta hipótese alegadamente retórica, como aquela envolvendo Marcelo Miller, e distorce a realidade, como quando se refere à gravação periciada pela Polícia Federal.
De propósito deixa de lado o fato de que Miller não participou das negociações do acordo de delação, a não ser no estágio preliminar, cuja validade foi atestada pelo ministro Edson Fachin. Estaria ele, na ilação de Temer, envolvido no acerto de divisão de honorários? Intencionalmente também alude às interrupções existentes na conversa entre ele e Joesley como possíveis indicativos de fraude, mesmo diante da explicação da PF de que são cortes naturais decorrentes das características do aparelho de gravação.
A roubalheira tem origem em passado remoto
O mundo é desonesto. Nenhum dos 176 países cobertos na lista de corrupção percebida da Transparency International recebe a nota máxima. Na última edição, apenas 22 registraram escore igual ou maior do que 7,0 em 10,0. O Chile é o campeão da América Latina, figurando em 24º lugar com 6,6. O Brasil situa-se próximo do meio da distribuição, exatamente ao lado da China, com 4,0. Por incrível que pareça, há mais de 90 países com corrupção percebida maior do que a nossa.
Seguindo a obra clássica de Raymundo Faoro, a corrupção no Brasil resulta de um processo histórico em que, nos primórdios da colonização, instituições foram formadas para perpetuar as regalias e o poder de uma burocracia administrativamente inoperante, mas muito resistente, no âmbito de um “capitalismo politicamente orientado” que abriu um fosso entre o Estado patrimonialista e a nação – especialmente após 1930.
Basta uma leitura descompromissada dos periódicos recentes para verificar que a descrição de Os Donos do Poder se non è vera, è ben trovata. Sobram indícios de que a prioridade do aparelho estatal é advogar em causa própria, frequentemente a partir de um discurso de defesa do que deveria ser o justo. Vide a diferença brutal existente entre a renda de funcionários do setor público e do setor privado para a mesma atividade – sem mencionar o fosso de produtividade existente entre os dois grupos e os privilégios não pecuniários do primeiro.
Uma questão pertinente é saber como caímos neste buraco. Que condições históricas propiciaram o florescimento de burocracias parasitas como a que tomou conta do Brasil? Além disso, dá para sonhar com um futuro melhor, menos desonesto, em que o mérito e competição em condições igualitárias sejam premiados? Os pesquisadores Eric Uslaner e Bo Rothstein escarafuncharam os dados existentes e encontraram alguns padrões interessantes para iluminar o problema. O trabalho recente intitulado The Historical Roots of Corruption: State Building, Economic Inequality and Mass Education foi publicado na edição de janeiro de 2016 da revista Comparative Politics.
Os autores detectaram a existência de uma relação inversamente proporcional entre os níveis históricos de educação no final do Século XIX e a corrupção percebida atualmente em uma amostra de 78 países para os quais há informações. Os lugares atualmente menos corruptos eram relativamente bem educados em um passado distante, não necessariamente mais ricos. Há várias razões para acreditar no vínculo entre essas variáveis. Primeiro, a educação fortalece os laços sociais entre grupos distintos, consolidando noções de cidadania e de lealdade em relação ao Estado que, por sua vez, são favoráveis à honestidade.
Segundo, a educação tende a criar um ciclo virtuoso de riqueza e igualdade, fatores materiais que costumam inibir a roubalheira. De fato, a elite tem mais dificuldade em adotar políticas socialmente prejudiciais em sociedades mais igualitárias. Além disso, populações mais educadas precisam recorrer menos a estruturas de poder clientelísticas. Terceiro, a educação propicia a criação de um mercado para a imprensa, revigorando seu papel de sentinela. Resumindo, ao prover educação em massa, o estado sinaliza a seus cidadãos que não serve a um grupo específico, estimulando a honestidade.
Por que a educação floresceu mais em uns lugares do que em outros? A existência de um passado colonial conta negativamente e, para a nossa infelicidade, um dos pontos mais críticos é o perfil dos colonos (e os objetivos da metrópole em relação à colônia). Nos lugares em que a fatia de europeus era relativamente maior, o nível educacional era também maior porque os colonos tinham um padrão de exigência em relação aos governantes locais semelhante ao que manifestavam em seus países de origem.
