Já nos períodos entre tais ataques, ou entre as “guerras”, o interesse jornalístico sobre a região cessa. A impressão, portanto, é de normalização. Só que o “normal” e corrente é a opressão sistemática do Estado de Israel sobre os palestinos, há décadas submetidos a uma política de militarização, segregação institucionalizada, roubo de terras, demolição de casas, violências físicas e morais, encarceramento em massa e assassinatos. Nesse alinhamento editorial quase automático à narrativa israelense e das potências ocidentais sobre os fatos, a vida dos palestinos parece valer menos.
Tal postura é compreensível. Afinal, os israelenses “são pessoas como todos nós”, como disse um jornalista brasileiro. Esquece-se, talvez, que os palestinos também são. A identificação e, logo, empatia com o “similar” e a desumanização do “outro” não é novidade entre a mídia hegemônica no Brasil e no Ocidente. Em relação aos árabes e muçulmanos, tal desumanização ganhou muita força, especialmente, após os atentados de 11 de setembro de 2001 nos Estados Unidos. Na BBC, enquanto os israelenses são mortos, os palestinos morrem. Na CNN Brasil, a legenda do noticiário diz que o Hamas “ataca” Israel, mas bombas aparentemente sem dono “atingem” Gaza.
Em Jenin, ingleses destruíram um quarteirão da cidade com dinamite, em 1938
O foco desproporcional das e dos jornalistas brasileiros (mas também os de fora) em, por um lado, repetidamente proclamar os atos do grupo palestino em 7 de outubro como terroristas – com razão – mas, por outro, sonegar ao público o contexto estrutural e conjuntural em que se inserem contribui, conscientemente ou não, para justificar (ou, no mínimo, tornar mais palatável) a “retaliação” israelense, historicamente carregada de crimes de guerra e números de assassinatos de civis flagrantemente mais graves. Mesmo nos minoritários comentários críticos sobre as consequências dos bombardeios israelenses à Faixa de Gaza (os de agora ou os anteriores), a carga emotiva fica muito longe de ser a mesma. As vítimas palestinas raramente têm nome, rosto, histórias como “de todos nós”. Jornalistas ávidos a chamar “as coisas pelo seu nome” no caso do Hamas não se esforçam tanto assim para nomear de forma contundente o caráter e as ações de Israel – um agente estatal, vale lembrar.
Até 16 de outubro, o atual bombardeio a Gaza já havia matado mais de 2.800 pessoas, incluindo mais de mil crianças, e deslocado forçosamente ao menos 1 milhão. Já havia evidências de ataques a hospitais, ambulâncias e escolas, assassinatos de funcionários da ONU e Cruz Vermelha, utilização de fósforo branco, arma química proibida pela legislação internacional, além do bloqueio total da entrada de alimentos, água e combustível. Elementos que configuram claramente a prática de punição coletiva. Contudo, com raríssimas exceções, as expressões “crimes de guerra” ou “terrorismo de Estado”, assim como as palavras “crueldade” ou “atrocidades”, não são ditas nem escritas pelas bocas e mãos dos jornalistas brasileiros. Pelo menos não com o mesmo destaque. Pelo contrário: na escalada do “Jornal das Dez” de 12 de outubro, da GloboNews, por exemplo, o âncora anunciou: “Funcionários da ONU e da Cruz Vermelha morrem em Gaza em meio ao fogo cruzado”. Comentaristas dizem sem meias palavras serem contrários a um cessar-fogo. Em meio ao amplamente denunciado desrespeito absoluto às leis internacionais por parte de Israel, não faltam entrevistas com soldados e sua linguagem desumanizadora. E não são raros os momentos em que notícias sobre os ataques a Israel são atualizadas tendo como imagens de fundo as vítimas do bombardeio israelense.
Além disso, o foco desproporcional na natureza do Hamas escamoteia o verdadeiro debate que a maioria dos profissionais dos meios de comunicação se recusa a fazer: quais as causas do estopim de mais esse ciclo de violência? Buscar entender as condições conjunturais e estruturais que levam a essa situação não exclui a condenação das atrocidades cometidas pelo grupo islâmico palestino. Não compreendê-las, por outro lado, necessariamente contribui para a perpetuação do ciclo de violência e da flagrante situação de injustiça (e violência cotidiana) sofrida pelos palestinos.
