domingo, 20 de abril de 2025
Brasil: país do vale tudo?
O vale tudo no Brasil não é só um objeto de duas edições de novela, é um processo histórico recorrente de nosso passado, presente e será que ainda do futuro? A começar com a própria Proclamação da República (1889), que, desde então, sofre algumas ocorrências em processo contínuo, sob o controle das elites econômicas que dominam as políticas regionais e nacionais. Foram várias as tentativas de golpe que não tiveram punição e, mutatis mutante, se repetiram. Com anistia garantida a todos seus executores, essas recorrências foram acontecendo ao longo de nossa história republicana.
Três períodos podem ser compreendidos com similaridades e diferenciações do vale tudo que vem dominando a nação brasileira: o primeiro, ao longo da ditadura (anos 60 a 80), garantiu aos militares torturadores a isenção de um processo de anistia; o segundo — a partir de 1985, no início do processo de democratização, conclusão da nova Constituição (1988) — ocorreu até 2002, com a primeira eleição presidencial direta e o (primeiro) governo Lula.
Por fim, houve um terceiro momento do vale tudo nacional, que teve início no segundo governo Lula e chegou aos tempos mais recentes, com o domínio do Congresso Brasileiro por elites econômico-empresariais que tanto levaram à ocorrência de processos como o Mensalão e o Petrolão, como à posterior deposição da presidenta Dilma Rousseff.
Mas não só, vale tudo também ocorre com a entrega total dos governos a um Centrão conjugado a outros partidos políticos, inclusive de uma direita mais radical. Não exclui o atual governo Lula, que continua patinando com as elites.
Trata-se de momentos similares, apesar de algumas diferenças quanto aos detentores pessoais do poder que continuam a realizar o que venha a ser interesse lucrativo em detrimento de demandas nacionais. No "mostra a sua cara", o Brasil atual continua o mesmo: dos poderes voltados às elites e do povo abandonado.
A novidade atual é que, pela primeira vez, está em curso uma proposta de anistia preventiva — dado que o crime de tentativa de golpe ainda não foi julgado e, portanto, ainda não há sequer a condenação de seus mentores. Esse novo vale tudo entrou em ritmo acelerado de execução num Congresso Nacional turbinado com mais de R$ 50 bilhões, vantagem ganha mesmo após o fim do financiamento privado que tanto o corrompia, e com uma nova aliança dos políticos em exercício, representantes das novas elites (bélica, do agronegócio e evangélicos).
Começa-se a acelerar uma tentativa que visa não só a "anistia preventiva" dos mentores do ataque à democracia. Configura-se, ainda, a vingança especial ao Supremo Tribunal Federal (STF) pela condenação e, também, pela vigilância ao descontrole nas emendas parlamentares.
Essa nova edição do vale tudo Brasil dependerá, além da anistia preventiva, do que vier a acontecer em breve com relação às votações de políticas redistributivas em curso no Congresso. Já se sabe que as riquezas nacionais deverão continuar, no campo legal, a serem direcionadas para elites donas da dívida interna, que gozam de subsídios tributários empresariais e a quase total isenção de impostos de renda pessoal e familiar.
E no campo ilegal? Será que continuarão, por exemplo, os desvios de recursos públicos por "propinas" e "rachadinhas"? Negarão a isenção de impostos para os pobres e remediados de renda até R$ 5 mil, compensada pelo aumento compensatório da hoje parca tributação dos rendimentos que sejam maiores que R$ 50 mil mensais ou milhão anual?
Ressalte-se que o período proposto para o tal projeto de anistia preventiva antecede, em meses, os atos golpistas de 8 de janeiro de 2023. Sem dúvidas, denunciando que nada é em defesa da massa popular manejada nos atos de vandalismo, mas direcionado para o tal grupo político militar que os controlava. Nesse lamaçal, nós, o real povo brasileiro, derrapamos, há centena de anos, num potentíssimo vale tudo em defesa dos privilégios dominantes. Aguardemos as cenas dos próximos capítulos: Brasil, mostra a tua cara!
Três períodos podem ser compreendidos com similaridades e diferenciações do vale tudo que vem dominando a nação brasileira: o primeiro, ao longo da ditadura (anos 60 a 80), garantiu aos militares torturadores a isenção de um processo de anistia; o segundo — a partir de 1985, no início do processo de democratização, conclusão da nova Constituição (1988) — ocorreu até 2002, com a primeira eleição presidencial direta e o (primeiro) governo Lula.
