quarta-feira, 24 de julho de 2019

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Ponte Foleys (Irlanda do Norte)

Coice na liturgia

A chapa está esquentando. Jair Bolsonaro, o presidente mais boquirroto da história da República, tem se superado ultimamente em sua especialidade de atacar adversários, ofender aliados, ignorar protocolos, diminuir instituições, promover crises, agredir minorias, comprar brigas gratuitas, humilhar seus próprios amigos, mentir com grande convicção, desdizer-se na maior cara dura e, de modo geral, escoicear a liturgia do cargo.

Formalmente, é um presidente. Tem ao seu redor pessoas para protegê-lo, transportá-lo, abrir-lhe portas, fazer seus ternos, cortar-lhe o cabelo, corrigir sua postura, preparar sua agenda, escrever seus discursos e, principalmente, orientá-lo sobre as grandes questões, a atitude a tomar sobre este ou aquele problema, a oportunidade de manifestar-se ou manter-se neutro diante de certos assuntos. Bolsonaro deve ter todos esses profissionais para servi-lo. Mas, ou são uns incompetentes ou é ele quem os desqualifica, passando por cima de seus conselhos e metendo os pés pelas mãos por conta própria.

Durante a campanha, quando batia boca com os adversários, dava-se um desconto. Campanha é assim mesmo, pode-se falar qualquer coisa, só os bobos acreditam. Mas, a partir do momento em que se enverga a faixa —e há uma foto do dia da posse, em que Bolsonaro, deslumbrado, aponta para a dita cuja—, impõe-se uma compostura. O cargo implica e exige respeito.

Apenas nos últimos dias, Bolsonaro chamou os nordestinos de “paraíbas”, rotulou um general como “melancia” —verde por fora, vermelho por dentro— e tachou um importante órgão de pesquisa, que nem deve saber para o que serve, de divulgar dados “mentirosos”. Mas, nesta, levou um troco: foi acusado de falar como se estivesse “em uma conversa de botequim”.

Como não se dá ao respeito como presidente, Bolsonaro logo não poderá exigir que seus presididos o tenham por ele.
Ruy Castro

Escalada da intolerância

A liberdade de expressão é um valor fundamental para definir o grau de civilização de uma sociedade e de seu ordenamento democrático. Quanto maior, mais avançado é o estágio civilizatório. E quanto mais cerceada, maior o déficit democrático de um país. O Brasil avançou extraordinariamente neste requisito com a Constituição de 1988 mas, nos últimos tempos, temos assistido retrocessos inaceitáveis, em decorrência da ação ensandecida de extremistas de direita ou de esquerda.

Relembremos alguns fatos.

Em 2017 o então senador Cristóvam Buarque foi chamado de golpista e hostilizado por radicais de esquerda, quando do lançamento do seu livro “Mediterrâneos invisíveis”, na Universidade Federal de Minas Gerais. Na mesma noite o ex-senador teve de ser escoltado pela Polícia Militar, quando ia proferir uma palestra, tal a agressividade dessa militância. Motivo de tanto ódio: Cristóvam votou favorável ao impeachment de Dilma.

Dois anos antes, o compositor Chico Buarque de Holanda, um patrimônio da cultura brasileira, foi hostilizado por um grupo de antipetistas em uma movimentada esquina do Leblon, no Rio de Janeiro, por causa de suas posições políticas.

Se puxarmos pela memória, vamos nos lembrar das agressões à blogueira cubana Yoani Sánchez, hostilizada por militantes de esquerda defensores da ditadura cubana, desde que pisou no solo brasileiro. Em São Paulo, foi impedida de proferir uma palestra na Livraria Cultura como mostra o potente e incisivo filme de Rafael Bottino e Peppe Siffredi: A Viagem de Yoani.

Troca-se o sinal, mas a intolerância é a mesma. Nem mesmo ambientes de dor e consternação são respeitados. O ex-ministro Guido Mantega foi alvo da fúria de antipetistas, quando sua esposa, já falecida, estava internada no Hospital Albert Einstein para se tratar de câncer. Essa raiva cega também se manifestou em frente ao Hospital Sírio Libanês, onde estava internada Marisa Letícia, esposa de Lula, falecida em 2017.

Vamos aos dias de hoje. Na semana passada a colunista Miriam Leitão, uma das vozes mais respeitadas do jornalismo brasileiro, e o cientista político Sérgio Abranches foram a bola da vez. Por pressão de agrupamento de extrema-direita, foi suspensa a palestra que iam proferir em uma feira de livros em Jaraguá do Sul.

