sexta-feira, 25 de abril de 2025
Trump, prejuízo além das tarifas
Desde que Trump anunciou suas tarifas, o debate central é sobre as perdas do Brasil. Perdas na exportação de aço e alumínio, em potencial.
É natural que o debate siga esse curso, o comércio mundial está em vias de regredir e isto implica empobrecimento e desemprego.
No entanto, não se pode reduzir o impacto da ascensão de Trump a uma queda no comércio internacional. As perdas são de uma dimensão maior e mais profunda.
Não contabilizamos ainda o grande impacto na política ambiental do planeta. A saída dos EUA do Acordo de Paris, firmado em 2015, tira da mesa de negociação um dos atores principais e arrisca a levar alguns coadjuvantes, como a Argentina e El Salvador.
As perdas são de toda a humanidade, mas afetam especialmente o Brasil. Desde seu primeiro discurso no exterior, Lula afirmou em Sharm El-Sheikh que o Brasil iria assumir sua responsabilidade no combate às mudanças climáticas, reduzindo desmatamento e queimadas.
Nesse impulso de recuperar a importância na política ambiental, perdida no período Bolsonaro, o Brasil decidiu abrigar a COP-30, que será realizada em Belém.
Só em termos de investimentos para organizar o evento, o País gastará em torno de R$ 5 bilhões.
O problema é que ele acontecerá num clima de baixas expectativas.
Os EUA não devem participar. O nível de emissões continua alto, assim como a perda da superfície gelada da Antártica, segundo o National Snow Data Center. O aumento de temperatura já é de 1,5°C, meta prevista para 2030 pelo Acordo de Paris.
Os recursos para ajudar países pobres a mitigar os efeitos e se adaptar ao aquecimento global já não fluíam. Será orçado em mais de US$ 1 trilhão o valor desse esforço. Como conseguir o dinheiro sem os EUA e com a Europa voltada para reforçar sua capacidade militar, precisamente pela resistência de Trump à Otan?
Na vida dos brasileiros, as coisas também pioram. Milhares de imigrantes já estão expatriados e muitos deles voltam para cá, tendo de reiniciar a vida. O turismo ficou mais áspero. Há quem tema entrar com sua agenda telefônica nos EUA. Existe uma tendência de repressão às grandes universidades americanas. Há cerca de 1 milhão de estudantes estrangeiros no país, inclusive brasileiros.
Alguns que participam de movimentos pró-Palestina foram expulsos. De todas as partes do mundo, estudantes são enviados para os EUA por causa da qualidade do ensino e da atmosfera de livre circulação de ideias.
Se a expressão de ideias é de certa forma punida, qual a vantagem de se deslocar para os EUA? Censura e medo existem em muitos países e, em certos casos, os alunos são mandados para o exterior para se beneficiarem de uma livre troca de ideias.
Há uma outra dimensão na qual o cotidiano das pessoas também é afetado. Duas deputadas brasileiras solicitaram visto para os EUA. São mulheres trans e o visto no passaporte as classifica como do gênero masculino.
Os EUA, a partir de Trump, têm uma visão clara de reconhecer apenas o gênero masculino ou feminino. É uma decisão presidencial com o apoio dos seus eleitores. Embora não se concorde, o direito de definir essa questão internamente é irretocável.
No entanto, os passaportes emitidos pelo Brasil refletem a legislação brasileira e deveriam ser respeitados tal como foram impressos. É voluntarismo querer definir uma política de gênero para toda a humanidade. Os processos de escolha são feitos em cada país e devem ser respeitados.
Em síntese, se nos limitarmos aos importantes aspectos comerciais, deixaremos de ver grande parte das dificuldades que Trump traz ao mundo.
O enfraquecimento do universo científico americano terá influência geral. A retração da política humanitária, como mostrei no artigo anterior no Estadão ( O dedo de Trump no mapa da fome, 11/4, A5), produz mortes, porque os EUA eram responsáveis por um terço da ajuda mundial contra a fome.
Estamos apenas nos primeiros meses do segundo governo Trump. Ele já fala em reeleição e alguns de seus apoiadores mencionam a necessidade de ultrapassar a democracia.
Possivelmente é um projeto autoritário, que pode ser chamado de não liberal ou qualquer outro nome.
Mark Lilla, numa entrevista a este jornal, afirmou que a alma americana está doente. É tarefa urgente determinar os contornos dessa “doença” e encontrar os meios de deter a marcha autoritária, seja pela ação popular, resistência dos intelectuais ou mesmo da própria justiça americana.
O mundo pode colaborar discretamente. Os chineses já contestaram a visão de que são camponeses que lucram com os EUA. Os latino-americanos certamente não aceitarão que seu espaço seja definido como quintal dos EUA. Desde a posse de Trump, o mundo corre atrás do prejuízo.
É natural que o debate siga esse curso, o comércio mundial está em vias de regredir e isto implica empobrecimento e desemprego.
No entanto, não se pode reduzir o impacto da ascensão de Trump a uma queda no comércio internacional. As perdas são de uma dimensão maior e mais profunda.
Não contabilizamos ainda o grande impacto na política ambiental do planeta. A saída dos EUA do Acordo de Paris, firmado em 2015, tira da mesa de negociação um dos atores principais e arrisca a levar alguns coadjuvantes, como a Argentina e El Salvador.
E não se trata apenas de um retrocesso nos esforços mundiais, mas também de uma regressão na política interna, desde a sede por petróleo contida no slogan drill, baby, drill, a detalhes como a volta dos canudinhos de plástico, tudo na esteira da anulação das normas e desmontagem dos órgãos de controle.
As perdas são de toda a humanidade, mas afetam especialmente o Brasil. Desde seu primeiro discurso no exterior, Lula afirmou em Sharm El-Sheikh que o Brasil iria assumir sua responsabilidade no combate às mudanças climáticas, reduzindo desmatamento e queimadas.
