domingo, 10 de abril de 2022
Viva a Vida!
Está certo. Os caminhoneiros devem estar precisando mais do que os produtores de cultura. O Banco do Brasil reservou 8 bilhões de reais para suas necessidades, enquanto o presidente vetava o projeto, já aprovado no Congresso, que destinava metade desse valor aos produtores de cultura através da Lei Paulo Gustavo. Fausto Ribeiro, presidente do BB, anunciou que o banco e o governo estão “de braços abertos para todos os caminhoneiros”.
Numa democracia de verdade, um líder é sempre escolhido pela população para comandar a nação, atendendo às necessidades de todos os seus filhos, sem discriminação. Uma vez eleito, ele deve se tornar de todos, sem partido ou grupo social. Esse cara, num regime como o nosso, é o presidente da República. Ou seja, o capitão Bolsonaro.
Mas o capitão não gosta da gente, não quer saber de escritores, músicos, poetas, artistas de nenhuma especialidade, tem horror fóbico a quem mexe com essas coisas. Ele talvez tenha até uma certa razão – artistas estão sempre levantando problemas da nação e do povo da nação, como se coubesse a eles vigiar o que anda acontecendo de errado, anunciar o que precisa ser mudado, lutar por essas causas. Já o caminhoneiro pode ser corajoso, discordar e lutar contra o que não acha correto, mas na maioria dos casos está na cabine de seu caminhão, cantarolando com o rádio um trecho qualquer de Marília Mendonça.
Vi, essa semana, o magnífico documentário de Belisário Franca sobre Fernando Henrique Cardoso, sua eleição à presidência e os primeiros anos de governo. No documentário, “O presidente improvável”, FHC diz algo fundamental, um conceito que é a cara dele: “Não é verdade que a política seja a arte do possível; ela é, sim, a arte de tornar possível o que a gente pensa”. FHC estava certo. O que a gente pensa e deseja passa a ser portanto a chave do juízo que faremos, na política e nas atividades sociais, de nós mesmos e dos outros. Mesmo que nosso julgamento não seja tão objetivo.
Como o meu. Não consigo saber exatamente o que acontece com a humanidade neste momento, mas desde a pandemia me ocorre a ideia e tenho a sensação de que vivemos uma decadência moral e política, causa ou consequência da peste recente. De algum modo, devo ter razão.
Desde a Guerra do Peloponeso, a humanidade se enfrenta, quase sempre, entre dois polos radicais, o elogio da vida e o da morte. O que é dionisíaco contra o que é apolíneo. Mas é preciso descobrir onde está um e outro, cada vez que se opõem em luta polarizada. Muitas vezes nos enganamos e acabamos cerrando fileiras no equívoco ou mesmo torcendo pelo inimigo. Nos primeiros dias da guerra na Ucrânia tivemos esse problema, sem saber direito de que lado devíamos estar, embora a simpatia pelos ucranianos, com mais imaginação, mais fracos e mais pobres, fosse crescendo e se espalhando pelo mundo todo.
Não temos que escolher entre os caminhoneiros e os produtores de cultura. No fundo, é isso o que o governo deseja, dividindo a população do país entre trabalhadores e criadores, como se uns estivessem contra os outros, como se uns estivessem explorando os outros. E, o que é talvez mais grave, como se uns atrapalhassem a vida dos outros. Como se a polarização fosse sinal de que não podem conviver numa mesma sociedade.
Durante a Guerra Civil espanhola, os intelectuais e militares que defendiam o invasor comandado por Francisco Franco, responsável pelo golpe de estado de minorias que tomaram o poder e acabaram com os majoritários defensores da República eleitos pela população, esses líderes golpistas inventaram a célebre saudação: “Viva la muerte!”. Eles foram responsáveis pela Espanha de Franco, o regime fascista mais duradouro na história da Europa do século passado.
Numa democracia de verdade, um líder é sempre escolhido pela população para comandar a nação, atendendo às necessidades de todos os seus filhos, sem discriminação. Uma vez eleito, ele deve se tornar de todos, sem partido ou grupo social. Esse cara, num regime como o nosso, é o presidente da República. Ou seja, o capitão Bolsonaro.