A independência de Miriam incomoda aos dois extremos. Em 2017 foi chamada de terrorista por sindicalistas vinculados ao PT em um voo comercial. Ironia da história: terrorista também foi o termo utilizado por seus torturadores quando foi presa durante a ditadura militar.

Miriam voltou a ser estigmatizada na última nessa sexta feira, dessa vez pelo presidente da República. Sem compromisso com a verdade, Jair Bolsonaro inventou que ela ia participar da guerrilha do Araguaia, quando foi presa em 1971. Não satisfeito, o presidente disse que a jornalista mentiu quando afirmou que foi torturada, durante a ditadura, fato fartamente documentado na justiça militar.

As palavras do presidente serviram de estímulo aos seus radicais. Rapidamente sua tropa de choque poluiu as redes sociais com a divulgação de uma foto, dizendo que a moça que aparece com uma metralhadora ao lado de um militar é Miriam Leitão. Puro fake. A foto é de bancárias do Bradesco sendo treinadas por militares nos anos de chumbo para reagirem à assalto a bancos praticados por agrupamentos de esquerda.

O pano de fundo da escalada da intolerância é a radicalização política instalada no Brasil nos anos do lulopetismo e alimentada pelo atual presidente. Exaustivamente Bolsonaro demonstra ter dificuldade para conviver com o contraditório. Seu cacoete autoritário joga mais lenha na fogueira quando condena oponentes e ameaça cercear a liberdade de expressão por meio do dirigismo estatal da produção cinematográfica do país.

Sempre houve na esquerda correntes mais extremadas, refratárias aos valores democráticos e adepta de uma concepção segundo a qual a violência é a parteira da história. Da mesma maneira sempre houve uma direita raivosa e de valores autoritários. Desde a democratização ela estava incubada, mas saiu do armário nos últimos anos, com o advento da maior crise ética da história do nosso país.

A depender dos dois extremos, novos episódios de violência e de intolerância acontecerão. Sua escalada só arrefecerá se a política voltar a se impor como a forma mais civilizada da sociedade equacionar conflitos e estabelecer consensos.

A inércia do erro

Há casos famosos de líderes que preferiram matar o mensageiro a reconhecer os próprios erros. Em 335 a.C., o imperador persa Dario III, em guerra com Alexandre Magno, da Macedônia, ao ser alertado sobre os possíveis erros de sua estratégia pelo mercenário grego Charidemus, resolveu estrangulá-lo num ataque de fúria. Acabou derrotado. Também é famoso o caso do almirante inglês Clowdisley Shovell, que havia derrotado os franceses no Mediterrâneo e naufragou a sudoeste da Inglaterra, em meio a um nevoeiro, porque não quis reconhecer que seus cálculos de navegação estavam errados, perdendo cinco navios e dois mil homens. Preferiu enforcar o subalterno.

É mais ou menos o que está fazendo o presidente Jair Bolsonaro com o diretor do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), Ricardo Magnus Osório Galvão, a quem acusou de estar “a serviço de alguma ONG” por divulgar dados que mostram o grande aumento do desmatamento na Amazônia. Funcionário de carreira, com uma longa folha de serviços prestados, o pesquisador rebateu as acusações e reafirmou a veracidade dos dados sobre desmatamento divulgados pelo Inpe, cuja política de transparência permite o acesso completo aos dados e adota metodologia reconhecida internacionalmente.

De acordo com números divulgados pelo Inpe no início deste mês, o desmatamento na Amazônia Legal brasileira atingiu 920,4 km² em junho, um aumento de 88% em comparação com o mesmo período do ano passado. Áreas da Amazônia que deveriam ter “desmatamento zero” perderam território equivalente a seis cidades de São Paulo em três décadas. Fora das áreas protegidas, a Amazônia perdeu 39,8 milhões de hectares em 30 anos, o que representa 19% sobre toda a floresta natural não demarcada que existia em 1985, uma perda equivalente a 262 vezes a área do município de São Paulo. Nas áreas protegidas, a perda acumulada foi de 0,5%. É óbvio que a nova política para o meio ambiente já é um fracasso.

Houve protestos de instituições como a Academia Brasileira de Ciência e a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). “Críticas sem fundamento a uma instituição científica, que atua há cerca de 60 anos e com amplo reconhecimento no país e no exterior, são ofensivas, inaceitáveis e lesivas ao conhecimento científico”, diz a nota da SBPC. Segundo a entidade, dados podem ser questionados em bases científicas e não por motivações políticas e ideológicas.