A evidência também sugere que os lugares em que a distribuição da propriedade da terra era mais igualitária no passado tendiam a exibir níveis educacionais mais elevados. Estes fatores indicam que colonizações com fins extrativos, caracterizadas por terem menos europeus e distribuição desigual da terra, ajudam a explicar a corrupção hoje porque, nestes lugares, não havia incentivos a prover educação de massa. Mas isso é apenas parte da história.
As trajetórias de nações independentes também corrobora a teoria. Nestes lugares, a influência da religião foi um elemento importante. A educação foi mais estimulada pelos protestantes, cujos missionários pregavam a leitura da Bíblia. Nos países católicos, a igreja temia que a alfabetização pudesse levar ao questionamento de sua autoridade, preferindo investir em educação apenas quando enfrentava concorrência (como no Canadá). Essa cunha explica a diferença no destino de Portugal e Espanha, de um lado, e Escandinávia, de outro. A Ética Protestante funcionou como obstáculo à corrupção contemporânea não apenas porque instilou a cultura do trabalho duro, mas porque favoreceu a educação.
Um resultado interessante é a importância menor da existência de instituições democráticas lá atrás para entender a corrupção no presente. No final do Século XIX, as democracias não apresentavam necessariamente os níveis educacionais maiores. A Inglaterra, a democracia mais avançada economicamente na época, introduziu educação de massa com bastante atraso, importando o modelo de nações mais autoritárias para fazer a reforma doméstica.
Nações continentais como Alemanha, Dinamarca e Suécia investiram em educação porque a elite política via a necessidade de construir uma identidade nacional unificada a partir do Estado. O sistema Sueco, por exemplo, estabeleceu que meninos e meninas devessem ser tratados da mesma forma e estudar juntos – foi introduzido em 1842. Na Itália, país relativamente corrupto hoje, metade da população era analfabeta ainda na primeira década do Século XX, especialmente na região do sul – em que a corrupção é significativamente maior do que no norte.
O lado positivo do estudo é que parece haver uma via para recuperar o tempo perdido, mas com lentidão bovina. Mudanças no nível educacional ao longo da história também ajudam a compreender a roubalheira atual, mas não tanto quanto a educação existente na partida. De fato, a correlação entre corrupção hoje e educação ontem é bem maior do que a relação entre corrupção hoje e educação hoje. Finlândia, Japão e Coreia do Sul são exemplos de países que, por razões distintas, escaparam da armadilha de um passado longínquo com pouca educação.
A roubalheira generalizada que assola o Brasil tem origem que remonta a colonização. A limpeza que parece ganhar corpo com a Lava-Jato é apenas o primeiro passo de uma longa jornada. A ponte terá que ser erguida com condições desfavoráveis: índices de corrupção ainda elevados e população com baixo nível educacional, inclinada a acreditar na heterodoxia de vendedores de sonhos. As investigações são importantíssimas, mas só seremos um país verdadeiramente honesto quando tivermos discernimento para entender que o desenvolvimento não cai do céu.
Seguindo a obra clássica de Raymundo Faoro, a corrupção no Brasil resulta de um processo histórico em que, nos primórdios da colonização, instituições foram formadas para perpetuar as regalias e o poder de uma burocracia administrativamente inoperante, mas muito resistente, no âmbito de um “capitalismo politicamente orientado” que abriu um fosso entre o Estado patrimonialista e a nação – especialmente após 1930.
Basta uma leitura descompromissada dos periódicos recentes para verificar que a descrição de Os Donos do Poder se non è vera, è ben trovata. Sobram indícios de que a prioridade do aparelho estatal é advogar em causa própria, frequentemente a partir de um discurso de defesa do que deveria ser o justo. Vide a diferença brutal existente entre a renda de funcionários do setor público e do setor privado para a mesma atividade – sem mencionar o fosso de produtividade existente entre os dois grupos e os privilégios não pecuniários do primeiro.
Uma questão pertinente é saber como caímos neste buraco. Que condições históricas propiciaram o florescimento de burocracias parasitas como a que tomou conta do Brasil? Além disso, dá para sonhar com um futuro melhor, menos desonesto, em que o mérito e competição em condições igualitárias sejam premiados? Os pesquisadores Eric Uslaner e Bo Rothstein escarafuncharam os dados existentes e encontraram alguns padrões interessantes para iluminar o problema. O trabalho recente intitulado The Historical Roots of Corruption: State Building, Economic Inequality and Mass Education foi publicado na edição de janeiro de 2016 da revista Comparative Politics.