Mas o capitão não gosta da gente, não quer saber de escritores, músicos, poetas, artistas de nenhuma especialidade, tem horror fóbico a quem mexe com essas coisas. Ele talvez tenha até uma certa razão – artistas estão sempre levantando problemas da nação e do povo da nação, como se coubesse a eles vigiar o que anda acontecendo de errado, anunciar o que precisa ser mudado, lutar por essas causas. Já o caminhoneiro pode ser corajoso, discordar e lutar contra o que não acha correto, mas na maioria dos casos está na cabine de seu caminhão, cantarolando com o rádio um trecho qualquer de Marília Mendonça.
Vi, essa semana, o magnífico documentário de Belisário Franca sobre Fernando Henrique Cardoso, sua eleição à presidência e os primeiros anos de governo. No documentário, “O presidente improvável”, FHC diz algo fundamental, um conceito que é a cara dele: “Não é verdade que a política seja a arte do possível; ela é, sim, a arte de tornar possível o que a gente pensa”. FHC estava certo. O que a gente pensa e deseja passa a ser portanto a chave do juízo que faremos, na política e nas atividades sociais, de nós mesmos e dos outros. Mesmo que nosso julgamento não seja tão objetivo.
Como o meu. Não consigo saber exatamente o que acontece com a humanidade neste momento, mas desde a pandemia me ocorre a ideia e tenho a sensação de que vivemos uma decadência moral e política, causa ou consequência da peste recente. De algum modo, devo ter razão.
Desde a Guerra do Peloponeso, a humanidade se enfrenta, quase sempre, entre dois polos radicais, o elogio da vida e o da morte. O que é dionisíaco contra o que é apolíneo. Mas é preciso descobrir onde está um e outro, cada vez que se opõem em luta polarizada. Muitas vezes nos enganamos e acabamos cerrando fileiras no equívoco ou mesmo torcendo pelo inimigo. Nos primeiros dias da guerra na Ucrânia tivemos esse problema, sem saber direito de que lado devíamos estar, embora a simpatia pelos ucranianos, com mais imaginação, mais fracos e mais pobres, fosse crescendo e se espalhando pelo mundo todo.
Não temos que escolher entre os caminhoneiros e os produtores de cultura. No fundo, é isso o que o governo deseja, dividindo a população do país entre trabalhadores e criadores, como se uns estivessem contra os outros, como se uns estivessem explorando os outros. E, o que é talvez mais grave, como se uns atrapalhassem a vida dos outros. Como se a polarização fosse sinal de que não podem conviver numa mesma sociedade.
Durante a Guerra Civil espanhola, os intelectuais e militares que defendiam o invasor comandado por Francisco Franco, responsável pelo golpe de estado de minorias que tomaram o poder e acabaram com os majoritários defensores da República eleitos pela população, esses líderes golpistas inventaram a célebre saudação: “Viva la muerte!”. Eles foram responsáveis pela Espanha de Franco, o regime fascista mais duradouro na história da Europa do século passado.
Marx e Dostoiewski
Tomemos por exemplo, o melhor e mais famoso dos romances de Dostoiewski: Crime e Castigo. Esta obra-prima será por muito tempo uma chave indispensável para se compreender tudo quanto aconteceu na Rússia e na Europa nos últimos cinquenta anos. Quem é Raskolnikov? Um intelectual anterior ao marxismo, indignado com as condições de injustiça social e de miséria abjecta da Rússia czarista, decidido a praticar uma acção demonstrativa, simbólica, contra estas condições . Raskolnikov não havia lido Marx e admirava Napoleão, modelo, para todo o século XIX, do super-homem; mas é sintomático que, ao contrário do stendhaliano Julien Sorel, outro admirador de Napoleão, ele não sonhasse com a grandeza mas sim com a justiça. E que o seu ódio se dirigisse contra um usurária, ou seja contra o caso limite da exploração do homem, segundo a fórmula marxista. Quem é pois a usurária? É a burguesia europeia que guarda na pasta os títulos industriais, fruto do esforço operário, que vive de rendas sobre o proletariado nacional e colonial, e tudo isso sem se dar conta, com consciência tranquila. É um símbolo, em suma, não muito diferente , no fundo da figura convencional do banqueiro da sátira antiburguesa, gordo e de barriga cheia, como chapéu alto e pasta , a pança enorme envolta num colete branco, as mãos cheias de anéis faiscando raios.