Bolsonaro argumenta que, antes de divulgar dados sobre desmatamento no Brasil, o diretor do Inpe deveria, no mínimo, procurar o ministro da Ciência e Tecnologia, Marcos Pontes, ao qual está subordinado, para informar antecipadamente o conteúdo que seria divulgado. Afirmou que está acostumado com “hierarquia e disciplina” e questionou a divulgação de dados sem seu prévio conhecimento. Segundo Bolsonaro, pode haver algum equívoco na divulgação das informações ambientais sem um crivo prévio do governo, sob o risco de “um enorme estrago para o Brasil”.

Políticas públicas e indicadores sobre a realidade brasileira, porém, devem ter transparência e serem acessíveis ao público, pois são elementos fundamentais para análises e pesquisas. O problema é outro. O presidente da República toma decisões na base do “achismo”, desconsiderando indicadores científicos, sem levar em conta que a inércia do erro num país de dimensões continentais como o Brasil, que tem uma escala muito grande, pode ser muito desastrosa.

É o que está acontecendo com o desmatamento, em razão do estímulo ao avanço do agronegócio em áreas de proteção ambiental e das medidas adotadas contra a política de fiscalização do Ibama. Os números divulgados pelo Inpe mostram o tamanho do estrago que o governo agora quer varrer para debaixo do tapete.

Na verdade, no Palácio do Planalto, enquanto sobram decisões intempestivas, falta planejamento. O mesmo fenômeno pode vir a ocorrer no trânsito, por exemplo, com as mudanças propostas em relação às multas — não vamos nem considerar as cadeirinhas de bebê e os cintos de segurança. O endurecimento das regras não ocorreu por acaso, mas em razão do impacto dos acidentes de trânsito nos indicadores de mortes violentas e nos custos do sistema de saúde pública.

O desmantelamento dos conselhos que subsidiavam as políticas públicas, a pretexto de enxugá-los e dar mais agilidade às decisões do governo, tem o objetivo de eliminar o contraditório na tomada de decisões. Entretanto, tende a aumentar a margem de erro e gerar contenciosos desnecessários com a sociedade, o que pode ter efeito exatamente ao contrário do objetivo de alcançar mais eficiência.

Pensamento do Dia


A ilusão da ilha

Então, Bolsonaro cismou com as altas taxas cobradas dos turistas que visitam Fernando de Noronha. Chamou de roubo os $ 73,00, por noite, por pessoa (independente da idade), e os $ 106,00 para acessar os parques nacionais na Ilha (passe válido por 10 dias). Na mesma semana (que semana, presidente!!) despachou Ricardo Sales, seu (de)limitado ministro do Meio-Ambiente, para vistoriar a ilha.

Não sairá coisa boa dessa visita. Não há que se imaginar boa fé de um presidente caranguejo. Anda para trás, pros lados, nunca para a frente. Bolsonaro não está apreensivo com o futuro do arquipélago de Fernando de Noronha, e suas 21 ilhas, declarado pela Unesco, em 2001, Patrimônio Natural da Humanidade. Também não está aflito com o bolso dos turistas.

Com Bolsonaro, Noronha corre perigo. O Brasil corre perigo. Ricardo Salles anunciou providências "em estudos" que trarão prejuízos irreparáveis à preservação da ilha. Já se fala em rever o valor das taxas, liberar a pesca de sardinha nas áreas de reserva, e autorizar voos noturnos, causando impacto inevitável ao ecosistema.


O frenesi de Bolsonaro nunca foi a preservação da vida. Faz questão de duvidar publicamente dos índices de desmatamento no Brasil e defende a ocupação da Amazonia, como se não houvesse amanhã. No caso de Noronha, o capitão declarou-se azombado com o que se paga para entrar no Território.

Interessante é que deu-se conta do fato um dia depois da visita ao Planalto do “apóstolo” terrivelmente evangélico Valdemiro Santiago, fundador da Igreja Mundial do Poder de Deus, “investidor” da Ilha, juntamente com seus irmãos e sua mulher, a Bispa Franciléia.

Valdemiro é parça do presidente. Levou Bolsonaro para marchar com Jesus, teve seu chapéu de R$ 5 mil atirado para a galera pelo capitão, responde a processos e mantém um “templo” de sua igreja em Noronha. Amigos acima de tudo. Família acima de todos.

Fernando de Noronha não está segura nas mãos de Bolsonaro. As taxas são necessárias para se preservar inigualável paraíso brasileiro. Devem ser revertidas para a ilha, seus 6 mil habitantes e o turismo. Não reduzidas. À exceção das praias bem preservadas pelos parques nacionais, sob a direção do ICMBIO, e apesar das preços dos ingressos, a cidade parece abandonada. Ruas esburacadas, esgoto a céu aberto, lixeiras quebradas.