Por fim, houve um terceiro momento do vale tudo nacional, que teve início no segundo governo Lula e chegou aos tempos mais recentes, com o domínio do Congresso Brasileiro por elites econômico-empresariais que tanto levaram à ocorrência de processos como o Mensalão e o Petrolão, como à posterior deposição da presidenta Dilma Rousseff.
Mas não só, vale tudo também ocorre com a entrega total dos governos a um Centrão conjugado a outros partidos políticos, inclusive de uma direita mais radical. Não exclui o atual governo Lula, que continua patinando com as elites.
Trata-se de momentos similares, apesar de algumas diferenças quanto aos detentores pessoais do poder que continuam a realizar o que venha a ser interesse lucrativo em detrimento de demandas nacionais. No "mostra a sua cara", o Brasil atual continua o mesmo: dos poderes voltados às elites e do povo abandonado.
A novidade atual é que, pela primeira vez, está em curso uma proposta de anistia preventiva — dado que o crime de tentativa de golpe ainda não foi julgado e, portanto, ainda não há sequer a condenação de seus mentores. Esse novo vale tudo entrou em ritmo acelerado de execução num Congresso Nacional turbinado com mais de R$ 50 bilhões, vantagem ganha mesmo após o fim do financiamento privado que tanto o corrompia, e com uma nova aliança dos políticos em exercício, representantes das novas elites (bélica, do agronegócio e evangélicos).
Começa-se a acelerar uma tentativa que visa não só a "anistia preventiva" dos mentores do ataque à democracia. Configura-se, ainda, a vingança especial ao Supremo Tribunal Federal (STF) pela condenação e, também, pela vigilância ao descontrole nas emendas parlamentares.
Essa nova edição do vale tudo Brasil dependerá, além da anistia preventiva, do que vier a acontecer em breve com relação às votações de políticas redistributivas em curso no Congresso. Já se sabe que as riquezas nacionais deverão continuar, no campo legal, a serem direcionadas para elites donas da dívida interna, que gozam de subsídios tributários empresariais e a quase total isenção de impostos de renda pessoal e familiar.
E no campo ilegal? Será que continuarão, por exemplo, os desvios de recursos públicos por "propinas" e "rachadinhas"? Negarão a isenção de impostos para os pobres e remediados de renda até R$ 5 mil, compensada pelo aumento compensatório da hoje parca tributação dos rendimentos que sejam maiores que R$ 50 mil mensais ou milhão anual?
Ressalte-se que o período proposto para o tal projeto de anistia preventiva antecede, em meses, os atos golpistas de 8 de janeiro de 2023. Sem dúvidas, denunciando que nada é em defesa da massa popular manejada nos atos de vandalismo, mas direcionado para o tal grupo político militar que os controlava. Nesse lamaçal, nós, o real povo brasileiro, derrapamos, há centena de anos, num potentíssimo vale tudo em defesa dos privilégios dominantes. Aguardemos as cenas dos próximos capítulos: Brasil, mostra a tua cara!
Hora e vez da performance do papagaio
O democrata Cory Booker, primeiro senador negro de New Jersey, bateu o recorde mundial de duração de um discurso parlamentar, falando em pé na tribuna contra Trump 25 horas ininterruptas, sem pausa para a toalete. Oposicionistas insinuaram o uso de fralda, mas o fato é que ele superou o recorde do republicano Strom Thurmond, supremacista branco da Carolina do Sul que, muitos anos atrás, deblaterou por 24 horas contra a Lei dos Direitos Civis.
Em termos de energia física, essas façanhas evocam as maratonas de dança durante a Grande Depressão nos EUA, cujos participantes iam até a exaustão para ganhar alguns trocados. Foram dramatizadas em "A noite dos desesperados", filme célebre de Sidney Pollack (1969). Algo não tão estranho quanto a famosa epidemia de Estrasburgo (1518) em que as pessoas dançavam até a morte, mas extremo ainda assim.
Em extremismo vocal, os senadores superam Fidel Castro, quando falava seis horas a um público que se esbaldava em rum, melancia e danças. Aparentemente ninguém escutava nada, mas há testemunha de que, uma vez, quando tossiu, a multidão gritou em uníssono: "Que se cuide, Fidel!". Já entre nós, é recente a opinião do ator Marco Nanini depois de uma sessão da Câmara dos Deputados: "Aquilo é um caos, todos falam, ninguém ouve!"
Mas psitacismo, a performance do papagaio, tem relevância acadêmica. Sobre mecanismos sociais contrários ao Estado, o etnólogo Pierre Clastres observou que os Guayki, sem obedecer literalmente ao chefe, davam grande importância à sua fala. Não pelo dito, mas pelo longo desempenho, uma retórica do tempo em que importa a voz da chefia, não o significado das palavras.