Nesse impulso de recuperar a importância na política ambiental, perdida no período Bolsonaro, o Brasil decidiu abrigar a COP-30, que será realizada em Belém.
Só em termos de investimentos para organizar o evento, o País gastará em torno de R$ 5 bilhões.
O problema é que ele acontecerá num clima de baixas expectativas.
Os EUA não devem participar. O nível de emissões continua alto, assim como a perda da superfície gelada da Antártica, segundo o National Snow Data Center. O aumento de temperatura já é de 1,5°C, meta prevista para 2030 pelo Acordo de Paris.
Os recursos para ajudar países pobres a mitigar os efeitos e se adaptar ao aquecimento global já não fluíam. Será orçado em mais de US$ 1 trilhão o valor desse esforço. Como conseguir o dinheiro sem os EUA e com a Europa voltada para reforçar sua capacidade militar, precisamente pela resistência de Trump à Otan?
Na vida dos brasileiros, as coisas também pioram. Milhares de imigrantes já estão expatriados e muitos deles voltam para cá, tendo de reiniciar a vida. O turismo ficou mais áspero. Há quem tema entrar com sua agenda telefônica nos EUA. Existe uma tendência de repressão às grandes universidades americanas. Há cerca de 1 milhão de estudantes estrangeiros no país, inclusive brasileiros.
Alguns que participam de movimentos pró-Palestina foram expulsos. De todas as partes do mundo, estudantes são enviados para os EUA por causa da qualidade do ensino e da atmosfera de livre circulação de ideias.
Se a expressão de ideias é de certa forma punida, qual a vantagem de se deslocar para os EUA? Censura e medo existem em muitos países e, em certos casos, os alunos são mandados para o exterior para se beneficiarem de uma livre troca de ideias.
Há uma outra dimensão na qual o cotidiano das pessoas também é afetado. Duas deputadas brasileiras solicitaram visto para os EUA. São mulheres trans e o visto no passaporte as classifica como do gênero masculino.
Os EUA, a partir de Trump, têm uma visão clara de reconhecer apenas o gênero masculino ou feminino. É uma decisão presidencial com o apoio dos seus eleitores. Embora não se concorde, o direito de definir essa questão internamente é irretocável.
No entanto, os passaportes emitidos pelo Brasil refletem a legislação brasileira e deveriam ser respeitados tal como foram impressos. É voluntarismo querer definir uma política de gênero para toda a humanidade. Os processos de escolha são feitos em cada país e devem ser respeitados.
Em síntese, se nos limitarmos aos importantes aspectos comerciais, deixaremos de ver grande parte das dificuldades que Trump traz ao mundo.
O enfraquecimento do universo científico americano terá influência geral. A retração da política humanitária, como mostrei no artigo anterior no Estadão ( O dedo de Trump no mapa da fome, 11/4, A5), produz mortes, porque os EUA eram responsáveis por um terço da ajuda mundial contra a fome.
Estamos apenas nos primeiros meses do segundo governo Trump. Ele já fala em reeleição e alguns de seus apoiadores mencionam a necessidade de ultrapassar a democracia.
Possivelmente é um projeto autoritário, que pode ser chamado de não liberal ou qualquer outro nome.
Mark Lilla, numa entrevista a este jornal, afirmou que a alma americana está doente. É tarefa urgente determinar os contornos dessa “doença” e encontrar os meios de deter a marcha autoritária, seja pela ação popular, resistência dos intelectuais ou mesmo da própria justiça americana.
O mundo pode colaborar discretamente. Os chineses já contestaram a visão de que são camponeses que lucram com os EUA. Os latino-americanos certamente não aceitarão que seu espaço seja definido como quintal dos EUA. Desde a posse de Trump, o mundo corre atrás do prejuízo.
Uma nova luta de classes se formando
Uma questão central, hoje, tem que ver com a montagem de novos instrumentos para a plena compreensão do que se apresenta diante de nós. Isto é, uma realidade marcada pela crise ambiental, pelas mutações que abalam o mundo do trabalho e pelos impasses vividos pela Democracia Representativa.
Assim, será preciso repensar muitos aspectos da prática política anterior, daquele período que vai dos socialistas utópicos ao chamado socialismo real.
Separar as partes vivas das partes mortas. Justiça social, Democracia como componente do processo civilizatório e Ética são valores inegociáveis; são as partes vivas do passado. Contrariamente ao que propugnava Maquiavel, não penso que os representantes do Estado tenham que ter uma lógica ou uma Ética diferente daquela do cidadão comum. Talvez tenhamos aí um bom caminho para justamente aproximar as ruas das instâncias de decisão.
Agora é preciso trabalhar as questões novas ou as partes do presente, como o necessário aprofundamento da representação democrática (que não pode ser confundida com a criação de assembleias gerais permanentes), o alastramento do trabalho por conta própria e o entendimento de que há uma revolução tecnológica em curso (automação, robotização, inteligência artificial), e que tudo isso é irreversível. A Inteligência Artificial (IA), por exemplo, já atingiu um estágio em que deixa de ter uma dimensão complementar ou de apoio às atividades industriais para adquirir um caráter de força capaz de substituir parte do trabalho humano diretamente produtivo. Na primeira Revolução Industrial, uma parte da capacidade muscular do homem era transferida para a máquina. Na atual, uma parte da sua criatividade é acumulada nas máquinas.
Formas de gestão mais ousadas também precisam ser implementadas, entre elas a autogestão. Outra possibilidade é revolucionar o modelo de propriedade das empresas, por intermédio de um sistema de ações, de propriedade de cada trabalhador, como Friedrich Engels sugeriu ainda no final do século XIX.
