domingo, 22 de outubro de 2023

Com olhos em Gaza

O mundo está doente, sem muito onde esconder esta dor cortante que se chama guerra. Ela, a guerra dos tempos atuais, gosta de se exibir, de se mostrar na tela de qualquer celular. Ela adentra agora a terceira semana de uma escalada de matanças iniciada pelo grupo terrorista Hamas e respondida por Israel com punição coletiva máxima à vida em Gaza. Esse horror poderia ser pior? Sim, e muito — tanto para nossos compatriotas como para o resto do mundo. Basta imaginar o Brasil e os Estados Unidos ainda em mãos de Jair Bolsonaro e Donald Trump, com ambos encorajando os piores instintos do primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu. A remota eventualidade de o congressista de extrema direita Jim Jordan ocupar a presidência da Câmara dos Representantes americana, atualmente acéfala, já dá calafrios. Se eleito, Jordan se tornaria o terceiro na linha de sucessão, portanto logo atrás de Kamala Harris, em caso de afastamento do presidente Joe Biden por algum motivo. Integrantes do próprio Partido Republicano designam Jordan como “legislador terrorista”, golpista e partidário de uma política de terra arrasada.


Os historiadores Will e Ariel Durant, coautores dos quase 20 volumes de “História da civilização”, calcularam que, em toda a história da humanidade, vivemos apenas 27 anos sem que alguma guerra estivesse ocorrendo em algum canto do planeta. Guerras não são, portanto, uma aberração. Apenas expõem um lado da natureza humana mascarado por convenções de civilidade que moldam a sociedade. Nunca é demais dar um Google ou fazer uma imersão física na obra-prima de Goya, “El 3 de mayo en Madrid”, exposta no Museu do Prado, de Madri. Na monumental tela de 2,6 x 3,4 metros pintada em 1814, a vítima anônima a ser fuzilada passou a representar todas as vítimas inocentes de todas as guerras. É terrivelmente bela.

Ao longo da semana passada, assistiu-se a um esforço concentrado do Conselho de Segurança da ONU, sob a presidência do Brasil, para chegar a um acordo mínimo capaz de interromper a asfixia, por fome, sede, deslocamento, enfermidades ou bombardeios ininterruptos, de palestinos amontoados no que resta de vida em Gaza. Joe Biden deu o único voto contra, chamando para si a primazia de dizer ao mundo (e a seu eleitorado americano) quando e como arranjos humanitários teriam o aval dos Estados Unidos. Entrementes mais vidas palestinas iam se apagando. Até a sexta-feira, já havia mais de 1.600 crianças palestinas envoltas em mortalhas brancas, choradas por quem ainda podia chorar.

Até hoje, nenhuma negociação envolvendo o Estado de Israel e a Palestina conseguiu superar uma disparidade semântica criada propositalmente quase cinco décadas atrás. No dia 22 de novembro de 1967, com o Oriente Médio mal refeito da Guerra dos Seis Dias, o Conselho de Segurança aprovou a Resolução 242, que exigia a retirada de Israel “de territórios ocupados no conflito recente”. Na versão oficial em francês, contudo, à preposição se acrescentou o artigo definido: retirada “dos territórios ocupados”, de todos eles (Cisjordânia, Deserto do Sinai, Colinas de Golã, Gaza). Enquanto a versão em inglês permitia flexibilidade para negociações futuras, a francesa não dava espaço a interpretações. Ambas foram referendadas à época, sobreviveram aos Acordos d Paz de Camp David (1978), Oslo (1993) e continuam a reger essa diferença intransponível.

Não por acaso, “Vai pra Gaza” tornou-se expressão coloquial israelense, usada por quem quer mandar o outro ao inferno. Entrou para o léxico por força do statu quo, não muito diferente do “Vai pra Cuba” dirigido por “brasileiros de bem” a comunistas imaginários. Não dói, mas diz muito sobre o que está subjacente. Quando o atual ministro da Defesa israelense, Yoav Gallant, classifica os palestinos de Gaza de “animais desumanos”, recorre à mesma linguagem atiçada do terror.