Agora, com a racionalidade oficial pelo avesso, vale uma ideia do que Cory Booker disse, ou apenas performou, chocado por magna obscenidade. Se entendermos a palavra como ver sem mediações a cena de um tabu, é espantosamente obsceno o governo de Donald Trump. Ele é o primeiro a acumular o cargo com gestão de negócios. Em Doral, seu resort de 643 apartamentos, próximo a Mar-a-Lago, mistura golfe com levantamento de fundos, já em campanha para um hipotético terceiro mandato. O preço por cabeça de um jantar é US$ 1,3 milhão. Disse um dos convidados: "É tudo só negócios e dinheiro. A América é uma empresa".
Obscena é a exibição sem véus do poder mefistofélico do dinheiro, indiferente à turbulência e ao sofrimento causados por Trump, agente da destruição pelo caos, que mascara seus interesses privados. Aos investidores bilionários garante que "não é a hora de ficar apenas rico, e sim mais rico". Disso tomou conhecimento a imprensa enquanto ele jogava golfe com Yasir Al-Rumayyan, gestor do fundo soberano de US$ 925 bilhões da Arábia Saudita.
Tudo isso é público, a fala de Cory Booker não trouxe surpresas aos pares no Senado. Mas sua performance é um sobressalto crítico ao espírito do tempo em que loucura metódica não é apenas construção dramática. A expressão machadiana "química do tempo" daria talvez melhor conta do que se passa: uma assustadora e acelerada dissolução dos sentimentos morais.
Em termos de energia física, essas façanhas evocam as maratonas de dança durante a Grande Depressão nos EUA, cujos participantes iam até a exaustão para ganhar alguns trocados. Foram dramatizadas em "A noite dos desesperados", filme célebre de Sidney Pollack (1969). Algo não tão estranho quanto a famosa epidemia de Estrasburgo (1518) em que as pessoas dançavam até a morte, mas extremo ainda assim.
Em extremismo vocal, os senadores superam Fidel Castro, quando falava seis horas a um público que se esbaldava em rum, melancia e danças. Aparentemente ninguém escutava nada, mas há testemunha de que, uma vez, quando tossiu, a multidão gritou em uníssono: "Que se cuide, Fidel!". Já entre nós, é recente a opinião do ator Marco Nanini depois de uma sessão da Câmara dos Deputados: "Aquilo é um caos, todos falam, ninguém ouve!"
Mas psitacismo, a performance do papagaio, tem relevância acadêmica. Sobre mecanismos sociais contrários ao Estado, o etnólogo Pierre Clastres observou que os Guayki, sem obedecer literalmente ao chefe, davam grande importância à sua fala. Não pelo dito, mas pelo longo desempenho, uma retórica do tempo em que importa a voz da chefia, não o significado das palavras.
Agora, com a racionalidade oficial pelo avesso, vale uma ideia do que Cory Booker disse, ou apenas performou, chocado por magna obscenidade. Se entendermos a palavra como ver sem mediações a cena de um tabu, é espantosamente obsceno o governo de Donald Trump. Ele é o primeiro a acumular o cargo com gestão de negócios. Em Doral, seu resort de 643 apartamentos, próximo a Mar-a-Lago, mistura golfe com levantamento de fundos, já em campanha para um hipotético terceiro mandato. O preço por cabeça de um jantar é US$ 1,3 milhão. Disse um dos convidados: "É tudo só negócios e dinheiro. A América é uma empresa".
Obscena é a exibição sem véus do poder mefistofélico do dinheiro, indiferente à turbulência e ao sofrimento causados por Trump, agente da destruição pelo caos, que mascara seus interesses privados. Aos investidores bilionários garante que "não é a hora de ficar apenas rico, e sim mais rico". Disso tomou conhecimento a imprensa enquanto ele jogava golfe com Yasir Al-Rumayyan, gestor do fundo soberano de US$ 925 bilhões da Arábia Saudita.
Tudo isso é público, a fala de Cory Booker não trouxe surpresas aos pares no Senado. Mas sua performance é um sobressalto crítico ao espírito do tempo em que loucura metódica não é apenas construção dramática. A expressão machadiana "química do tempo" daria talvez melhor conta do que se passa: uma assustadora e acelerada dissolução dos sentimentos morais.
'Realidade biológica': O que a genética ensina sobre raça
Quando os cientistas revelaram o primeiro rascunho do Projeto Genoma Humano, há 25 anos, ele pareceu dar a palavra final sobre alguns mitos antiquados sobre raça. Forneceu evidências definitivas de que os grupos raciais não têm base biológica. Na verdade, há mais variação genética dentro dos grupos raciais do que entre eles . A raça, mostrou, é uma construção social.