Na semana em que o presidente bateu recorde de frases infelizes e preconceituosas, as ameaças a Noronha acabaram quase esquecidas. O capitão desprezou nordestinos, atentou contra jornalistas, mentiu sobre desmatamento e fome no Brasil, e afirmou que vai praticar nepotismo, sim senhor.

Grotesco, tosco, mentiroso contumaz, Bolsonaro ainda desdenhou o eleitor: "Quem diz que não vai votar mais em mim, paciência. É igual aquele maridão malandro. Está lá, felicíssimo com a mulher seis meses depois do casamento. Em um dia lá, a mulher queima o ovo dele. Ovo na frigideira, pra deixar bem claro [risos]. Aí pronto, já quer acabar com o casamento. Não tem cabimento isso aí. Vai ter coisas que eu vou desagradar vocês”.

Nem precisava avisar, Capitão.

Plano de Bolsonaro é anunciar que os problemas do país não existem

Quando estava prestes a completar cem dias no cargo, Jair Bolsonaro desabafou: “Meu Deus, o que eu fiz para merecer isso? É só problema”. Cem dias depois, o presidente decidiu pegar um atalho para se livrar dos males do país. Passou a anunciar que eles não existem.

No território governado por Bolsonaro, não falta comida para ninguém, o racismo quase não existe e o trabalho infantil não atrapalha. Não há exagero no uso de agrotóxicos e o desmatamento é coisa do passado.

O presidente superou os limites da fantasia na sexta-feira, ao dizer que a fome não é um problema no país. “Falar que se passa fome no Brasil é uma grande mentira. Passa-se mal, não come bem. Aí, eu concordo. Agora, passar fome, não”, sentenciou.

Ou Bolsonaro não sabe o que é a fome ou resolveu distorcer a realidade descaradamente. Informações do próprio governo mostram que 15 pessoas morrem de desnutrição por dia e que quase meio milhão de crianças sofrem com o problema.

Um governante só finge que uma questão não existe quando não sabe como resolvê-la ou não tem interesse em enfrentá-la. Quando era deputado, Bolsonaro afirmava que a solução para a fome, a miséria e a violência era esterilizar os mais pobres para evitar que eles tivessem filhos. O presidente tentou mudar, na própria sexta-feira, o que dissera com tanta convicção. Até admitiu que “alguns passam fome”, mas emendou: “não é culpa minha, vem de trás”.

Naquele mesmo dia, Bolsonaro quis negar um levantamento oficial que mostrava uma disparada do desmatamento em julho. Para ele, a devastação medida pelos órgãos estatais é uma ilusão. Os dados fariam parte de uma conspiração de ONGs.

Bolsonaro também já tentou convencer o país de que o trabalho infantil não prejudica crianças e declarou à apresentadora Luciana Gimenez que o racismo é “coisa rara”.

O presidente acredita que basta negar os problemas para não ser incomodado. Assim, ele pode se dedicar a temas importantíssimos como a qualidade dos filmes nacionais.

Novos (?) tempos

A pobreza antes era considerada obra de injustiça. O mundo moderno considera a pobreza incapacidade
Eduardo Galeano

A face oculta de Bolsonaro

Nos 200 dias de governo do capitão reformado e deputado federal aposentado, além do Bolsonaro óbvio das declarações sobre o Nordeste reduzido a “paraíba” e da insistência descabida em fazer o filho caçula embaixador em Washington, há outro, cuidadosamente escondido para evitar perdas. Por falta de espaço nesta página e excesso de exposição de seu acervo de frases infelizes, convém tentar lançar uma luz sobre o que ele, subordinados, prosélitos e fanáticos não conseguem mais esconder de sua face oculta.

Aos 23 dias iniciais do mandato, Bolsonaro disse a um repórter da agência Bloomberg em Davos, na Suíça: “Se, por acaso, ele (o filho Flávio) errou e isso ficar provado, eu lamento como pai, mas ele vai ter que pagar o preço por essas ações que não podemos aceitar”. De volta ao Brasil, contudo, tirou a máscara de “isentão” (definição preferida de outro filho, Carlos, para desqualificar quem ouse discordar após concordar com algo) para fazer exatamente o contrário. Após decisão do presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Dias Toffoli, proibindo o compartilhamento de dados da Receita Federal, do Banco Central e do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), com Ministério Público Federal (MPF) e Polícia Federal (PF), ele até tentou escapulir de comentar, argumentando: “Somos Poderes harmônicos independentes. Te respondi? Ele é presidente do STF. Somos independentes, você acha justo o Dias Toffoli criticar um decreto meu? Ou um projeto aprovado e sancionado? Se eu não quisesse combater a corrupção, não teria aceitado o Moro como ministro”. Mas terminou deslizando em truísmos e platitudes, ao afirmar: “Pelo que eu sei, pelo o (sic) que está na lei, dados repassados, dependendo para quê, devem ter decisão judicial. E o que é mais grave na legislação. Os dados, uma vez publicizados (sic), contaminam o processo”. O quê?