A trágica história do povo judeu criou a tragédia atual do povo palestino, resumiu o pensador francês Edgar Morin com lucidez centenária (está com 102 anos). Morin talvez seja um dos últimos adeptos do universalismo, a convicção de que determinados princípios e ideias trazem embutidos um valor universal que transcende nações, fronteiras e laços de sangue. Mas como tomar conta do mundo, perguntaria Clarice Lispector, se não encontramos a quem prestar contas?

Guerra contra todos

O mundo responsável segue preocupado com o ataque do Hamas ao sítio israelense e à resposta dos atacados. Os mortos já passam de 5 mil mil cidadãos, cidadãs e crianças. A cidade de Gaza e o resto da Faixa de Gaza já estão quase totalmente destruídos, como não podia deixar de ser. Só vemos fotos na imprensa onde tudo se encontra em restos de paredes e estruturas pelo chão.

No meio da tragédia somos informados de que os palestinos libertaram duas pessoas sequestradas por razões humanitárias. Estão livres, podem voltar para o seio da família, o contrário do que os sequestradores anunciavam quando começaram a entrar em ação.

Ótimo. Claro que nos sentimos solidários à alegria da dupla, que aplaudimos a decisão dos sequestradores. Mas de onde vem essa decisão? O que ela significa? A que ela nos leva? Que brincadeira é essa com os nossos corações?

Quando essa guerra começou, há duas semanas, nos manifestamos contra sua natureza e sobretudo quanto aos motivos e às disposições dos dois lados dela. Considerávamos que não havia por que ambos afirmarem tal ódio ao “inimigo” por tão pouco. Nosso mundo não justificava mais (nem nunca justificou) uma oposição racial ou religiosa tão intensa quanto a que eles sempre afirmaram sentir um pelo outro. Uma oposição capaz de gerar um nível de ódio impossível de ser explicado, a não ser pela simples e inexplicável estupidez humana.

Na eleição de Joe Biden à presidência americana, nos unimos ao que havia de melhor nos Estados Unidos e no mundo em um elogio à derrota de Donald Trump, cuja vitória significaria um sucesso da extrema direita violenta, guerreira, inimiga dos fundadores libertários do século XIX.


Hoje vemos que estávamos enganados. Ou seja, que Biden não era muito melhor que Trump. Será que não podemos ter esperança alguma num futuro do planeta?

Há pouco o Brasil estava assumindo a presidência do Conselho de Segurança da ONU por um mês, como é de praxe, com o governo enfrentando os “amigos” do Congresso que queriam que se declarasse apoio a Israel e ao bombardeio de Gaza. O Itamaraty e o ministro do Exterior, Mauro Vieira, apresentaram uma proposta adulta, que deixava esse apoio a critério de cada país. E que, ao mesmo tempo, pregava a paz. Pois o representante dos Estados Unidos não quis saber de nada, recusou-se a assinar a moção brasileira. Foi o único membro do Conselho a adotar essa posição e como tem direito a veto, junto com mais cinco nações igualmente poderosas, acabou neutralizando a pacífica intenção da proposta.

Talvez seja também a prova de uma ingenuidade brasileira, o não entendimento de que a paz não seria um bom negócio para os poderosos. Mas, se estamos sós, a sós ficaremos!

Quem sabe isso não será também um recado para nós todos que desejamos antes de tudo o fim das guerras. No fundo, talvez seja o que os países membros do Conselho da ONU com direito a veto desejem nos dizer, para não nos metermos nesses assuntos que são da alçada deles.

O fato é que a maldição dessa guerra insana (insana como toda guerra) impediu que as vítimas da Faixa de Gaza recebessem um pouco de água e comida, além dos serviços médicos de que devem estar precisando tanto.

Gaza — que, na definição de um político europeu, foi chamada de a maior prisão a céu aberto do mundo — continuará recebendo os líderes da guerra de braços dados com o desorientado Benjamin Netanyahu a fim de comemorar as “vitórias” no combate contra palestinos e israelenses.