Raskolnikov, embora não tendo lido Marx e considerando-se um super-homem para além do bem e do mal , era também já, em embrião, um comissário do povo; e de facto os primeiros comissários do povo surgiram daquela mesma classe da "inteligenzia" à qual pertencia Raskolnikov e possuíam as mesmas ideias , a mesma sede de justiça social, a mesma terrível coerência ideológica , a mesma inflexibilidade na acção. E o dilema de Raskolniov é o mesmo dos comissários do povo e de Estaline: "Para o bem da humanidade é lícito ou não matar a velha usurária ( ler-se: liquidar a burguesia)?" Portanto, porquê tanta aversão por parte dos comunistas contra Dostoiewski?
A razão é muito simples. O ódio de Raskolnikov contra a usurária tem uma origem cristã. Este ódio na realidade é o ódio da Idade Média cristã contra o negócio e o lucro , a inconciliabilidade do Evangelho com a banca e as percentagens do juro. Este ódio, esta inconciliabilidade colocaram durante séculos a banca e o comércio nas mãos dos judeus até ao dia em que os povos cristãos da Europa ( e primeiro de todos, o italiano) se aperceberam de que era possível ser-se banqueiro e comerciante e, ao mesmo tempo, boa gente temerosa de Deus, em paz consigo própria e com a religião. Mas Raskolnikov pertencia , como de resto os comissários do povo e Estaline, a um país ainda medieval no qual a banca e o comércio se encontravam na mão de restritos grupos sociais e raciais , um país atrasado, de camponeses agarrados a um cristianismo ainda primitivo e místico. Assim, para Raskolnikov, a banca e o comércio são a usura, e a burguesia europeia e russa que pratica a usura , a usurária; então, é necessário matar a usurária ou seja, liquidar a burguesia.
Mas neste ponto as duas estradas , até aqui unidas, de Dostoiewski e dos marxistas , bifurcam-se: "Eliminemos a usurária e vamos para a frente. Depois da morte da usurária começará uma nova sociedade sem classes nem usura. A criação dessa sociedade justifica amplamente o assassínio da usurária." Em vez disso, Dostoiewski, que se manteve cristão, depois de nos ter conduzido pela mão através de todas as fases do delito que sem dúvida havia meditado, acarinhado e aprovado mil vezes no seu coração, com um súbito volta-face, desaprova repentinamente Raskolnikov ou seja, os marxistas, isto é , Estaline , e diz: "Não , não é lícito matar, mesmo que seja por bem da humanidade. Cristo disse: não matarás." E de facto Raskolnikov arrepende-se, lê o Evangelho juntamente com Sónia. Dostoiewski envolve o fim do seu romance numa aura mística. : "Aqui começa uma nova história, a história da renovação gradual de um homem, a história da sua gradual regeneração, da sua passagem gradual de um mundo para outro, do seu progresso para uma nova realidade até ali ignorada .» Os marxistas em vez disso, teriam concluído: «Aqui começa a revolução."
O desvio entre Dostoiewski e os marxistas é devido a uma consideração diferente do que é o mal. Para os marxistas o mal é a usurária, ou seja a burguesia; Dostoiewski , tendo primeiramente aceite esta tese, repudia-a e chega à conclusão cristã de que o mal não é tanto a usurária quanto o meio usado, isto é a violência. Este mal de Dostoiewski no romance, não é somente representado pela morte violenta da usurária, mas também e sobretudo pela outra, da inocente e piedosa Lizaveta, irmã da usurária, que Raskolnikov mata, para suprimi uma testemunhado seu crime. Afinal para os marxistas , na realidade omal não existe desde que se trate unicamente de um mal social que pode ser liquidado com a revolução. Em vez disso, para Dostoiewwski o mal existe como facto individual no coração de cada homem e exprime-se exactamente nos meios violentos dos quais se serve a revolução. Os marxistas lavam com a justificação histórica e social mesmo as consciências mais negras , Dostoiewski nega esta lavagem e afirma a existência ineliminável do mal.
Alberto Moravia, "Um mês na URSS"
Raskolnikov, embora não tendo lido Marx e considerando-se um super-homem para além do bem e do mal , era também já, em embrião, um comissário do povo; e de facto os primeiros comissários do povo surgiram daquela mesma classe da "inteligenzia" à qual pertencia Raskolnikov e possuíam as mesmas ideias , a mesma sede de justiça social, a mesma terrível coerência ideológica , a mesma inflexibilidade na acção. E o dilema de Raskolniov é o mesmo dos comissários do povo e de Estaline: "Para o bem da humanidade é lícito ou não matar a velha usurária ( ler-se: liquidar a burguesia)?" Portanto, porquê tanta aversão por parte dos comunistas contra Dostoiewski?