Em editorial, o Haaretz, mais importante jornal israelense, afirma de forma categórica: o responsável pelo mais recente ciclo de violência é o primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu. No mesmo veículo, o respeitado jornalista Gideon Levy argumenta que Israel não poderia aprisionar 2 milhões de pessoas sem pagar um preço cruel. Não se viu elaborações do tipo partindo de jornalistas brasileiros da mídia corporativa – no mínimo, não ganharam destaque. Aparentemente, mesmo na imprensa israelense há mais espaço para o contraditório sobre… Israel.
Se exercessem de maneira minimamente equilibrada sua função, os jornalistas da imprensa comercial não sonegariam a informação crucial de que Israel promove um regime de apartheid contra os palestinos. Essa não é uma classificação bradada “apenas” por palestinos ou apoiadores da causa há décadas: além da respeitada organização de direitos humanos palestina Al-Haq, o entendimento de que o Estado de Israel adota políticas, práticas e leis cujo objetivo é consolidar a supremacia de judeus sobre palestinos é compartilhado pelas amplamente reconhecidas Anistia Internacional e Human Rights Watch, além da ONU e da B-Tselem, principal organização de direitos humanos de… Israel. À mesma conclusão chegaram, entre outros, dois ex-embaixadores israelenses na África do Sul e ninguém menos do que o arcebispo sul-africano Desmond Tutu, um dos mais proeminentes opositores da segregação institucional que existiu por décadas em seu próprio país.
O apartheid também é a realidade dos cerca de 20% de palestinos que vivem dentro de Israel e que possuem cidadania israelense. Em 2018, a imprensa brasileira não repercutiu exaustivamente a aprovação no Knesset (o parlamento local) da Lei do Estado-Nação, que definiu oficialmente Israel como “Estado-Nação do povo judeu”, reservou o direito à autodeterminação apenas a esse povo e estabeleceu o hebraico como única língua oficial. Não se fala também que na “única democracia do Oriente Médio” existem 65 leis discriminatórias contra palestinos que vivem nos territórios palestinos ocupados e/ou em Israel e que estes últimos, longe de gozarem de condições iguais a qualquer cidadão, ocupam a base da pirâmide da sociedade.
Mesmo diante de tamanho volume de evidências, a palavra “apartheid” não aparece nos comentários sobre o conflito na imprensa comercial. Não seria sequer preciso pronunciá-la com a mesma contundência adotada sem hesitação para definir o Hamas; bastaria, simplesmente, informar que as mais do que respeitadas entidades internacionais o fazem – e expor suas motivações. No máximo, menciona-se a “ocupação” do Estado israelense na Cisjordânia e em Jerusalém Oriental, mas sempre de forma quase etérea, anódina, sem que se detalhe o que isso significa na prática para milhões de palestinos.
A afirmação de que os palestinos de Gaza “vivem sob a ditadura do Hamas” é repetida à exaustão, mas nunca se explica que a população palestina da Cisjordânia e Jerusalém Oriental está submetida à ditadura israelense. Um regime militar colonial de apartheid que, como testemunhei durante três semanas em maio deste ano, confina palestinos em bantustões, mata civis sistematicamente (incluindo crianças), encarcera em massa sem acusação formal (de novo, incluindo centenas de crianças), confisca terras e poços de água, ergue check-points e centenas de quilômetros de muros – violando o direito de ir e vir –, demole casas e escolas, impede a construção de novas residências palestinas e promove a expansão de assentamentos israelenses sobre as terras roubadas, boa parte deles habitada por colonos religiosos ultranacionalistas fortemente armados que realizam ataques praticamente diários a palestinos, seus lares e seus cultivos, resultando, por vezes, no desaparecimento completo de vilas palestinas. Entretanto, enquanto os ocupados e principais vítimas da violência estão sob a jurisdição da Justiça militar de Israel, os israelenses dos assentamentos respondem à Justiça civil. Em 12 de outubro, a GloboNews chegou ao ponto de entrevistar um militar israelense-brasileiro, morador de um assentamento na Cisjordânia, e ouvi-lo dizer que as “tensões” nessa região são comuns sem contestá-lo em nenhum momento sobre a ocupação.