Pensamento do Dia

 


Vingança não muda o mundo


Quando mataram meu filho no Líbano, quis me vingar. Mas vingança não muda nada
David Grossman, escritor israelense

A caixa de Pandora

Na Mitologia Grega, o titã Prometeu roubou o fogo de Zeus e deu aos homens, para eles serem superiores aos outros aninais. Zeus, em retaliação, pediu a Hefesto, Deus do Fogo, e a Atena, Deusa da Sabedoria, para criar Pandora, dotada de beleza, graciosidade e curiosidade. Para se vingar dos homens, Zeus fez chegar à Pandora uma caixa onde estavam todos os males do mundo, como a guerra, a doença, a mentira, e o ódio, mas também a esperança, com a recomendação de que ela nunca deveria ser aberta. Pandora abre a caixa, espalhando todos os males do mundo, fechando-a com a esperança dentro. Pandora tenta destruir a caixa, mas ela tem um feitiço para não ser destruída. Triste, Pandora se suicida.

Os limites dos homens são complicados. Maquiavel, filósofo e historiador Italiano e um dos fundadores pensamento político Ocidental, diz que na guerra, “não se deve humilhar o vencido, pois a humilhação leva ao ódio, e o ódio à vingança”. Sun Tzu, general e estrategista da China antiga e de suma importância no pensamento militar do Oriente, diz que “ao cercar o inimigo deve-se deixar uma possibilidade de fuga, não para que ele fuja, mas para que não lute com a força de um leão enfurecido”. E Carl von Clausewitz, general Prussiano e o mais importante e influente teórico militar contemporâneo, diz que “as guerras modernas raramente são travadas sem ódio entre as nações; isso serve mais ou menos como um substituto para o ódio entre indivíduos”. Erros recíprocos podem levar ao ódio, que se retroalimenta.


O homem é um animal que compartilha a emoção, boas e más, com a razão. Quando a emoção se deteriora, surgindo a raiva, pode-se perder a razão por completo, no império do ódio.

Nos Sete Pecados Capitais, estão a inveja, a ira, e a soberba, em contraposição à empatia, à generosidade, e à humildade.

Em sua excelente análise sobre os limites a que o homem pode chegar, Edson de Oliveira Nunes, em seu artigo recente, diz-nos sobre a banalidade do mal, evocando Hannah Arendt, quando as causas se perdem, e surge o mal pelo mal, o mal puro, “aquela hora na qual desaparece a humanidade das pessoas”, como escrito em seu artigo.

No Oriente Médio, a guerra se acirra. No Brasil, o rio Solimões seca. Na Sibéria, “vírus zumbis” se renascem após 50 mil anos, pelo degelo. Perdem-se momentos históricos em decisões equivocadas. Que alguém reabra a caixa de Pandora onde ainda se encontra a esperança, nas atitudes altruístas da humildade e do bem-querer, para que o homem sobreviva, hoje à beira do precipício.

A contribuição da mídia para o ciclo de violência

Uma vez mais, a exemplo do que acontece há décadas, é um ataque a Israel o elemento a ativar uma cobertura jornalística exaustiva da mídia comercial brasileira sobre o conflito israelo-palestino. Claro, a magnitude sem precedentes (sob o ponto de vista israelense) dos atentados terroristas cometidos pelo grupo palestino Hamas contra civis em 7 de outubro – muitos dos 1.300 mortos – mais do que justifica a atual repercussão. Porém, é inescapável a constatação de que, via de regra, ofensivas contra palestinos não são suficientes para tanto, à exceção de quando são realizadas a modo de “retaliação” – nesse caso, novamente a partir da perspectiva de Israel.

Já nos períodos entre tais ataques, ou entre as “guerras”, o interesse jornalístico sobre a região cessa. A impressão, portanto, é de normalização. Só que o “normal” e corrente é a opressão sistemática do Estado de Israel sobre os palestinos, há décadas submetidos a uma política de militarização, segregação institucionalizada, roubo de terras, demolição de casas, violências físicas e morais, encarceramento em massa e assassinatos. Nesse alinhamento editorial quase
automático à narrativa israelense e das potências ocidentais sobre os fatos, a vida dos palestinos parece valer menos.