Marian Kamensky (Áustria) |
A razão é muito simples. O ódio de Raskolnikov contra a usurária tem uma origem cristã. Este ódio na realidade é o ódio da Idade Média cristã contra o negócio e o lucro , a inconciliabilidade do Evangelho com a banca e as percentagens do juro. Este ódio, esta inconciliabilidade colocaram durante séculos a banca e o comércio nas mãos dos judeus até ao dia em que os povos cristãos da Europa ( e primeiro de todos, o italiano) se aperceberam de que era possível ser-se banqueiro e comerciante e, ao mesmo tempo, boa gente temerosa de Deus, em paz consigo própria e com a religião. Mas Raskolnikov pertencia , como de resto os comissários do povo e Estaline, a um país ainda medieval no qual a banca e o comércio se encontravam na mão de restritos grupos sociais e raciais , um país atrasado, de camponeses agarrados a um cristianismo ainda primitivo e místico. Assim, para Raskolnikov, a banca e o comércio são a usura, e a burguesia europeia e russa que pratica a usura , a usurária; então, é necessário matar a usurária ou seja, liquidar a burguesia.
Mas neste ponto as duas estradas , até aqui unidas, de Dostoiewski e dos marxistas , bifurcam-se: "Eliminemos a usurária e vamos para a frente. Depois da morte da usurária começará uma nova sociedade sem classes nem usura. A criação dessa sociedade justifica amplamente o assassínio da usurária." Em vez disso, Dostoiewski, que se manteve cristão, depois de nos ter conduzido pela mão através de todas as fases do delito que sem dúvida havia meditado, acarinhado e aprovado mil vezes no seu coração, com um súbito volta-face, desaprova repentinamente Raskolnikov ou seja, os marxistas, isto é , Estaline , e diz: "Não , não é lícito matar, mesmo que seja por bem da humanidade. Cristo disse: não matarás." E de facto Raskolnikov arrepende-se, lê o Evangelho juntamente com Sónia. Dostoiewski envolve o fim do seu romance numa aura mística. : "Aqui começa uma nova história, a história da renovação gradual de um homem, a história da sua gradual regeneração, da sua passagem gradual de um mundo para outro, do seu progresso para uma nova realidade até ali ignorada .» Os marxistas em vez disso, teriam concluído: «Aqui começa a revolução."
O desvio entre Dostoiewski e os marxistas é devido a uma consideração diferente do que é o mal. Para os marxistas o mal é a usurária, ou seja a burguesia; Dostoiewski , tendo primeiramente aceite esta tese, repudia-a e chega à conclusão cristã de que o mal não é tanto a usurária quanto o meio usado, isto é a violência. Este mal de Dostoiewski no romance, não é somente representado pela morte violenta da usurária, mas também e sobretudo pela outra, da inocente e piedosa Lizaveta, irmã da usurária, que Raskolnikov mata, para suprimi uma testemunhado seu crime. Afinal para os marxistas , na realidade omal não existe desde que se trate unicamente de um mal social que pode ser liquidado com a revolução. Em vez disso, para Dostoiewwski o mal existe como facto individual no coração de cada homem e exprime-se exactamente nos meios violentos dos quais se serve a revolução. Os marxistas lavam com a justificação histórica e social mesmo as consciências mais negras , Dostoiewski nega esta lavagem e afirma a existência ineliminável do mal.
Alberto Moravia, "Um mês na URSS"
Os falsos adversários de Bolsonaro
Difícil, mas possível, explicar porque o eleitor poderá reeleger um presidente responsável por parte dos 660.000 mortos pelo covid, que ameaça dar golpe militar, elogia tortura, tem um governo com corrupção nos Ministérios da Saúde e da Educação, promove a destruição de nossas florestas, envergonha o Brasil no exterior, não controla a inflação, tem sido rodeado de milicianos… É possível, e a culpa não está no eleitor, ele apenas tem de escolher em qual votar no segundo turno, ou não votar em qualquer dos dois.
Apesar do lamentável balanço de seu desempenho, Bolsonaro tem dois aliados: o PT ainda hesita em falar para fora dos seus apoiadores tradicionais e os “nem-nem” cujas acusações depredam a imagem do Lula e do PT.