Além disso, caberá aos sindicatos traçar novas linhas de ação frente a todas essas mudanças, o que não tem acontecido com muita frequência até agora, tanto no que tange aos novos contratos de trabalho quanto no tocante à regulamentação da Inteligência Artificial. Algumas lutas sindicais travadas na indústria automobilística dos Estados Unidos começam a apontar para algo próximo a uma compreensão de que é necessário se dotar de uma visão coletiva do trabalho, inclusive com a tomada de consciência frente aos desequilíbrios ecológicos provocados pela indústria. A Organização Internacional do Trabalho (OIT) já vem se manifestando a respeito da necessidade de os países se valerem de normas sobre o trabalho nas plataformas digitais.
Toda tecnologia depende de uma correlação de forças. A Inteligência Artificial, por exemplo, pode ser usada para a obtenção de grandes avanços científicos como também pode ser empregada na vigilância das pessoas dentro das grandes corporações. Uma Inteligência Artificial a serviço da proteção política do grande capital já pode estar se tornando uma realidade. Assim sendo, uma nova luta de classes pode estar apenas começando.
Não estamos mais na fase artesanal da indústria, aquela que teve como expressão o movimento anarquista. Como tampouco estamos mais na fase do chão da fábrica, aquela que teve, por sua vez, como expressão maior o comunismo da Terceira Internacional. Estamos, isso sim, entrando em uma nova fase, a da Revolução da Automação, da Inteligência Artificial e da Robótica. Trata-se de construir uma política nova a partir dela. As cooperativas e o trabalho por conta própria terão, forçosamente, um importante papel nesse processo. Esse é o momento de o trabalhador ser o dono do seu trabalho e dos instrumentos de trabalho.
Em artigo datado de 2019, o economista e militante marxista grego Yanis Varoufakis escreveu, a propósito das novas formas de organizar o mundo do trabalho:
“Imaginemos que as ações fossem como um direito a voto, que não se pode comprar, nem vender. Assim como ao entrar na universidade recebe-se o carnê da biblioteca, umas equipes novas nas empresas receberiam uma única ação por pessoa que garantisse o direito a emitir um voto em eleições abertas a todos os acionistas, nas quais se decidirão todos os assuntos da corporação: desde as questões de gestão e planejamento até a distribuição de lucros líquidos e bonificações”.
Está mais do que na hora de o Campo Democrático reinventar as suas formas de intervir na realidade, para melhor transformá-la.
Assim, será preciso repensar muitos aspectos da prática política anterior, daquele período que vai dos socialistas utópicos ao chamado socialismo real.
Separar as partes vivas das partes mortas. Justiça social, Democracia como componente do processo civilizatório e Ética são valores inegociáveis; são as partes vivas do passado. Contrariamente ao que propugnava Maquiavel, não penso que os representantes do Estado tenham que ter uma lógica ou uma Ética diferente daquela do cidadão comum. Talvez tenhamos aí um bom caminho para justamente aproximar as ruas das instâncias de decisão.
Agora é preciso trabalhar as questões novas ou as partes do presente, como o necessário aprofundamento da representação democrática (que não pode ser confundida com a criação de assembleias gerais permanentes), o alastramento do trabalho por conta própria e o entendimento de que há uma revolução tecnológica em curso (automação, robotização, inteligência artificial), e que tudo isso é irreversível. A Inteligência Artificial (IA), por exemplo, já atingiu um estágio em que deixa de ter uma dimensão complementar ou de apoio às atividades industriais para adquirir um caráter de força capaz de substituir parte do trabalho humano diretamente produtivo. Na primeira Revolução Industrial, uma parte da capacidade muscular do homem era transferida para a máquina. Na atual, uma parte da sua criatividade é acumulada nas máquinas.
Formas de gestão mais ousadas também precisam ser implementadas, entre elas a autogestão. Outra possibilidade é revolucionar o modelo de propriedade das empresas, por intermédio de um sistema de ações, de propriedade de cada trabalhador, como Friedrich Engels sugeriu ainda no final do século XIX.
Além disso, caberá aos sindicatos traçar novas linhas de ação frente a todas essas mudanças, o que não tem acontecido com muita frequência até agora, tanto no que tange aos novos contratos de trabalho quanto no tocante à regulamentação da Inteligência Artificial. Algumas lutas sindicais travadas na indústria automobilística dos Estados Unidos começam a apontar para algo próximo a uma compreensão de que é necessário se dotar de uma visão coletiva do trabalho, inclusive com a tomada de consciência frente aos desequilíbrios ecológicos provocados pela indústria. A Organização Internacional do Trabalho (OIT) já vem se manifestando a respeito da necessidade de os países se valerem de normas sobre o trabalho nas plataformas digitais.
Toda tecnologia depende de uma correlação de forças. A Inteligência Artificial, por exemplo, pode ser usada para a obtenção de grandes avanços científicos como também pode ser empregada na vigilância das pessoas dentro das grandes corporações. Uma Inteligência Artificial a serviço da proteção política do grande capital já pode estar se tornando uma realidade. Assim sendo, uma nova luta de classes pode estar apenas começando.
Não estamos mais na fase artesanal da indústria, aquela que teve como expressão o movimento anarquista. Como tampouco estamos mais na fase do chão da fábrica, aquela que teve, por sua vez, como expressão maior o comunismo da Terceira Internacional. Estamos, isso sim, entrando em uma nova fase, a da Revolução da Automação, da Inteligência Artificial e da Robótica. Trata-se de construir uma política nova a partir dela. As cooperativas e o trabalho por conta própria terão, forçosamente, um importante papel nesse processo. Esse é o momento de o trabalhador ser o dono do seu trabalho e dos instrumentos de trabalho.