Tal postura é compreensível. Afinal, os israelenses “são pessoas como todos nós”, como disse um jornalista brasileiro. Esquece-se, talvez, que os palestinos também são. A identificação e, logo, empatia com o “similar” e a desumanização do “outro” não é novidade entre a mídia hegemônica no Brasil e no Ocidente. Em relação aos árabes e muçulmanos, tal desumanização ganhou muita força, especialmente, após os atentados de 11 de setembro de 2001 nos Estados Unidos. Na BBC, enquanto os israelenses são mortos, os palestinos morrem. Na CNN Brasil, a legenda do noticiário diz que o Hamas “ataca” Israel, mas bombas aparentemente sem dono “atingem” Gaza.

Em Jenin, ingleses destruíram um quarteirão da cidade com dinamite, em 1938

O foco desproporcional das e dos jornalistas brasileiros (mas também os de fora) em, por um lado, repetidamente proclamar os atos do grupo palestino em 7 de outubro como terroristas – com razão – mas, por outro, sonegar ao público o contexto estrutural e conjuntural em que se inserem contribui, conscientemente ou não, para justificar (ou, no mínimo, tornar mais palatável) a “retaliação” israelense, historicamente carregada de crimes de guerra e números de assassinatos de civis flagrantemente mais graves. Mesmo nos minoritários comentários críticos sobre as consequências dos bombardeios israelenses à Faixa de Gaza (os de agora ou os anteriores), a carga emotiva fica muito longe de ser a mesma. As vítimas palestinas raramente têm nome, rosto, histórias como “de todos nós”. Jornalistas ávidos a chamar “as coisas pelo seu nome” no caso do Hamas não se esforçam tanto assim para nomear de forma contundente o caráter e as ações de Israel – um agente estatal, vale lembrar.

Até 16 de outubro, o atual bombardeio a Gaza já havia matado mais de 2.800 pessoas, incluindo mais de mil crianças, e deslocado forçosamente ao menos 1 milhão. Já havia evidências de ataques a hospitais, ambulâncias e escolas, assassinatos de funcionários da ONU e Cruz Vermelha, utilização de fósforo branco, arma química proibida pela legislação internacional, além do bloqueio total da entrada de alimentos, água e combustível. Elementos que configuram claramente a prática de punição coletiva. Contudo, com raríssimas exceções, as expressões “crimes de guerra” ou “terrorismo de Estado”, assim como as palavras “crueldade” ou “atrocidades”, não são ditas nem escritas pelas bocas e mãos dos jornalistas brasileiros. Pelo menos não com o mesmo destaque. Pelo contrário: na escalada do “Jornal das Dez” de 12 de outubro, da GloboNews, por exemplo, o âncora anunciou: “Funcionários da ONU e da Cruz Vermelha morrem em Gaza em meio ao fogo cruzado”. Comentaristas dizem sem meias palavras serem contrários a um cessar-fogo. Em meio ao amplamente denunciado desrespeito absoluto às leis internacionais por parte de Israel, não faltam entrevistas com soldados e sua linguagem desumanizadora. E não são raros os momentos em que notícias sobre os ataques a Israel são atualizadas tendo como imagens de fundo as vítimas do bombardeio israelense.

Além disso, o foco desproporcional na natureza do Hamas escamoteia o verdadeiro debate que a maioria dos profissionais dos meios de comunicação se recusa a fazer: quais as causas do estopim de mais esse ciclo de violência? Buscar entender as condições conjunturais e estruturais que levam a essa situação não exclui a condenação das atrocidades cometidas pelo grupo islâmico palestino. Não compreendê-las, por outro lado, necessariamente contribui para a perpetuação do ciclo de violência e da flagrante situação de injustiça (e violência cotidiana) sofrida pelos palestinos.

Em editorial, o Haaretz, mais importante jornal israelense, afirma de forma categórica: o responsável pelo mais recente ciclo de violência é o primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu. No mesmo veículo, o respeitado jornalista Gideon Levy argumenta que Israel não poderia aprisionar 2 milhões de pessoas sem pagar um preço cruel. Não se viu elaborações do tipo partindo de jornalistas brasileiros da mídia corporativa – no mínimo, não ganharam destaque. Aparentemente, mesmo na imprensa israelense há mais espaço para o contraditório sobre… Israel.