Sem Lula, Bolsonaro não será derrotado, mas sozinho ele não vence a eleição, precisa que os democratas não-petistas subam no seu palanque, para uma vitória no primeiro turno ou para apoiá-lo no segundo. Mas os discursos antipetistas e antilula há meses e os que serão feitos ao longo do primeiro turno tendem a inviabilizar apoio ao Lula. Os discursos “nem-nem” se transformarão em votos nulos, elegendo Bolsonaro.
Para dificultar a situação, os “nem-nens” são empurrados para longe do Lula e do PT, não apenas por preconceitos (ou conceitos) vindos do passado, mas também por falas do ex-presidente que às vezes esquece que é candidato em uma eleição difícil. O Lula assusta eleitores não petistas quando fala em revogar reformas, no lugar de dizer como pode aperfeiçoar a reforma trabalhista, a reforma do ensino médio e a PEC do Teto de Gastos. No lugar do horror a privatização, precisa dizer como fará o Estado servir ao Povo. Assusta também e serve à propaganda de Bolsonaro, quando se assume porta-voz de bandeiras específicas de grupos sindicais, feministas, no lugar de ser porta-voz dos direitos gerais, sem se assumir de um grupo em choque com outros.
Há momentos que o PT e o candidato Lula parecem falar para espelhos dentro de bolhas isoladas, sem levar em conta as mudanças nas últimas décadas: na geopolítica, nas tecnologias, nas percepções dos limites ecológicos ao crescimento, na mudança da pirâmide demográfica, no esgotamento do Estado, na irreversível abertura da economia e da sociedade ao mundo global. E também na importância da educação de base como o vetor do progresso. O PT e Lula precisam entender que o mundo mudou desde meados dos anos 80, quando o PT foi fundado, com o Muro de Berlim em pé, antes da inteligência artificial, da microinformática e da internet. Precisam perceber também que, na política, não há mais bolhas isoladas: a fala de agrado a um grupo, entre paredes fechadas, se espalha para todas as demais bolhas, gerando sorrisos de alegria entre os que estão em frente e ranger de dentes nos que estão ao lado. Diferente de 2002 e 2006, o discurso do Lula em cada grupo não espera para ser divulgado, intermediado por jornalistas: agora ele aparece, simultânea e universalmente.
Se compararmos os dois governos e respectivas personalidades, parece ilógico e impossível Bolsonaro ter mais votos do que Lula. Mas a impossibilidade fica lógica se somarmos os votos do atual presidente aos votos nulos induzidos pelo antipetismo dos “nem-nem” e pelas falas de Lula e PT para dentro de suas bolhas setoriais, corporativas, identitárias, ideológicas.
Não adianta colocar Alckmin na frente do espelho, é preciso romper a bolha e falar para o Brasil e para o futuro, sem nostalgias nem sectarismos. O PT e Lula precisam ler o alerta do Senador Randolfe, neste mesmo jornal Metrópoles, ao dizer que Lula precisa ser plural, como aliás ele tende a ser pessoalmente. E deu provas durante seus dois governos. Caso contrário, pode perder a eleição, inexplicavelmente, para Bolsonaro. Precisam entender que esta derrota será do Braisl, não apenas do Lula e do PT, portanto, a vitória deve ser de todo o Brasil e não apenas dele e do PT. Até porque dificilmente vencerão e certamente não governarão dentro da bolha e falando para o espelho.
Apesar do lamentável balanço de seu desempenho, Bolsonaro tem dois aliados: o PT ainda hesita em falar para fora dos seus apoiadores tradicionais e os “nem-nem” cujas acusações depredam a imagem do Lula e do PT.
Sem Lula, Bolsonaro não será derrotado, mas sozinho ele não vence a eleição, precisa que os democratas não-petistas subam no seu palanque, para uma vitória no primeiro turno ou para apoiá-lo no segundo. Mas os discursos antipetistas e antilula há meses e os que serão feitos ao longo do primeiro turno tendem a inviabilizar apoio ao Lula. Os discursos “nem-nem” se transformarão em votos nulos, elegendo Bolsonaro.
Para dificultar a situação, os “nem-nens” são empurrados para longe do Lula e do PT, não apenas por preconceitos (ou conceitos) vindos do passado, mas também por falas do ex-presidente que às vezes esquece que é candidato em uma eleição difícil. O Lula assusta eleitores não petistas quando fala em revogar reformas, no lugar de dizer como pode aperfeiçoar a reforma trabalhista, a reforma do ensino médio e a PEC do Teto de Gastos. No lugar do horror a privatização, precisa dizer como fará o Estado servir ao Povo. Assusta também e serve à propaganda de Bolsonaro, quando se assume porta-voz de bandeiras específicas de grupos sindicais, feministas, no lugar de ser porta-voz dos direitos gerais, sem se assumir de um grupo em choque com outros.
