terça-feira, 13 de outubro de 2020

Assim caminha o Brasil...

 


A pergunta de Alice


Para Stella Maris Rezende, fã das palavras desenganadas

.Alice levanta a mão e pergunta qual a diferença entre Política e política. O professor, que está ouvindo, mas não está lendo, não entende a qual diferença ela se refere e pede que se explique. A aluna carrega em Política, fazendo um som grave no “Po”, e abranda em política, que sai quase como “pulítica”. Os demais alunos fazem coro ao professor, ninguém pesca nada. Ela é dessas que, vira e mexe, levam uma anotação na caderneta: “atrapalha os colegas”, “conversa demais”, “ri alto”, mas, quando chegam as provas, acumula seus oito, poucos, nove, alguns, e dez, em enxurrada.

O professor é seu fã. Sabe que ela capta as coisas no ar, que fará provas espetaculares e que, além de tudo e por sorte, é bem-humorada, sociável, tem o que chamam de inteligência emocional. Ele acredita que, depois de cumprida a vida escolar, Alice será uma mulher pronta a ajudar o país a sepultar, sem o esquecer, o passado escravocrata e misógino.

Não lhe sai da cabeça uma história que passou a contar em reunião de professores e, no entusiasmo, também em mesa de bar. Certa vez perguntou aos alunos se algum sabia o significado da palavra “jucundo”. Era uma preparação para a leitura de um texto no qual a palavra apareceria; um texto antigo, é certo. A sala ficou em polvorosa. Logo, grupinhos aqui e ali cochichavam entre si e riam. O professor com quem todos se abriam perguntou qual o motivo da risada. O garoto levado do fundo da sala, sempre ele, inteligente, mas desinteressado dos estudos, falou que devia ter a ver com “cu fundo” ou “cu junto”. A risada foi tremenda, até o professor riu, e não foi diferente com Alice.

Serenada a algazarra, o professor pediu que o arruaceiro lesse a definição no Houaiss. O menino puxou o ar como se inspirasse a contrariedade e leu sem gaguejar: “que manifesta, que denota alegria; feliz, jovial, vivo; que se apresenta ou transcorre de modo agradável, suave, aprazível”. Os alunos se olharam, e Alice não se conteve: “Professor, me desculpe, mas nunca ouvi uma palavra tão triste quanto essa, ela não pode significar alegria, deve ser por isso que deixou de ser usada.” Na visão do professor, essa história mostrava uma Alice perspicaz e sensível, algo além da inteligência celebrada nas avaliações escolares. Os demais professores concordavam com o colega, não por conta da história, e os amigos do bar não entendiam o que uma coisa tinha a ver com a outra.

Mas agora ela fazia uma pergunta estranha. O professor insistiu no pedido de uma explicação adicional. Alice disse então que a diferença estava em que a primeira era com P maiúsculo e a segunda com minúsculo. A sala em peso soltou um ai, um ai jucundo e um pouco irônico, até aborrecido. Era como se dissessem: “Ora, Alice, por que você não passou logo a visão?”

O professor contornou o zunzum dos jovens, elogiou a pergunta e começou a falar sobre substantivos até levar a conversa para os negócios do Estado, da Polis grega, de onde se origina a palavra política. Tendo chegado ao campo da história, mostrou como era importante e nobre a política, e aí não sabemos se ele queria dizer Política ou política, pois não enfrentou a questão. Terminada a explanação, os alunos estavam com seus olhares perdidos, pareciam mais ignorantes do que quando nem passava por suas cabeças esse assunto.

Alice pensou, pensou, coçou o queixo, enrolou os cabelos com o indicador e, então, abriu uma folha grande em que sopas de letrinhas se espalhavam. Setas mostravam que o partido A, inimigo do B num estado, era coligado a ele em outro estado. Em alguns lugares longe dos grandes centros — por exemplo, ali, onde, no passado, Graciliano Ramos atuou como prefeito, — o partido à direita da direita fazia acordos com o da esquerda sem exageros.

O professor sentiu-se acuado, não que a aluna apontasse alguma bobagem no que ele dissera, mas, mesmo assim, sentia-se prensado contra a parede — contra o muro foi a imagem que se formou em sua cabeça. Aproximou-se de Alice, pediu a atenção de todos e foi muito categórico, ainda que falasse suavemente, quase sussurrando: “Não deu certo, moçada, até aqui não deu certo. Mas é preciso insistir, a gente aprenderá que o importante é a política com P maiúsculo. A tarefa é de vocês, a quem peço desculpas”.

Saiu da sala de aula com as mãos no bolso e, pesando sobre as costas, uma tristeza grande e barulhenta, cujo significado, ele tinha certeza, não constava dos dicionários. Estava triste feito a palavra jucundo nos ouvidos de Alice.

 Alexandre Brandão

A deusa Têmis morre de rir

A mentira tem perna curta. O desembargador Kassio Nunes Marques certamente não imaginava seu curriculum vitae e seus escritos vasculhados e questionados pela imprensa. Teria ouvido palestras que apareceram como curso de pós-doutorado. De repente, seu conceito escapou pela janela da dissonância.

A menos que o juiz piauiense indicado para a vaga de Celso de Melo no STF tenha se inspirado no ensaio de Brecht sobre “cinco maneiras de dizer a verdade”. A verdade de cada um. O momento poderia ser usado para reforçar sua bagagem acadêmica.

Ocorre que o STF é a nossa mais alta corte, a ser composto por quadros de boa envergadura. É inimaginável pensar que teria dito que, para ser membro do Supremo, não é necessário ser advogado, mas pessoa de caráter ilibado. Deve ter se valido desse artigo da CF: 

"Art. 101. O Supremo Tribunal Federal compõe-se de onze Ministros escolhidos dentre cidadãos com mais de trinta e cinco e menos de sessenta e cinco anos de idade, de notável saber jurídico e reputação ilibada.