Se exercessem de maneira minimamente equilibrada sua função, os jornalistas da imprensa comercial não sonegariam a informação crucial de que Israel promove um regime de apartheid contra os palestinos. Essa não é uma classificação bradada “apenas” por palestinos ou apoiadores da causa há décadas: além da respeitada organização de direitos humanos palestina Al-Haq, o entendimento de que o Estado de Israel adota políticas, práticas e leis cujo objetivo é consolidar a supremacia de judeus sobre palestinos é compartilhado pelas amplamente reconhecidas Anistia Internacional e Human Rights Watch, além da ONU e da B-Tselem, principal organização de direitos humanos de… Israel. À mesma conclusão chegaram, entre outros, dois ex-embaixadores israelenses na África do Sul e ninguém menos do que o arcebispo sul-africano Desmond Tutu, um dos mais proeminentes opositores da segregação institucional que existiu por décadas em seu próprio país.

O apartheid também é a realidade dos cerca de 20% de palestinos que vivem dentro de Israel e que possuem cidadania israelense. Em 2018, a imprensa brasileira não repercutiu exaustivamente a aprovação no Knesset (o parlamento local) da Lei do Estado-Nação, que definiu oficialmente Israel como “Estado-Nação do povo judeu”, reservou o direito à autodeterminação apenas a esse povo e estabeleceu o hebraico como única língua oficial. Não se fala também que na “única democracia do Oriente Médio” existem 65 leis discriminatórias contra palestinos que vivem nos territórios palestinos ocupados e/ou em Israel e que estes últimos, longe de gozarem de condições iguais a qualquer cidadão, ocupam a base da pirâmide da sociedade.

Mesmo diante de tamanho volume de evidências, a palavra “apartheid” não aparece nos comentários sobre o conflito na imprensa comercial. Não seria sequer preciso pronunciá-la com a mesma contundência adotada sem hesitação para definir o Hamas; bastaria, simplesmente, informar que as mais do que respeitadas entidades internacionais o fazem – e expor suas motivações. No máximo, menciona-se a “ocupação” do Estado israelense na Cisjordânia e em Jerusalém Oriental, mas sempre de forma quase etérea, anódina, sem que se detalhe o que isso significa na prática para milhões de palestinos.

A afirmação de que os palestinos de Gaza “vivem sob a ditadura do Hamas” é repetida à exaustão, mas nunca se explica que a população palestina da Cisjordânia e Jerusalém Oriental está submetida à ditadura israelense. Um regime militar colonial de apartheid que, como testemunhei durante três semanas em maio deste ano, confina palestinos em bantustões, mata civis sistematicamente (incluindo crianças), encarcera em massa sem acusação formal (de novo, incluindo centenas de crianças), confisca terras e poços de água, ergue check-points e centenas de quilômetros de muros – violando o direito de ir e vir –, demole casas e escolas, impede a construção de novas residências palestinas e promove a expansão de assentamentos israelenses sobre as terras roubadas, boa parte deles habitada por colonos religiosos ultranacionalistas fortemente armados que realizam ataques praticamente diários a palestinos, seus lares e seus cultivos, resultando, por vezes, no desaparecimento completo de vilas palestinas. Entretanto, enquanto os ocupados e principais vítimas da violência estão sob a jurisdição da Justiça militar de Israel, os israelenses dos assentamentos respondem à Justiça civil. Em 12 de outubro, a GloboNews chegou ao ponto de entrevistar um militar israelense-brasileiro, morador de um assentamento na Cisjordânia, e ouvi-lo dizer que as “tensões” nessa região são comuns sem contestá-lo em nenhum momento sobre a ocupação.

Outro discurso amplamente repetido por jornalistas brasileiros é o famoso clichê de que “Israel tem o direito de se defender”. A não ser que a intenção seja cumprir a função de assessoria de comunicação dos governos de Israel, Estados Unidos e Reino Unido, entre outros, do ponto de vista jornalístico uma afirmação como essa é um atestado de falta de profissionalismo. Em primeiro lugar, porque, como é regra na cobertura da mídia comercial sobre o assunto, posiciona o início da linha temporal do conflito sempre no momento em que Israel é atacado, “escondendo”, assim, o contexto em que tal incidente se insere. A máxima isenta o Estado de Israel de sua responsabilidade como potência colonizadora de poder e força infinitamente superiores, promotora de segregação e violência cotidiana contra os palestinos não desde 1967, como frequentemente se imagina, mas desde 1947.