Outro discurso amplamente repetido por jornalistas brasileiros é o famoso clichê de que “Israel tem o direito de se defender”. A não ser que a intenção seja cumprir a função de assessoria de comunicação dos governos de Israel, Estados Unidos e Reino Unido, entre outros, do ponto de vista jornalístico uma afirmação como essa é um atestado de falta de profissionalismo. Em primeiro lugar, porque, como é regra na cobertura da mídia comercial sobre o assunto, posiciona o início da linha temporal do conflito sempre no momento em que Israel é atacado, “escondendo”, assim, o contexto em que tal incidente se insere. A máxima isenta o Estado de Israel de sua responsabilidade como potência colonizadora de poder e força infinitamente superiores, promotora de segregação e violência cotidiana contra os palestinos não desde 1967, como frequentemente se imagina, mas desde 1947.
Pois, de dezembro desse ano até meados de 1949, milícias sionistas puseram em marcha uma operação militar, planejada com antecipação, que resultou na expulsão de cerca de 700 mil palestinos, na destruição de centenas de vilarejos e na realização de dezenas de massacres, com milhares de mortos. Em vez dos 56% do território determinados pela questionável proposta de partilha da ONU, o novo Estado se apoderou de 78%. Esse evento ficou conhecido como Nakba (catástrofe, em árabe). Sempre denunciada pelos palestinos e apagada pelos sionistas, foi “corroborada” a partir dos anos 1980 pelos chamados “novos historiadores” israelenses, com base na abertura dos arquivos militares de Israel referentes aos acontecimentos.
O clichê “Israel tem o direito de se defender” ignora mais esse fato histórico. A limpeza étnica de palestinos como base fundacional de Israel não é mencionada na imprensa nem mesmo nas matérias e comentários sobre o histórico do conflito, muito menos a informação de que 70% da população da Faixa de Gaza é formada justamente por refugiados da Nakba. Ou seja, são originários de vilarejos destruídos para dar lugar ao Estado sionista.
Oculta, ainda, a extrema desproporção de mortes dos “dois lados” do conflito resultante dessa absoluta assimetria de força e razão. Segundo o Escritório das Nações Unidas para a Coordenação de Assuntos Humanitários (OCHA, na sigla em inglês), somente de 2008 a 19 de setembro de 2023, 6.407 palestinos haviam sido mortos, entre eles, nada menos do que 1.437 crianças. Do lado israelense, esse número era de 308; destes, 177 eram civis, entre eles, 25 crianças. Ou seja, apenas a quantidade de crianças assassinadas de um lado foi oito vezes maior do que a do total de civis do outro. Do total de mortos, 95% são palestinos. Reconhecer que não existe uma “guerra”, mas sim uma entidade flagrantemente opressora – Israel – e outra flagrantemente oprimida – o povo palestino, é exercício de pura objetividade jornalística.
Até 18 de setembro, somente na Cisjordânia, 2023 já era o ano em que mais palestinos haviam sido mortos pelas forças de segurança israelenses desde 2005: 181, incluindo 38 crianças, superando 2022, o mais letal até então. Desde o ano passado, colonos israelenses, não raro sob a proteção do Exército, vêm realizando um número sem precedentes de ataques a vilas e vilarejos palestinos na mesma região, com assassinatos, queima de casas e cultivos, mortes de animais e cortes de oliveiras, a árvore-símbolo da Palestina e de importância crucial para a geração de renda de sua população. Por diversas vezes, invadiram o complexo da mesquita de Al Aqsa, terceiro local mais sagrado para os muçulmanos – de novo, sempre sob a proteção do Exército de Israel. A crescente violência empregada por esses colonos fez a própria Agência de Segurança de Israel, a Shin Bet, a classificá-los como terroristas cujos atos levam a um aumento da resistência contra a ocupação, conclusão que descontentou profundamente integrantes do governo de extrema-direita israelense.
Todavia, nem o terrorismo dos colonos israelenses nem boa parte de todo esse contexto relatado acima foram noticiados por aqui. Não se destaca, também, o fato de que a violência contra palestinos na Cisjordânia explodiu desde o dia do atentado do Hamas de 7 de outubro: em apenas oito dias, ataques de colonos e soldados israelenses já haviam matado 58 pessoas, incluindo 14 crianças, e causado a evacuação total de dois vilarejos. As forças de segurança de Israel estão instalando novos check-points e bloqueios de estradas, realizando prisões arbitrárias em massa e intensificando as violações contra prisioneiros palestinos, submetendo-os a medidas de punição coletiva.