Em artigo datado de 2019, o economista e militante marxista grego Yanis Varoufakis escreveu, a propósito das novas formas de organizar o mundo do trabalho:
“Imaginemos que as ações fossem como um direito a voto, que não se pode comprar, nem vender. Assim como ao entrar na universidade recebe-se o carnê da biblioteca, umas equipes novas nas empresas receberiam uma única ação por pessoa que garantisse o direito a emitir um voto em eleições abertas a todos os acionistas, nas quais se decidirão todos os assuntos da corporação: desde as questões de gestão e planejamento até a distribuição de lucros líquidos e bonificações”.
Está mais do que na hora de o Campo Democrático reinventar as suas formas de intervir na realidade, para melhor transformá-la.
O bom Papa Francisco
Morreu um homem bom, um homem com a coragem de mostrar a bondade e de lutar por ela: o Papa Francisco. Só espero que estas palavras, tão distantes do Vaticano, se diluam nas palavras de quem o conheceu. Acho que era este o espírito de Francisco: por que não?
Queria chegar a toda a gente — e chegou.
Sei de pessoas que ele trouxe para a Igreja Católica. Não era esse o dever dele? Cumpriu-o em beleza. Tornou a Igreja atraente — até como lugar onde as idéias se combatem, à procura da luz que só a discussão traz.
É um grande erro dizer que a Igreja não muda. Muda, mas devagar, com cuidado, com segurança, com respeito.
Francisco foi um humanista, um inovador e um espírito aberto, numa instituição que aprendeu a desconfiar dessas qualidades e a ser recompensada por essa desconfiança.
Conseguiu ser eleito e, uma vez eleito, teve a coragem e a honestidade de lutar dentro da Igreja, que é um sinal de confiança no futuro dela, para não dizer uma garantia.
Era um Papa insatisfeito, frustrado, desiludido pelo mundo. Mas não desistiu dele. Não se refugiou. Falou. Lutou. Enfrentou. Não se deixou consolar pela própria bondade. Não ficou deslumbrado. Não se inibiu. Não foi fingido.
Bem sei que os últimos papas, pelo menos desde João XXIII, têm sido todos muito bons. (Deveríamos estudar melhor o processo de eleição dos papas.) Mas este era mesmo diferente. Era do povo. Era da rua. Era um Francisco. Era um argentino. Era um dos nossos.
O fato de ter inimigos só diz bem dele. É esse o preço inevitável de lutar pela felicidade humana: é um preço que os inimigos dele também pagam.
Como é que um rebelde como o Francisco conseguiu ser eleito como Papa? O mérito é tanto dele como da própria Igreja.
Tudo tem sido muito bem conduzido. A imagem da Igreja como distante e ossificada tornou-se uma memória distante e ossificada.
O que o Papa Francisco nos trouxe foi isto: foi a felicidade. Foi a hipótese de felicidade, a esperança de felicidade.
É muito.
Miguel Esteves Cardoso
Queria chegar a toda a gente — e chegou.
Sei de pessoas que ele trouxe para a Igreja Católica. Não era esse o dever dele? Cumpriu-o em beleza. Tornou a Igreja atraente — até como lugar onde as idéias se combatem, à procura da luz que só a discussão traz.
É um grande erro dizer que a Igreja não muda. Muda, mas devagar, com cuidado, com segurança, com respeito.
Francisco foi um humanista, um inovador e um espírito aberto, numa instituição que aprendeu a desconfiar dessas qualidades e a ser recompensada por essa desconfiança.
Conseguiu ser eleito e, uma vez eleito, teve a coragem e a honestidade de lutar dentro da Igreja, que é um sinal de confiança no futuro dela, para não dizer uma garantia.
Era um Papa insatisfeito, frustrado, desiludido pelo mundo. Mas não desistiu dele. Não se refugiou. Falou. Lutou. Enfrentou. Não se deixou consolar pela própria bondade. Não ficou deslumbrado. Não se inibiu. Não foi fingido.
Bem sei que os últimos papas, pelo menos desde João XXIII, têm sido todos muito bons. (Deveríamos estudar melhor o processo de eleição dos papas.) Mas este era mesmo diferente. Era do povo. Era da rua. Era um Francisco. Era um argentino. Era um dos nossos.
O fato de ter inimigos só diz bem dele. É esse o preço inevitável de lutar pela felicidade humana: é um preço que os inimigos dele também pagam.
Como é que um rebelde como o Francisco conseguiu ser eleito como Papa? O mérito é tanto dele como da própria Igreja.
Tudo tem sido muito bem conduzido. A imagem da Igreja como distante e ossificada tornou-se uma memória distante e ossificada.
O que o Papa Francisco nos trouxe foi isto: foi a felicidade. Foi a hipótese de felicidade, a esperança de felicidade.
É muito.
Miguel Esteves Cardoso
Suicídio coletivo
Se continuarmos golpeando a base dessa coluna instável sobre a qual estamos apoiados, a própria espécie humana estará ameaçada. No ano passado, emitimos 54,6 bilhões de toneladas de CO₂ equivalente na atmosfera, um aumento de quase 1% em relação ao ano anterior. A concentração atmosférica de CO₂ não só está aumentando, como está aumentando de forma cada vez mais acentuada.
Hugh Montgomery, diretor do Centro de Saúde e Desempenho Humano da University College London
Tarefas para nos salvar do extremismo
A extrema direita contemporânea é a força política mais perigosa do mundo desde o fim da União Soviética. No interior dos países, põe em risco a liberal-democracia e a garantia dos direitos humanos (especialmente dos grupos mais vulneráveis), ao mesmo tempo em que reduz a possibilidade de um pacto internacional baseado na cooperação geopolítica e no regramento multilateral do comércio. Os extremistas têm um projeto claro e não reduzirão suas pretensões se puderem passar como um trator sobre seus inimigos. Será necessário ter uma estratégia para enfrentá-los, alimentada por muita energia e comunicação.