Parágrafo único. Os Ministros do Supremo Tribunal Federal serão nomeados pelo Presidente da República, depois de aprovada a escolha pela maioria absoluta do Senado Federal.”

Nessa polêmica, entra o caso de Cândido Barata Ribeiro, médico, baiano e prefeito do Rio de Janeiro de 1892 a 1893. Foi ministro por 10 meses e 4 dias.


Ora, o mundo mudou. Ninguém pode ignorar o que seja “notável saber jurídico”. Que se adquire no curso de Direito. Uma exceção a esta obviedade enfureceria o tribuno da Advocacia, Rui Barbosa. A sapiência é, por excelência, o valor matricial do juiz, bem mais que domínio de conhecimento. O uso do saber e um exaustivo exercício de hermenêutica jurídica. Lembre-se a lição de Francis Bacon (Ensaios, 1597): “o Juiz deve preparar o caminho para uma justa sentença, como Deus costuma abrir seu caminho elevando os vales e abaixando montanhas”.<

A justa sentença é a luz que guia a decisão do juiz. Infelizmente, muitas vezes, essa luz é tênue ou está apagada. Sinaliza que algo mexeu com a intenção originária do juiz. Por isso, Têmis, a deusa da Justiça, nem sempre faz bom uso da balança e da espada.

Sob essa abordagem, parece fora de tom dizer que, mais adiante, será inserido na mais alta Corte do país um ministro “terrivelmente evangélico”. Por que a opção por identidade religiosa? Não há ministro religioso no Supremo ou os que lá estão são todos “católicos”? O presidente joga no lixo o preceito do Cristo: “daí a César o que é de Cesar e a Deus o que é de Deus”.

Se assim for, as seitas afro-brasileiras poderão reivindicar um representante, sob a indignação dos evangélicos, que elegem bancadas no Congresso. Não haverá surpresa se o dízimo virar contribuição legal para confirmação religiosa. O doador receberá uma carteira de "dizimista" e a promessa de um lugar privilegiado na fila dos Céus.

O desembargador Kassio não calculou o tamanho da confusão. Dados de sua trajetória questionados, verdades inconvenientes no Senado, decisões que poderão arranhar sua imagem, polêmica com base bolsonarista e a maldição evangélica. A deusa Têmis, com uma venda sobre os olhos, deve estar morrendo de rir.

Dia a dia da criança

Dia a dia nega-se às crianças o direito de ser criança. Os fatos, que zombam desse direito, ostentam seus ensinamentos na vida cotidiana. O mundo trata os meninos ricos como se fossem dinheiro, para que se acostumem a atuar como o dinheiro atua. O mundo trata os meninos pobres como se fossem lixo, para que se transformem em lixo. E os do meio, os que não são ricos nem pobres, conserva-os atados à mesa do televisor, para que aceitem, desde cedo, como destino, a vida prisioneira. Muita magia e muita sorte têm as crianças que conseguem ser crianças
Eduardo Galeano

Faltam educacionistas

O Brasil tem alguns dos mais renomados educadores do mundo e um dos sistemas educacionais de pior qualidade. A explicação é que não temos educacionistas. Educadores definem métodos, educacionistas determinam metas, estratégias, políticas. O educador é como o cientista que descobre a vacina, o educacionista é o sanitarista que desenha a logística para a distribuição da vacina.

Para o educacionista, a educação é o vetor do progresso. Ele acredita que o Brasil precisa escolher uma estratégia para atingir excelência educacional e assegurar que, desde a primeira infância, todo brasileiro tenha acesso à educação com a máxima qualidade. A estratégia educacionista passa pelo envolvimento do governo federal na educação de base. Toda criança deve ser primeiro brasileira, não municipal.

Para alguns educacionistas, o caminho seria o governo federal transferir a cada família o mesmo valor necessário para que ela busque a escola de seus filhos. Para outros, essa solução não traria igualdade. Por isso, há quem proponha aumentar o valor do Fundeb por criança, deixando cada prefeito administrar as escolas de seu município. E há os que acreditam que esse caminho não quebre a desigualdade entre cidades, porque a educação exige professores bem-formados e capacidade gerencial que não estão disponíveis na cidade.



Um terceiro grupo de educacionistas defende a substituição paulatina dos frágeis sistemas municipais por um robusto sistema nacional único: uma carreira federal de professores com requisito mínimo de formação, dedicação, avaliação e plano de remuneração, padrões nacionais para a qualidade de edificações e equipamentos.

Para obter excelência, o custo de cada aluno deve ser de cerca de R$ 15 mil por ano, que permite pagar um salário de R$ 15 mil por mês ao professor, em salas com 30 alunos, e financiar todos os demais gastos da escola. Se a implantação desse sistema ocorresse ao ritmo de 200 novas cidades por ano, o sistema nacional se completaria em 25 a 30 anos. Supondo que se mantenha o número de 50 milhões de alunos, e assumindo um crescimento econômico de 2% ao ano, com a manutenção da atual carga fiscal, o custo total, ao final dos 25 anos, não passaria de 6,6% do PIB. Essa alternativa é necessária e possível.

Quatro fatores dificultam que o Brasil aceite o educacionismo. Nossos líderes não veem educação como vetor do progresso; a mentalidade nacional não tem o sentimento de que o Brasil é vocacionado para a produção intelectual com padrões de qualidade internacional; nossa consciência sofre resquícios da escravidão e aceita a ideia de que a escola não deve ter a mesma qualidade para todos; e o imediatismo brasileiro não quer esperar os resultados de uma estratégia que demora décadas para chegar a todo o país.

Por isso, é mais fácil ter bons educadores do que educacionistas de sucesso.