Os autores detectaram a existência de uma relação inversamente proporcional entre os níveis históricos de educação no final do Século XIX e a corrupção percebida atualmente em uma amostra de 78 países para os quais há informações. Os lugares atualmente menos corruptos eram relativamente bem educados em um passado distante, não necessariamente mais ricos. Há várias razões para acreditar no vínculo entre essas variáveis. Primeiro, a educação fortalece os laços sociais entre grupos distintos, consolidando noções de cidadania e de lealdade em relação ao Estado que, por sua vez, são favoráveis à honestidade.
Segundo, a educação tende a criar um ciclo virtuoso de riqueza e igualdade, fatores materiais que costumam inibir a roubalheira. De fato, a elite tem mais dificuldade em adotar políticas socialmente prejudiciais em sociedades mais igualitárias. Além disso, populações mais educadas precisam recorrer menos a estruturas de poder clientelísticas. Terceiro, a educação propicia a criação de um mercado para a imprensa, revigorando seu papel de sentinela. Resumindo, ao prover educação em massa, o estado sinaliza a seus cidadãos que não serve a um grupo específico, estimulando a honestidade.
Por que a educação floresceu mais em uns lugares do que em outros? A existência de um passado colonial conta negativamente e, para a nossa infelicidade, um dos pontos mais críticos é o perfil dos colonos (e os objetivos da metrópole em relação à colônia). Nos lugares em que a fatia de europeus era relativamente maior, o nível educacional era também maior porque os colonos tinham um padrão de exigência em relação aos governantes locais semelhante ao que manifestavam em seus países de origem.
A evidência também sugere que os lugares em que a distribuição da propriedade da terra era mais igualitária no passado tendiam a exibir níveis educacionais mais elevados. Estes fatores indicam que colonizações com fins extrativos, caracterizadas por terem menos europeus e distribuição desigual da terra, ajudam a explicar a corrupção hoje porque, nestes lugares, não havia incentivos a prover educação de massa. Mas isso é apenas parte da história.
As trajetórias de nações independentes também corrobora a teoria. Nestes lugares, a influência da religião foi um elemento importante. A educação foi mais estimulada pelos protestantes, cujos missionários pregavam a leitura da Bíblia. Nos países católicos, a igreja temia que a alfabetização pudesse levar ao questionamento de sua autoridade, preferindo investir em educação apenas quando enfrentava concorrência (como no Canadá). Essa cunha explica a diferença no destino de Portugal e Espanha, de um lado, e Escandinávia, de outro. A Ética Protestante funcionou como obstáculo à corrupção contemporânea não apenas porque instilou a cultura do trabalho duro, mas porque favoreceu a educação.
Um resultado interessante é a importância menor da existência de instituições democráticas lá atrás para entender a corrupção no presente. No final do Século XIX, as democracias não apresentavam necessariamente os níveis educacionais maiores. A Inglaterra, a democracia mais avançada economicamente na época, introduziu educação de massa com bastante atraso, importando o modelo de nações mais autoritárias para fazer a reforma doméstica.
Nações continentais como Alemanha, Dinamarca e Suécia investiram em educação porque a elite política via a necessidade de construir uma identidade nacional unificada a partir do Estado. O sistema Sueco, por exemplo, estabeleceu que meninos e meninas devessem ser tratados da mesma forma e estudar juntos – foi introduzido em 1842. Na Itália, país relativamente corrupto hoje, metade da população era analfabeta ainda na primeira década do Século XX, especialmente na região do sul – em que a corrupção é significativamente maior do que no norte.
O lado positivo do estudo é que parece haver uma via para recuperar o tempo perdido, mas com lentidão bovina. Mudanças no nível educacional ao longo da história também ajudam a compreender a roubalheira atual, mas não tanto quanto a educação existente na partida. De fato, a correlação entre corrupção hoje e educação ontem é bem maior do que a relação entre corrupção hoje e educação hoje. Finlândia, Japão e Coreia do Sul são exemplos de países que, por razões distintas, escaparam da armadilha de um passado longínquo com pouca educação.
A roubalheira generalizada que assola o Brasil tem origem que remonta a colonização. A limpeza que parece ganhar corpo com a Lava-Jato é apenas o primeiro passo de uma longa jornada. A ponte terá que ser erguida com condições desfavoráveis: índices de corrupção ainda elevados e população com baixo nível educacional, inclinada a acreditar na heterodoxia de vendedores de sonhos. As investigações são importantíssimas, mas só seremos um país verdadeiramente honesto quando tivermos discernimento para entender que o desenvolvimento não cai do céu.
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