Antes de examinar os elementos da estratégia contra a extrema direita, vale ressaltar a necessidade da energia e da comunicação. Um dos mais importantes cientistas políticos da história, o americano Robert Dahl, dizia que tão importante quanto a quantidade de apoio é a intensidade das preferências. Os extremistas não são a maioria no mundo, mas manifestam suas posições com máxima força, como um exército em nome de uma causa. Quem quiser combatê-los terá de igualar ao máximo esse ímpeto.
Um dos elementos que aumentam a intensidade de um movimento político é o papel das lideranças. Os líderes do extremismo contemporâneo, tais quais seus congêneres da década de 1930 (Mussolini e Hitler), sabem energizar parcela importante da população, que fica constantemente mobilizada. A luta contra a extrema direita precisará contar também com lideranças capazes de entusiasmar e inspirar a maioria das pessoas, para que elas resistam aos cânticos fascistas que têm ganhado cada vez mais força.
Só que não bastam lideranças fortes e inspiradoras para energizar os cidadãos pelo mundo afora. É fundamental lutar no campo dos valores. Aliás, foi isso que os ideólogos da extrema direita perceberam antes dos outros: a democracia tinha se tornado muito morna para grande parte da população e seria preciso dar um novo sentido à vida das pessoas. Descobrir quais ideias e sentimentos podem se contrapor com sucesso aos extremistas é uma das perguntas mais relevantes para os democratas responderem nos próximos anos.
Quaisquer estratégias que sejam escolhidas para combater o extremismo dependem, ademais, de boa comunicação. Este é outro terreno onde a vantagem está do lado da extrema direita. Em parte, por seus méritos de ter encontrado novas linguagens para lidar com o século XXI, marcadas pela rapidez dos enunciados, a escolha de poucas e fortes ideias a comunicar um modelo maniqueísta, além do uso intensivo da tecnologia.
Há uma outra parte nessa história, contudo. A vitória comunicativa da extrema direita está igualmente vinculada à forma como funcionam as principais redes sociais, dominadas por grupos monopolistas que produzem algoritmos capazes de delimitar fortemente o universo no qual nos comunicamos. A liberdade de escolha e de confronto é restrita num modelo tecnológico como esse, ao contrário do que pensam alguns analistas que ainda acreditam que a internet é uma ágora grega. Pior do que isso: a grande maioria dos donos das big techs não quer a democracia e, por isso, têm apoiado grupos extremistas e/ou a autocratas por meio da interferência nos próprios meios que comandam.
Juntando os dois pontos da batalha comunicativa, o desafio é adequar a comunicação às linguagens do século XXI e lutar contra o modelo que predomina hoje nas redes sociais. O desempenho no jogo comunicativo, no entanto, dependerá de conteúdos presentes nas estratégias contra a extrema direita.
A estratégia de enfrentamento do extremismo passa por cinco tarefas. A primeira é se contrapor às suas políticas, mostrando de forma clara e cotidiana os seus danos. É preciso realçar os erros cometidos nas políticas negacionistas, na saúde ou no meio ambiente, como ocorreu na época da covid-19 e depois arrefeceu com o passar do tempo - e agora crescem as mortes por sarampo nos Estados Unidos e poucos se levantam contra isso.
É imprescindível ressaltar o efeito perverso da destruição da administração pública, o que leva inexoravelmente ao enfraquecimento na oferta de serviços e bens públicos, como a redução do acesso dos mais pobres à educação ou ao sistema de seguridade social. Ainda, gritar bem alto contra a barbeiragem na política econômica trumpista, que não deve ser tratada nem como estratégia de negociação nem como mero capricho narcisista do presidente Trump. Sua origem e resultado advêm da fragilidade da extrema direita em produzir políticas públicas.
Eis um caminho central na estratégia de defesa da democracia: colar na extrema direita a imagem de incompetência que causa sofrimento em muita gente, com mortes, perdas de emprego e abandono. Trata-se de um mantra que deveria ser falado todos os dias por quem combate os extremistas.
A segunda tarefa dessa estratégia é fortalecer e acionar os mecanismos de “checks and balances” (freios e contrapesos) no controle dos governantes e partidos extremistas. A democracia precisa proteger a sociedade do arbítrio e se autoproteger de quem quer derrubá-la. Esse é um trabalho contínuo que envolve instituições políticas, como o Legislativo e o Judiciário, como também estruturas sociais, econômicas e internacionais que podem frear a insanidade totalitária do projeto da extrema direita.
Assim, organizações da sociedade civil, universidades, empresas, lideranças culturais do universo pop e até o papa devem ser mobilizadas continuamente porque os extremistas destroem o regime democrático como cupins (ou traças), comendo cada pedacinho dia após dia. Pode até haver um momento de tomada do poder como golpe, mas isso só ocorrerá se os diques democráticos forem rompidos muito tempo antes.
Entender a angústia de uma parcela enorme da população que tem acreditado e votado em lideranças de extrema direita, mas cujos valores não são extremistas, é uma terceira tarefa central na estratégia de combate ao extremismo. Houve muitas mudanças na sociedade contemporânea e novas carências surgiram. Obviamente é necessário ter políticas para combater a pobreza e as desigualdades no seu sentido mais clássico. Todavia, há preocupações concentradas em grupos que se sentem abandonados e ressentidos, bem como existem novas insatisfações difusas que precisam ser mais bem compreendidas. O trabalho aqui é de conversar mais com esses estratos populacionais e pensar em arranjos diferentes de intervenção estatal e/ou organização econômica.