Há momentos que o PT e o candidato Lula parecem falar para espelhos dentro de bolhas isoladas, sem levar em conta as mudanças nas últimas décadas: na geopolítica, nas tecnologias, nas percepções dos limites ecológicos ao crescimento, na mudança da pirâmide demográfica, no esgotamento do Estado, na irreversível abertura da economia e da sociedade ao mundo global. E também na importância da educação de base como o vetor do progresso. O PT e Lula precisam entender que o mundo mudou desde meados dos anos 80, quando o PT foi fundado, com o Muro de Berlim em pé, antes da inteligência artificial, da microinformática e da internet. Precisam perceber também que, na política, não há mais bolhas isoladas: a fala de agrado a um grupo, entre paredes fechadas, se espalha para todas as demais bolhas, gerando sorrisos de alegria entre os que estão em frente e ranger de dentes nos que estão ao lado. Diferente de 2002 e 2006, o discurso do Lula em cada grupo não espera para ser divulgado, intermediado por jornalistas: agora ele aparece, simultânea e universalmente.
Se compararmos os dois governos e respectivas personalidades, parece ilógico e impossível Bolsonaro ter mais votos do que Lula. Mas a impossibilidade fica lógica se somarmos os votos do atual presidente aos votos nulos induzidos pelo antipetismo dos “nem-nem” e pelas falas de Lula e PT para dentro de suas bolhas setoriais, corporativas, identitárias, ideológicas.
Não adianta colocar Alckmin na frente do espelho, é preciso romper a bolha e falar para o Brasil e para o futuro, sem nostalgias nem sectarismos. O PT e Lula precisam ler o alerta do Senador Randolfe, neste mesmo jornal Metrópoles, ao dizer que Lula precisa ser plural, como aliás ele tende a ser pessoalmente. E deu provas durante seus dois governos. Caso contrário, pode perder a eleição, inexplicavelmente, para Bolsonaro. Precisam entender que esta derrota será do Braisl, não apenas do Lula e do PT, portanto, a vitória deve ser de todo o Brasil e não apenas dele e do PT. Até porque dificilmente vencerão e certamente não governarão dentro da bolha e falando para o espelho.
Bucha – o despotismo sinistro não pode vencer
Bucha, Irpin, Gostomel, Mariupol, Trostyanets: torna-se cada vez mais longa a lista das localidades da Ucrânia que, aos olhos da comunidade internacional, simbolizam o horror da guerra de agressão russa. Homens de mãos atadas, mortos com um tiro na cabeça; mulheres fuziladas só por terem ousado sair do porão onde se abrigavam; escolas e hospitais bombardeados.
O assassinato indiscriminado de civis é característico do procedimento dos russos nesta guerra, assim como a pilhagem infame: dentro de seus tanques de guerra, os invasores levaram joias, dinheiro, frigideiras e até brinquedos para as crianças na Rússia.
Após a liberação das localidades, as redes sociais foram inundadas com relatos de testemunhas e imagens perturbadoras. Um dos palcos da barbárie russa, bem menos conhecido em nível internacional do que Mariupol ou Bucha, é Peremoha, cerca de 50 quilômetros a leste de Kiev. Após um mês de ocupação russa, o lugarejo também está em grande parte destruído e saqueado. Porém sua história é especial, pois no passado já foi um símbolo dos crimes de tropas invasoras.
Até 1945, a cidadezinha se chamava Yadlivka. Durante a Segunda Guerra Mundial, soldados alemães a incendiaram completamente, numa bestial represália pelas investidas dos combatentes da resistência. Após a guerra, foi reconstruída e rebatizada Peremoha, que em ucraniano significa "vitória".
Seis décadas depois, como estudante, tive a oportunidade de participar de um projeto particular: ao longo de anos, em acampamentos de verão, jovens alemães e ucranianos reformaram juntos a escola de Peremoha. Esse sinal vivo de reconciliação me marcou para toda a vida, assim como a muitos outros de ambos os países.