Pois, de dezembro desse ano até meados de 1949, milícias sionistas puseram em marcha uma operação militar, planejada com antecipação, que resultou na expulsão de cerca de 700 mil palestinos, na destruição de centenas de vilarejos e na realização de dezenas de massacres, com milhares de mortos. Em vez dos 56% do território determinados pela questionável proposta de partilha da ONU, o novo Estado se apoderou de 78%. Esse evento ficou conhecido como Nakba (catástrofe, em árabe). Sempre denunciada pelos palestinos e apagada pelos sionistas, foi “corroborada” a partir dos anos 1980 pelos chamados “novos historiadores” israelenses, com base na abertura dos arquivos militares de Israel referentes aos acontecimentos.

O clichê “Israel tem o direito de se defender” ignora mais esse fato histórico. A limpeza étnica de palestinos como base fundacional de Israel não é mencionada na imprensa nem mesmo nas matérias e comentários sobre o histórico do conflito, muito menos a informação de que 70% da população da Faixa de Gaza é formada justamente por refugiados da Nakba. Ou seja, são originários de vilarejos destruídos para dar lugar ao Estado sionista.

Oculta, ainda, a extrema desproporção de mortes dos “dois lados” do conflito resultante dessa absoluta assimetria de força e razão. Segundo o Escritório das Nações Unidas para a Coordenação de Assuntos Humanitários (OCHA, na sigla em inglês), somente de 2008 a 19 de setembro de 2023, 6.407 palestinos haviam sido mortos, entre eles, nada menos do que 1.437 crianças. Do lado israelense, esse número era de 308; destes, 177 eram civis, entre eles, 25 crianças. Ou seja, apenas a quantidade de crianças assassinadas de um lado foi oito vezes maior do que a do total de civis do outro. Do total de mortos, 95% são palestinos. Reconhecer que não existe uma “guerra”, mas sim uma entidade flagrantemente opressora – Israel – e outra flagrantemente oprimida – o povo palestino, é exercício de pura objetividade jornalística.

Até 18 de setembro, somente na Cisjordânia, 2023 já era o ano em que mais palestinos haviam sido mortos pelas forças de segurança israelenses desde 2005: 181, incluindo 38 crianças, superando 2022, o mais letal até então. Desde o ano passado, colonos israelenses, não raro sob a proteção do Exército, vêm realizando um número sem precedentes de ataques a vilas e vilarejos palestinos na mesma região, com assassinatos, queima de casas e cultivos, mortes de animais e cortes de oliveiras, a árvore-símbolo da Palestina e de importância crucial para a geração de renda de sua população. Por diversas vezes, invadiram o complexo da mesquita de Al Aqsa, terceiro local mais sagrado para os muçulmanos – de novo, sempre sob a proteção do Exército de Israel. A crescente violência empregada por esses colonos fez a própria Agência de Segurança de Israel, a Shin Bet, a classificá-los como terroristas cujos atos levam a um aumento da resistência contra a ocupação, conclusão que descontentou profundamente integrantes do governo de extrema-direita israelense.

Todavia, nem o terrorismo dos colonos israelenses nem boa parte de todo esse contexto relatado acima foram noticiados por aqui. Não se destaca, também, o fato de que a violência contra palestinos na Cisjordânia explodiu desde o dia do atentado do Hamas de 7 de outubro: em apenas oito dias, ataques de colonos e soldados israelenses já haviam matado 58 pessoas, incluindo 14 crianças, e causado a evacuação total de dois vilarejos. As forças de segurança de Israel estão instalando novos check-points e bloqueios de estradas, realizando prisões arbitrárias em massa e intensificando as violações contra prisioneiros palestinos, submetendo-os a medidas de punição coletiva.