Políticas públicas baseadas em evidências, boa governança e princípios humanistas constituem um quarto antídoto ao extremismo contemporâneo. A qualidade da gestão pública é um alicerce essencial, só que insuficiente se não for direcionado às demandas sociais que hoje não estão sendo respondidas pelo Estado e pelo modelo econômico. Melhorar a ação governamental, entregando os bens, direitos e serviços desejados pela população, é das maiores armas em prol da democracia.
O rol de tarefas se completa com a montagem de alianças amplas nos planos político e social. Não há uma maioria ou uma hegemonia prévia contra a extrema direita. A luta contra ela vai exigir muita articulação e diálogo entre grupos que não são do mesmo partido e/ou professam visões ideológicas com alguma diferenciação. Encontrar os interesses comuns, alimentar a tolerância e a capacidade de aprender com o outro são elementos centrais na construção de um bloco contra o extremismo, capaz de controlar governantes extremistas, de ganhar eleições e, sobretudo, de propor uma nova visão de futuro.
A luta contra o extremismo é, primeiramente, internacional, pois ele se espalhou pelo mundo e tem grande força em países muito relevantes na ordem mundial. Além disso, a dimensão global está no fato de que será necessário fazer alianças e criar modelos de cooperação entre as nações para resistir às políticas destruidoras montadas por governos de extrema direita. Do mesmo modo que houve Internacionais socialistas e hoje há uma Internacional ultradireitista (ou fascista), é preciso construir uma Internacional pela democracia, que seria caracterizada pela amplitude de forças que estão dentro dela, unidas contra as barbáries políticas contemporâneas.
A forma pela qual a extrema direita se expressa em cada país tem singularidades. Desse modo, o fortalecimento da energia e da comunicação antiextremista, bem como o cumprimento das cinco tarefas estratégicas listadas anteriormente, têm tonalidades diferentes em cada lugar. Seguindo essa linha de raciocínio, os democratas brasileiros precisam encontrar sua forma de atuação nesse processo de defesa da democracia e de um modelo justo e produtivo de desenvolvimento.
Muitas perguntas concluem essa reflexão olhando para o Brasil. Que lideranças podemos formar para lutar contra o extremismo? Quais valores podem se contrapor às ideias extremistas e conquistar mais corações e mentes dentro de um novo modelo de comunicação? Como construir políticas públicas capazes de aumentar a crença da população no sistema? De que maneira alianças políticas e sociais amplas e plurais podem se tornar mais perenes na luta contra a extrema direita, e não serem apenas um slogan de campanha? Uma resposta coletiva a tais questões é essencial para que o país não embarque no futuro em alguma aventura perversa e totalitária.
Antes de examinar os elementos da estratégia contra a extrema direita, vale ressaltar a necessidade da energia e da comunicação. Um dos mais importantes cientistas políticos da história, o americano Robert Dahl, dizia que tão importante quanto a quantidade de apoio é a intensidade das preferências. Os extremistas não são a maioria no mundo, mas manifestam suas posições com máxima força, como um exército em nome de uma causa. Quem quiser combatê-los terá de igualar ao máximo esse ímpeto.
Um dos elementos que aumentam a intensidade de um movimento político é o papel das lideranças. Os líderes do extremismo contemporâneo, tais quais seus congêneres da década de 1930 (Mussolini e Hitler), sabem energizar parcela importante da população, que fica constantemente mobilizada. A luta contra a extrema direita precisará contar também com lideranças capazes de entusiasmar e inspirar a maioria das pessoas, para que elas resistam aos cânticos fascistas que têm ganhado cada vez mais força.
Só que não bastam lideranças fortes e inspiradoras para energizar os cidadãos pelo mundo afora. É fundamental lutar no campo dos valores. Aliás, foi isso que os ideólogos da extrema direita perceberam antes dos outros: a democracia tinha se tornado muito morna para grande parte da população e seria preciso dar um novo sentido à vida das pessoas. Descobrir quais ideias e sentimentos podem se contrapor com sucesso aos extremistas é uma das perguntas mais relevantes para os democratas responderem nos próximos anos.
Quaisquer estratégias que sejam escolhidas para combater o extremismo dependem, ademais, de boa comunicação. Este é outro terreno onde a vantagem está do lado da extrema direita. Em parte, por seus méritos de ter encontrado novas linguagens para lidar com o século XXI, marcadas pela rapidez dos enunciados, a escolha de poucas e fortes ideias a comunicar um modelo maniqueísta, além do uso intensivo da tecnologia.
Há uma outra parte nessa história, contudo. A vitória comunicativa da extrema direita está igualmente vinculada à forma como funcionam as principais redes sociais, dominadas por grupos monopolistas que produzem algoritmos capazes de delimitar fortemente o universo no qual nos comunicamos. A liberdade de escolha e de confronto é restrita num modelo tecnológico como esse, ao contrário do que pensam alguns analistas que ainda acreditam que a internet é uma ágora grega. Pior do que isso: a grande maioria dos donos das big techs não quer a democracia e, por isso, têm apoiado grupos extremistas e/ou a autocratas por meio da interferência nos próprios meios que comandam.
Juntando os dois pontos da batalha comunicativa, o desafio é adequar a comunicação às linguagens do século XXI e lutar contra o modelo que predomina hoje nas redes sociais. O desempenho no jogo comunicativo, no entanto, dependerá de conteúdos presentes nas estratégias contra a extrema direita.
A estratégia de enfrentamento do extremismo passa por cinco tarefas. A primeira é se contrapor às suas políticas, mostrando de forma clara e cotidiana os seus danos. É preciso realçar os erros cometidos nas políticas negacionistas, na saúde ou no meio ambiente, como ocorreu na época da covid-19 e depois arrefeceu com o passar do tempo - e agora crescem as mortes por sarampo nos Estados Unidos e poucos se levantam contra isso.