Fazer coisas boas e processar juntos os crimes de gerações passadas é uma base particular para uma amizade verdadeira, para um olhar conjunto em direção ao futuro. É a melhor garantia de que os horrores do passado nunca mais se repetirão.
Fico feliz que hoje a Alemanha e a Ucrânia estejam unidas por uma amizade fundamentada em valores comuns, como democracia e liberdade. Apesar de toda a justificada crítica ucraniana aos questionáveis negócios alemães com a gás da Rússia, e aos anos de intolerável apaziguamento com o ditador de Moscou – ainda assim, no momento mais difícil a Alemanha está do lado da Ucrânia, seja acolhendo os refugiados ou fornecendo armas para autodefesa.
Oito décadas depois dos alemães, agora a guerra de devastação russa se abate sobre a Ucrânia. Exatamente como os alemães de então, os atuais invasores carecem de qualquer compaixão com a população civil. Para os alemães de então, os ucranianos eram sub-humanos. Para os russos de hoje, são inimigos mortais que cabe eliminar, pois seu anseio de liberdade e autodeterminação é percebido como uma ameaça pessoal, no contexto da imagem pós-imperialista russa.
Nas cabeças da maioria dos russos seu império perdido nunca deixou de existir. E, no âmbito desse raciocínio chocantemente retrógrado, o distanciamento ucraniano em direção ao Ocidente constitui alta traição. Segundo as enquetes mais recentes do independente Centro Levada, 86% da população é a favor da mobilização de seu exército para a Ucrânia.
Numa sociedade stalinista, como a ressuscitada sob o autocrata Vladimir Putin, os "inimigos do povo" sempre mereceram a pena capital. Os ucranianos sabiam disso já antes desta guerra – também em Peremoha.
Apenas 30 quilômetros a leste do lugarejo, num subúrbio de Kiev, pouco antes da Segunda Guerra, milhares de ucranianos foram sistematicamente fuzilados num bosque, sem qualquer acusação, e enterrados no local, só porque o regime de Josef Stalin os declarara como inimigos. Hoje, são traidores e inimigos todos os ucranianos que não aclamarem os invasores.
Na mesma medida em que são chocantes a matança e pilhagem indiscriminadas promovidas pelos invasores, é encorajadora a bem-sucedida defesa de Kiev e de outras cidades. Mesmo que prossiga a escalada de violência de Moscou, os parceiros ocidentais não devem hesitar em apoiar Ucrânia com todos os meios.
Pois a vitória dos ucranianos contra o despotismo russo seria uma chance para toda a Europa, aquela que se reinventa agora enquanto comunidade de valores, do lado dos ucranianos. O que está em jogo é o futuro pacífico do bloco: só com o fiasco dessa vergonhosa agressão, o culto russo à guerra revelará suas rachaduras.
Empregando propaganda em massa, há anos a agressiva ditadura de Moscou provoca uma verdadeira embriaguez bélica entre sua própria população. De maneira pérfida, o regime criminoso extrai sua legitimidade a partir do mito da vitória soviética contra a Alemanha nazista.
Enquanto os russos se imaginarem invencíveis, em seu delírio revisionista, não haverá paz duradoura na Europa. Pois enquanto nós, europeus, aprendemos com a Segunda Guerra Mundial que um horror daqueles não pode se repetir, jamais, na Rússia o dito "Mozhem povtorit!" (A gente pode repetir!) goza de grande popularidade. A alusão é a nada menos do que a tomada de Berlim.
Peremoha significa "vitória". Após a vitória contra o agressor Rússia, a localidade será reerguida. Se, pelo menos gerações mais tarde, os russos vão refletir sobre o destino desse lugarejo, como o fizeram os alemães, depende do que ainda restará do regime criminoso de Putin, sob os destroços desta guerra.
O assassinato indiscriminado de civis é característico do procedimento dos russos nesta guerra, assim como a pilhagem infame: dentro de seus tanques de guerra, os invasores levaram joias, dinheiro, frigideiras e até brinquedos para as crianças na Rússia.
Após a liberação das localidades, as redes sociais foram inundadas com relatos de testemunhas e imagens perturbadoras. Um dos palcos da barbárie russa, bem menos conhecido em nível internacional do que Mariupol ou Bucha, é Peremoha, cerca de 50 quilômetros a leste de Kiev. Após um mês de ocupação russa, o lugarejo também está em grande parte destruído e saqueado. Porém sua história é especial, pois no passado já foi um símbolo dos crimes de tropas invasoras.
