Os historiadores Will e Ariel Durant, coautores dos quase 20 volumes de “História da civilização”, calcularam que, em toda a história da humanidade, vivemos apenas 27 anos sem que alguma guerra estivesse ocorrendo em algum canto do planeta. Guerras não são, portanto, uma aberração. Apenas expõem um lado da natureza humana mascarado por convenções de civilidade que moldam a sociedade. Nunca é demais dar um Google ou fazer uma imersão física na obra-prima de Goya, “El 3 de mayo en Madrid”, exposta no Museu do Prado, de Madri. Na monumental tela de 2,6 x 3,4 metros pintada em 1814, a vítima anônima a ser fuzilada passou a representar todas as vítimas inocentes de todas as guerras. É terrivelmente bela.
Ao longo da semana passada, assistiu-se a um esforço concentrado do Conselho de Segurança da ONU, sob a presidência do Brasil, para chegar a um acordo mínimo capaz de interromper a asfixia, por fome, sede, deslocamento, enfermidades ou bombardeios ininterruptos, de palestinos amontoados no que resta de vida em Gaza. Joe Biden deu o único voto contra, chamando para si a primazia de dizer ao mundo (e a seu eleitorado americano) quando e como arranjos humanitários teriam o aval dos Estados Unidos. Entrementes mais vidas palestinas iam se apagando. Até a sexta-feira, já havia mais de 1.600 crianças palestinas envoltas em mortalhas brancas, choradas por quem ainda podia chorar.
Até hoje, nenhuma negociação envolvendo o Estado de Israel e a Palestina conseguiu superar uma disparidade semântica criada propositalmente quase cinco décadas atrás. No dia 22 de novembro de 1967, com o Oriente Médio mal refeito da Guerra dos Seis Dias, o Conselho de Segurança aprovou a Resolução 242, que exigia a retirada de Israel “de territórios ocupados no conflito recente”. Na versão oficial em francês, contudo, à preposição se acrescentou o artigo definido: retirada “dos territórios ocupados”, de todos eles (Cisjordânia, Deserto do Sinai, Colinas de Golã, Gaza). Enquanto a versão em inglês permitia flexibilidade para negociações futuras, a francesa não dava espaço a interpretações. Ambas foram referendadas à época, sobreviveram aos Acordos d Paz de Camp David (1978), Oslo (1993) e continuam a reger essa diferença intransponível.
Não por acaso, “Vai pra Gaza” tornou-se expressão coloquial israelense, usada por quem quer mandar o outro ao inferno. Entrou para o léxico por força do statu quo, não muito diferente do “Vai pra Cuba” dirigido por “brasileiros de bem” a comunistas imaginários. Não dói, mas diz muito sobre o que está subjacente. Quando o atual ministro da Defesa israelense, Yoav Gallant, classifica os palestinos de Gaza de “animais desumanos”, recorre à mesma linguagem atiçada do terror.
A trágica história do povo judeu criou a tragédia atual do povo palestino, resumiu o pensador francês Edgar Morin com lucidez centenária (está com 102 anos). Morin talvez seja um dos últimos adeptos do universalismo, a convicção de que determinados princípios e ideias trazem embutidos um valor universal que transcende nações, fronteiras e laços de sangue. Mas como tomar conta do mundo, perguntaria Clarice Lispector, se não encontramos a quem prestar contas?
Nenhum comentário:
Postar um comentário