É imprescindível ressaltar o efeito perverso da destruição da administração pública, o que leva inexoravelmente ao enfraquecimento na oferta de serviços e bens públicos, como a redução do acesso dos mais pobres à educação ou ao sistema de seguridade social. Ainda, gritar bem alto contra a barbeiragem na política econômica trumpista, que não deve ser tratada nem como estratégia de negociação nem como mero capricho narcisista do presidente Trump. Sua origem e resultado advêm da fragilidade da extrema direita em produzir políticas públicas.
Eis um caminho central na estratégia de defesa da democracia: colar na extrema direita a imagem de incompetência que causa sofrimento em muita gente, com mortes, perdas de emprego e abandono. Trata-se de um mantra que deveria ser falado todos os dias por quem combate os extremistas.
A segunda tarefa dessa estratégia é fortalecer e acionar os mecanismos de “checks and balances” (freios e contrapesos) no controle dos governantes e partidos extremistas. A democracia precisa proteger a sociedade do arbítrio e se autoproteger de quem quer derrubá-la. Esse é um trabalho contínuo que envolve instituições políticas, como o Legislativo e o Judiciário, como também estruturas sociais, econômicas e internacionais que podem frear a insanidade totalitária do projeto da extrema direita.
Assim, organizações da sociedade civil, universidades, empresas, lideranças culturais do universo pop e até o papa devem ser mobilizadas continuamente porque os extremistas destroem o regime democrático como cupins (ou traças), comendo cada pedacinho dia após dia. Pode até haver um momento de tomada do poder como golpe, mas isso só ocorrerá se os diques democráticos forem rompidos muito tempo antes.
Entender a angústia de uma parcela enorme da população que tem acreditado e votado em lideranças de extrema direita, mas cujos valores não são extremistas, é uma terceira tarefa central na estratégia de combate ao extremismo. Houve muitas mudanças na sociedade contemporânea e novas carências surgiram. Obviamente é necessário ter políticas para combater a pobreza e as desigualdades no seu sentido mais clássico. Todavia, há preocupações concentradas em grupos que se sentem abandonados e ressentidos, bem como existem novas insatisfações difusas que precisam ser mais bem compreendidas. O trabalho aqui é de conversar mais com esses estratos populacionais e pensar em arranjos diferentes de intervenção estatal e/ou organização econômica.
Políticas públicas baseadas em evidências, boa governança e princípios humanistas constituem um quarto antídoto ao extremismo contemporâneo. A qualidade da gestão pública é um alicerce essencial, só que insuficiente se não for direcionado às demandas sociais que hoje não estão sendo respondidas pelo Estado e pelo modelo econômico. Melhorar a ação governamental, entregando os bens, direitos e serviços desejados pela população, é das maiores armas em prol da democracia.
O rol de tarefas se completa com a montagem de alianças amplas nos planos político e social. Não há uma maioria ou uma hegemonia prévia contra a extrema direita. A luta contra ela vai exigir muita articulação e diálogo entre grupos que não são do mesmo partido e/ou professam visões ideológicas com alguma diferenciação. Encontrar os interesses comuns, alimentar a tolerância e a capacidade de aprender com o outro são elementos centrais na construção de um bloco contra o extremismo, capaz de controlar governantes extremistas, de ganhar eleições e, sobretudo, de propor uma nova visão de futuro.
A luta contra o extremismo é, primeiramente, internacional, pois ele se espalhou pelo mundo e tem grande força em países muito relevantes na ordem mundial. Além disso, a dimensão global está no fato de que será necessário fazer alianças e criar modelos de cooperação entre as nações para resistir às políticas destruidoras montadas por governos de extrema direita. Do mesmo modo que houve Internacionais socialistas e hoje há uma Internacional ultradireitista (ou fascista), é preciso construir uma Internacional pela democracia, que seria caracterizada pela amplitude de forças que estão dentro dela, unidas contra as barbáries políticas contemporâneas.
A forma pela qual a extrema direita se expressa em cada país tem singularidades. Desse modo, o fortalecimento da energia e da comunicação antiextremista, bem como o cumprimento das cinco tarefas estratégicas listadas anteriormente, têm tonalidades diferentes em cada lugar. Seguindo essa linha de raciocínio, os democratas brasileiros precisam encontrar sua forma de atuação nesse processo de defesa da democracia e de um modelo justo e produtivo de desenvolvimento.
Muitas perguntas concluem essa reflexão olhando para o Brasil. Que lideranças podemos formar para lutar contra o extremismo? Quais valores podem se contrapor às ideias extremistas e conquistar mais corações e mentes dentro de um novo modelo de comunicação? Como construir políticas públicas capazes de aumentar a crença da população no sistema? De que maneira alianças políticas e sociais amplas e plurais podem se tornar mais perenes na luta contra a extrema direita, e não serem apenas um slogan de campanha? Uma resposta coletiva a tais questões é essencial para que o país não embarque no futuro em alguma aventura perversa e totalitária.
A revolução Francisco
No momento em que a fé dos cristãos se transformou em cristianismo — primeiro, quando ganhou o estatuto de religião oficial do Império Romano, depois com quatro concílios que combateram as heresias e definiram o essencial do credo cristão, nos séculos IV e V —, muito se ganhou e muito se perdeu. O que se ganhou foi a Igreja que chegou até aos nossos dias, com o seu imenso poder, a sua dimensão planetária e a sua capacidade disciplinadora. O que se perdeu, com frequência excessiva, foi a fidelidade à mensagem de Jesus e à letra dos Evangelhos, que são textos revolucionários sobre tesouros, campos, lírios e aves, mas também sobre espadas, espinhos, sangue e cruz, que nenhum catecismo consegue realmente domesticar.