O segundo motivo pelo qual nenhum jornalista deveria afirmar que Israel tem o direito de se defender deveria ser óbvio: ao longo da história do “conflito” já está mais do que demonstrado que tal “defesa” sempre (sem exceção) resulta no assassinato de uma maioria assustadora de civis – homens, mulheres, crianças. Investigações realizadas por respeitadas organizações de direitos humanos – como Anistia Internacional, a israelense B-Tselem e a Euro-Med Monitor – sobre os bombardeios anteriores à Faixa de Gaza atestam que o Estado israelense invariavelmente comete uma série de crimes de guerra, como a prática de punição coletiva e o lançamento intencional de ataques desproporcionais.

Nem manifestações e iniciativas pacíficas são poupadas. Entre março e dezembro de 2018, milhares de manifestantes desarmados de Gaza realizaram semanalmente a Marcha do Retorno, que reivindicava o retorno dos palestinos deslocados desde a criação de Israel. Segundo uma investigação da ONU, mais de 6 mil civis desarmados foram atingidos por disparos vindos dos militares israelenses, dos quais 189 foram mortos. Entre eles, 35 eram crianças. Já na madrugada de 31 de maio de 2010, navios da Marinha do Estado judeu abordaram e dispararam contra a pequena frota internacional que levava ajuda humanitária a Gaza, matando oito turcos e um estadunidense de origem turca. Sem falar na repressão absolutamente desproporcional contra os levantes populares que ficaram conhecidos como Primeira e Segunda Intifada, que causou a morte de milhares de civis palestinos.

Jornalistas que cobrem ou comentam o conflito israelo-palestino têm a obrigação de conhecer todo esse contexto – e informar seu público a respeito. Deveriam, também, saber que o próprio bloqueio terrestre, aéreo e marítimo à Faixa de Gaza, que dura dezesseis anos, configura em si um crime de guerra. Uma punição coletiva que condena boa parte de sua população a uma morte “lenta” ao não ter acesso adequado a água potável e serviços de saúde e ao depender de autorizações nem sempre concedidas para realizar tratamentos fora da região, entre outros fatores. Uma crueldade promovida por um Estado, não por uma agente não estatal, que faz que virtualmente todas as crianças nascidas ali não conheçam outra realidade que não a do bloqueio e dos bombardeios e sofram, assim, um trauma continuado, que especialistas afirmam não se enquadrar na categoria do transtorno de estresse pós-traumático em razão do fato de que o evento traumático não se encerra, não se dando chance, portanto, para que se inicie o processo de cura. O bombardeio atual é o quinto de grandes proporções à Faixa de Gaza desde 2009.

É nesta realidade estrutural e conjuntural que se inserem não somente os ataques dos Hamas em território israelense, como também sua própria criação, em 1987 – financiada, aliás, por Israel, com o intuito de enfraquecer os seculares Organização pela Libertação da Palestina (OLP) e o partido Fatah, liderados por Yasser Arafat. Compreender que esse tipo de ação é consequência da violência estrutural imposta pelo Estado de Israel sobre os palestinos há 76 anos não significa deixar de condenar as atrocidades cometidas contra civis israelenses em 7 de outubro.

Enquanto a ocupação militar e o apartheid israelenses continuarem existindo e se expandindo, a resposta militar legitimada e justificada por grande parte da imprensa brasileira e ocidental – de forma velada ou explícita – nunca será verdadeiramente vitoriosa. No entanto, o jornalismo hegemônico se recusa a fazer esse debate. De nada serve, também, o discurso pretensamente mais ponderado de condenar a brutalidade dos “dois lados” se não se ressalta que um deles é, de longe, o mais brutal. De nada serve performar timidamente a defesa da criação do Estado palestino se não se aponta que o principal obstáculo para isso é a postura do Estado de Israel de manter a ocupação e promover ininterruptamente a expansão territorial sobre terras palestinas. Que tipo de país seria viável em um território cada vez mais reduzido e fragmentado?

Não é a falta de diálogo ou o “ódio” entre dois povos que impedem o fim do ciclo de violência, mas sim a persistência de uma terrível injustiça que nem as potências ocidentais nem a mídia empresarial desses países e do Brasil têm interesse de denunciar ou condenar.