O segundo motivo pelo qual nenhum jornalista deveria afirmar que Israel tem o direito de se defender deveria ser óbvio: ao longo da história do “conflito” já está mais do que demonstrado que tal “defesa” sempre (sem exceção) resulta no assassinato de uma maioria assustadora de civis – homens, mulheres, crianças. Investigações realizadas por respeitadas organizações de direitos humanos – como Anistia Internacional, a israelense B-Tselem e a Euro-Med Monitor – sobre os bombardeios anteriores à Faixa de Gaza atestam que o Estado israelense invariavelmente comete uma série de crimes de guerra, como a prática de punição coletiva e o lançamento intencional de ataques desproporcionais.
Nem manifestações e iniciativas pacíficas são poupadas. Entre março e dezembro de 2018, milhares de manifestantes desarmados de Gaza realizaram semanalmente a Marcha do Retorno, que reivindicava o retorno dos palestinos deslocados desde a criação de Israel. Segundo uma investigação da ONU, mais de 6 mil civis desarmados foram atingidos por disparos vindos dos militares israelenses, dos quais 189 foram mortos. Entre eles, 35 eram crianças. Já na madrugada de 31 de maio de 2010, navios da Marinha do Estado judeu abordaram e dispararam contra a pequena frota internacional que levava ajuda humanitária a Gaza, matando oito turcos e um estadunidense de origem turca. Sem falar na repressão absolutamente desproporcional contra os levantes populares que ficaram conhecidos como Primeira e Segunda Intifada, que causou a morte de milhares de civis palestinos.
Jornalistas que cobrem ou comentam o conflito israelo-palestino têm a obrigação de conhecer todo esse contexto – e informar seu público a respeito. Deveriam, também, saber que o próprio bloqueio terrestre, aéreo e marítimo à Faixa de Gaza, que dura dezesseis anos, configura em si um crime de guerra. Uma punição coletiva que condena boa parte de sua população a uma morte “lenta” ao não ter acesso adequado a água potável e serviços de saúde e ao depender de autorizações nem sempre concedidas para realizar tratamentos fora da região, entre outros fatores. Uma crueldade promovida por um Estado, não por uma agente não estatal, que faz que virtualmente todas as crianças nascidas ali não conheçam outra realidade que não a do bloqueio e dos bombardeios e sofram, assim, um trauma continuado, que especialistas afirmam não se enquadrar na categoria do transtorno de estresse pós-traumático em razão do fato de que o evento traumático não se encerra, não se dando chance, portanto, para que se inicie o processo de cura. O bombardeio atual é o quinto de grandes proporções à Faixa de Gaza desde 2009.
É nesta realidade estrutural e conjuntural que se inserem não somente os ataques dos Hamas em território israelense, como também sua própria criação, em 1987 – financiada, aliás, por Israel, com o intuito de enfraquecer os seculares Organização pela Libertação da Palestina (OLP) e o partido Fatah, liderados por Yasser Arafat. Compreender que esse tipo de ação é consequência da violência estrutural imposta pelo Estado de Israel sobre os palestinos há 76 anos não significa deixar de condenar as atrocidades cometidas contra civis israelenses em 7 de outubro.
Enquanto a ocupação militar e o apartheid israelenses continuarem existindo e se expandindo, a resposta militar legitimada e justificada por grande parte da imprensa brasileira e ocidental – de forma velada ou explícita – nunca será verdadeiramente vitoriosa. No entanto, o jornalismo hegemônico se recusa a fazer esse debate. De nada serve, também, o discurso pretensamente mais ponderado de condenar a brutalidade dos “dois lados” se não se ressalta que um deles é, de longe, o mais brutal. De nada serve performar timidamente a defesa da criação do Estado palestino se não se aponta que o principal obstáculo para isso é a postura do Estado de Israel de manter a ocupação e promover ininterruptamente a expansão territorial sobre terras palestinas. Que tipo de país seria viável em um território cada vez mais reduzido e fragmentado?
Não é a falta de diálogo ou o “ódio” entre dois povos que impedem o fim do ciclo de violência, mas sim a persistência de uma terrível injustiça que nem as potências ocidentais nem a mídia empresarial desses países e do Brasil têm interesse de denunciar ou condenar.
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