Há, por isso, uma tensão histórica entre aquilo que são as parábolas de Jesus em estado natural e aquilo que são os dogmas disciplinadores da Igreja. As parábolas abrem o texto a múltiplas interpretações. Os dogmas tentam fechá-lo. Percebe-se porquê: não há instituições fortes sem regras claras; nem pode haver cristianismo sem ordem e uma doutrina vigiada. Infelizmente, com o correr do tempo, qualquer religião demasiado ordenada corre o risco de se petrificar, transformando-se numa mera manifestação cultural, estéril e ritualizada. O Evangelho de Mateus tem um excelente nome para isso: “Sepulcros caiados.” São “formosos por fora, mas por dentro cheios de ossos de mortos e toda a espécie de imundície” (Mt 23, 27). As pessoas vão à missa por hábito social, batizam-se e casam-se em cerimônias religiosas, mas sem estarem realmente comprometidas com a dimensão evangélica da Igreja. Esta dimensão nunca desapareceu ao longo de dois mil anos, mas por vezes tornou-se muito difícil encontrá-la, sobretudo entre as paredes do Vaticano.
Existe, por isso, um cristianismo cultural, que serve perfeitamente para algumas pessoas se agarrarem a ele enquanto reflexo do mundo que conhecem desde a infância e no qual desejam continuar a viver. E existe um cristianismo essencial, visceral, que se agarra às entranhas do Evangelho e procura levá-lo a sério. Jorge Bergoglio foi um cristão visceral. Escolheu em 2013 ficar com o nome de Francisco de Assis — uma daquelas figuras que ao longo da História obrigaram a Igreja a dar guinadas evangélicas no seu percurso — e o melhor que se pode dizer é que viveu 12 anos à altura do nome que elegeu.
Não se trata aqui de opor católicos conservadores a católicos progressistas e proclamar que Francisco era o inimigo n.º1 dos primeiros e o grande Papa dos segundos. Isso seria caricaturar o seu pontificado. Além de a dicotomia conservador/progressista só servir hoje para distrair dos maiores desafios da Igreja, convém notar que foi o conservador Bento XVI que teve a coragem de abdicar e que, ao humanizar o papado, abriu caminho à ascensão do progressista Francisco, um argentino leve, desbocado e cheio de humor.
Francisco foi a maior revolução na Igreja desde o Concílio Vaticano II, sem mudar a doutrina. O casamento homossexual não passou a ser permitido, nem as mulheres passaram a ser ordenadas. Mas Francisco mudou o olhar e o tom sobre as mulheres e sobre a comunidade LGBT graças à sua saudável obsessão com o “todos, todos, todos”. Ele não fez nada de mais, no sentido em que é impossível ler os Evangelhos e sair de lá a achar que a Igreja deve ser uma colecção de crentes engomadinhos. Mas ninguém foi tão inclusivo antes dele. Parecendo que não é nada, no que à fé cristã diz respeito é quase tudo.
Há, por isso, uma tensão histórica entre aquilo que são as parábolas de Jesus em estado natural e aquilo que são os dogmas disciplinadores da Igreja. As parábolas abrem o texto a múltiplas interpretações. Os dogmas tentam fechá-lo. Percebe-se porquê: não há instituições fortes sem regras claras; nem pode haver cristianismo sem ordem e uma doutrina vigiada. Infelizmente, com o correr do tempo, qualquer religião demasiado ordenada corre o risco de se petrificar, transformando-se numa mera manifestação cultural, estéril e ritualizada. O Evangelho de Mateus tem um excelente nome para isso: “Sepulcros caiados.” São “formosos por fora, mas por dentro cheios de ossos de mortos e toda a espécie de imundície” (Mt 23, 27). As pessoas vão à missa por hábito social, batizam-se e casam-se em cerimônias religiosas, mas sem estarem realmente comprometidas com a dimensão evangélica da Igreja. Esta dimensão nunca desapareceu ao longo de dois mil anos, mas por vezes tornou-se muito difícil encontrá-la, sobretudo entre as paredes do Vaticano.
Existe, por isso, um cristianismo cultural, que serve perfeitamente para algumas pessoas se agarrarem a ele enquanto reflexo do mundo que conhecem desde a infância e no qual desejam continuar a viver. E existe um cristianismo essencial, visceral, que se agarra às entranhas do Evangelho e procura levá-lo a sério. Jorge Bergoglio foi um cristão visceral. Escolheu em 2013 ficar com o nome de Francisco de Assis — uma daquelas figuras que ao longo da História obrigaram a Igreja a dar guinadas evangélicas no seu percurso — e o melhor que se pode dizer é que viveu 12 anos à altura do nome que elegeu.
Não se trata aqui de opor católicos conservadores a católicos progressistas e proclamar que Francisco era o inimigo n.º1 dos primeiros e o grande Papa dos segundos. Isso seria caricaturar o seu pontificado. Além de a dicotomia conservador/progressista só servir hoje para distrair dos maiores desafios da Igreja, convém notar que foi o conservador Bento XVI que teve a coragem de abdicar e que, ao humanizar o papado, abriu caminho à ascensão do progressista Francisco, um argentino leve, desbocado e cheio de humor.
Francisco foi a maior revolução na Igreja desde o Concílio Vaticano II, sem mudar a doutrina. O casamento homossexual não passou a ser permitido, nem as mulheres passaram a ser ordenadas. Mas Francisco mudou o olhar e o tom sobre as mulheres e sobre a comunidade LGBT graças à sua saudável obsessão com o “todos, todos, todos”. Ele não fez nada de mais, no sentido em que é impossível ler os Evangelhos e sair de lá a achar que a Igreja deve ser uma colecção de crentes engomadinhos. Mas ninguém foi tão inclusivo antes dele. Parecendo que não é nada, no que à fé cristã diz respeito é quase tudo.
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