Matías Tejeda |
Até 1945, a cidadezinha se chamava Yadlivka. Durante a Segunda Guerra Mundial, soldados alemães a incendiaram completamente, numa bestial represália pelas investidas dos combatentes da resistência. Após a guerra, foi reconstruída e rebatizada Peremoha, que em ucraniano significa "vitória".
Seis décadas depois, como estudante, tive a oportunidade de participar de um projeto particular: ao longo de anos, em acampamentos de verão, jovens alemães e ucranianos reformaram juntos a escola de Peremoha. Esse sinal vivo de reconciliação me marcou para toda a vida, assim como a muitos outros de ambos os países.
Fazer coisas boas e processar juntos os crimes de gerações passadas é uma base particular para uma amizade verdadeira, para um olhar conjunto em direção ao futuro. É a melhor garantia de que os horrores do passado nunca mais se repetirão.
Fico feliz que hoje a Alemanha e a Ucrânia estejam unidas por uma amizade fundamentada em valores comuns, como democracia e liberdade. Apesar de toda a justificada crítica ucraniana aos questionáveis negócios alemães com a gás da Rússia, e aos anos de intolerável apaziguamento com o ditador de Moscou – ainda assim, no momento mais difícil a Alemanha está do lado da Ucrânia, seja acolhendo os refugiados ou fornecendo armas para autodefesa.
Oito décadas depois dos alemães, agora a guerra de devastação russa se abate sobre a Ucrânia. Exatamente como os alemães de então, os atuais invasores carecem de qualquer compaixão com a população civil. Para os alemães de então, os ucranianos eram sub-humanos. Para os russos de hoje, são inimigos mortais que cabe eliminar, pois seu anseio de liberdade e autodeterminação é percebido como uma ameaça pessoal, no contexto da imagem pós-imperialista russa.
Nas cabeças da maioria dos russos seu império perdido nunca deixou de existir. E, no âmbito desse raciocínio chocantemente retrógrado, o distanciamento ucraniano em direção ao Ocidente constitui alta traição. Segundo as enquetes mais recentes do independente Centro Levada, 86% da população é a favor da mobilização de seu exército para a Ucrânia.
Numa sociedade stalinista, como a ressuscitada sob o autocrata Vladimir Putin, os "inimigos do povo" sempre mereceram a pena capital. Os ucranianos sabiam disso já antes desta guerra – também em Peremoha.
Apenas 30 quilômetros a leste do lugarejo, num subúrbio de Kiev, pouco antes da Segunda Guerra, milhares de ucranianos foram sistematicamente fuzilados num bosque, sem qualquer acusação, e enterrados no local, só porque o regime de Josef Stalin os declarara como inimigos. Hoje, são traidores e inimigos todos os ucranianos que não aclamarem os invasores.
Na mesma medida em que são chocantes a matança e pilhagem indiscriminadas promovidas pelos invasores, é encorajadora a bem-sucedida defesa de Kiev e de outras cidades. Mesmo que prossiga a escalada de violência de Moscou, os parceiros ocidentais não devem hesitar em apoiar Ucrânia com todos os meios.
Pois a vitória dos ucranianos contra o despotismo russo seria uma chance para toda a Europa, aquela que se reinventa agora enquanto comunidade de valores, do lado dos ucranianos. O que está em jogo é o futuro pacífico do bloco: só com o fiasco dessa vergonhosa agressão, o culto russo à guerra revelará suas rachaduras.
Empregando propaganda em massa, há anos a agressiva ditadura de Moscou provoca uma verdadeira embriaguez bélica entre sua própria população. De maneira pérfida, o regime criminoso extrai sua legitimidade a partir do mito da vitória soviética contra a Alemanha nazista.
Enquanto os russos se imaginarem invencíveis, em seu delírio revisionista, não haverá paz duradoura na Europa. Pois enquanto nós, europeus, aprendemos com a Segunda Guerra Mundial que um horror daqueles não pode se repetir, jamais, na Rússia o dito "Mozhem povtorit!" (A gente pode repetir!) goza de grande popularidade. A alusão é a nada menos do que a tomada de Berlim.
Peremoha significa "vitória". Após a vitória contra o agressor Rússia, a localidade será reerguida. Se, pelo menos gerações mais tarde, os russos vão refletir sobre o destino desse lugarejo, como o fizeram os alemães, depende do que ainda restará do regime criminoso de Putin, sob os destroços desta guerra.
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