O feroz cobrador das falhas do PT não explicou por que o caçula interrompeu o inquérito, em vez de provar inocência.

A revista Crusoé, do site O Antagonista, revelou que clientes da banca da mulher de Toffoli, Roberta Rangel, do qual este foi sócio, foram procurados pela Receita para explicar depósitos. Dias antes um colega por quem o presidente do STF tem manifestado apreço (e vice-versa), Gilmar Mendes, comparara o MPF e a PF à Gestapo, polícia política nazista, após averiguações sobre a contabilidade da banca de Sérgio Bermudes, de quem sua mulher, Guiomar, é sócia. Essa descoberta pode lançar um véu de suspeição sobre a decisão de Toffoli de suspender todos os inquéritos (segundo consta, 6 mil) de lavagem de dinheiro no País. Mas não altera a origem da decisão, tomada a partir da defesa de Flávio Bolsonaro.


Pode ser mera coincidência, até prova em contrário, mas o fato é que recentemente, a pretexto de reclamar de uma decisão do STF criminalizando a homofobia, o presidente, do alto de sua prerrogativa de indicar os membros do colegiado, queixou-se de não haver ali um ministro “terrivelmente evangélico”. Na segunda vez o fez saudando um dos ministros numa reunião com vários membros de titulares na Esplanada dos Ministérios, o advogado-geral da União, André Mendonça. Na última vez em que apelou para a expressão, originalmente usada pela ministra da Família, Damares Alves – uma impropriedade, pois “terrível” é definido no Houaiss como algo “que infunde ou causa terror” –, em 11 de julho, disse que ele é cotado para preencher essa lacuna, 16 meses antes da prevista aposentadoria do decano, Celso de Mello. Não seria o caso de indagar se é hora de tratar do assunto antes de ser aprovada a reforma da Previdência, tida e havida como a primeira providência a ser tomada para destravar a economia e reduzir as mais relevantes taxas de desemprego?

Aos 46 anos, há 19 na Advocacia-Geral da União (AGU), Mendonça está longe de ser popular como Moro e Bretas.

De Mendonça só se sabe que dirigiu o Departamento de Patrimônio Público e Probidade Administrativa da AGU, indicado pelo presidente do STF, antes de migrar para a Controladoria-Geral da União, no governo Temer (!), representando a AGU em acordos de leniência com empresas acusadas de corrupção. Dali foi promovido a advogado-geral por Bolsonaro, que o anunciou em novembro. Segundo fontes ouvidas pelo UOL, o presidente do STF já trabalha pela aprovação dele na sabatina do Senado, caso seja indicado para o STF.

Sua conexão com o PT, do qual o ex-advogado-geral foi subordinado em toda a carreira, é revelada em artigo publicado na Folha de Londrina de 30 de outubro de 2002, resgatado pela repórter Constança Rezende, do UOL. No texto Mendonça não cita o nome de Lula, mas afirma, três dias após a vitória do petista, que o triunfo “enchia os corações do povo de esperanças”. Além disso, escreveu à época que as urnas haviam revelado “o primeiro presidente eleito do povo e pelo povo”. “O fato é notório e não admite discussões e assim o coração do povo se enche de esperança, o mundo nos assiste com um misto de surpresa e admiração, embora alguns confiem desconfiando, mas certamente convictos que o Brasil cresceu e seu povo amadureceu, restando consolidada a democracia não só porque o novo presidente foi eleito pelo povo, mas porque saiu do próprio povo”. Criacionista, ele diz respeitar quem não é, mas no texto revela dogmas sobre os quais “não admite discussões”. Tolerante até a página 2.

Pode-se dizer que o também pastor presbiteriano nunca foi ingrato. Mesmo já estando sob ordens de Bolsonaro, foi o único chefe de uma instituição importante relacionada ao Direito a assinar parecer defendendo o decreto do padrinho para impedir críticas a seus pares (além de censurar a Crusoé) e a compra por este de lagostas e vinhos premiados para os banquetes da casa. Só em 16 meses o Brasil saberá se, de fato, a espécie não evoluiu e se Darwin, afinal, tinha ou não razão.