Mas, apesar dessa descoberta fundamental, que só foi reforçada com a continuidade do trabalho com genomas humanos, raça e etnia ainda são frequentemente utilizadas para categorizar populações humanas como grupos biológicos distintos. Essas são visões que podem ser encontradas circulando na pseudociência das mídias sociais, mas também ainda se infiltram na pesquisa científica e nos sistemas de saúde .
Adam Rutherford é professor de genética no University College London, no Reino Unido, apresentador da BBC e autor de "How to Argue with a Racist", que examina a história e a ciência das noções de raça.
O presidente Donald Trump e seu governo não escondem sua rejeição a muitos aspectos da visão de mundo científica. Desde seu retorno à Casa Branca, ele realizou cortes drásticos no financiamento científico para pesquisas biomédicas e climáticas , mas, em uma recente Ordem Executiva, Trump criticou o que a maioria dos cientistas agora considera uma realidade biológica.
Intitulada " Restaurando a Verdade e a Sanidade na História Americana ", a ordem presidencial, assinada por Trump, teve como alvo uma exposição no Museu de Arte Americana Smithsonian chamada "A Forma do Poder: Histórias de Raça e Escultura Americana".
A ordem faz parte de uma tentativa mais ampla de moldar a cultura americana, eliminando "ideologia imprópria, divisiva ou antiamericana" dos museus do instituto. Ela afirma: "Os museus na capital do nosso país devem ser lugares onde os indivíduos vão para aprender – não para serem submetidos a doutrinação ideológica ou narrativas divisivas que distorcem nossa história compartilhada."
É nesse ponto que pessoas como eu, uma geneticista especializada em história da ciência racial, ficam um pouco irritadas.
A questão aqui é que a frase citada do Smithsonian está 100% correta. Isso não é controverso nem na ciência nem na história.
A variação humana é, obviamente, muito real. As pessoas são diferentes, e podemos ver essas diferenças na pigmentação da pele, na cor e textura do cabelo e em outras características físicas. Essas diferenças se concentram em locais ao redor do mundo: pessoas da mesma região, em média, se parecem mais entre si do que com pessoas de outras áreas – até aqui, tudo óbvio.
No século XVIII, essas características foram os principais determinantes de uma nova maneira de categorizar os humanos em termos supostamente científicos. O botânico sueco Karl Linnaeus é legitimamente creditado como o pai da biologia moderna, pois nos deu o sistema de classificação que usamos até hoje : gênero e espécie. Todos os seres vivos são nomeados de acordo com esse sistema, por exemplo, a bactéria Escherichia coli , ou o leão, Panthera leo , ou o gorila , que provavelmente dispensam explicações.
Somos Homo sapiens – pessoas sábias. Mas em sua obra fundamental, Systemae Naturae , Lineu introduziu outro nível de classificação para nós , designado principalmente pela mais visível das características humanas: a pigmentação. Lineu nos deu quatro tipos de humanos, agrupados por massas continentais: Asiáticos – pessoas com "pele amarela" e cabelos pretos lisos; Americanos – indígenas americanos, com "pele vermelha" e cabelos pretos lisos; Africanos – pessoas de "pele negra" com cachos apertados nos cabelos; e Europeus – pessoas de "pele branca" com olhos azuis.
Essas designações são claramente absurdas – nenhuma das cores é precisa, mesmo que se considere a visão obviamente incorreta de que milhões de pessoas compartilham os mesmos tons de pele, mesmo dentro dessas categorias. Mas as raízes das designações raciais que ainda usamos hoje são visíveis nesses rótulos. Alguns desses termos perderam a aceitação social e são considerados racistas. Mas ainda usamos "preto" e "branco" como descritores para milhões de pessoas, nenhuma das quais realmente tem pele preta ou branca.
Mesmo que esse esquema de cores fosse verdadeiro, as descrições originais de Lineu começavam apenas com características físicas. O que ele incluiu em edições posteriores do Systemae Naturae , que se tornou a base para o racismo científico , eram retratos de comportamentos. Os asiáticos eram descritos como "arrogantes, gananciosos e governados por opiniões", enquanto os americanos eram rotulados como "teimosos, zelosos, regulados por costumes". As mulheres africanas eram descritas como "sem vergonha", enquanto ambos os sexos eram considerados "astutos, preguiçosos e governados por capricho". Ele descreveu Europaeus como "gentil, perspicaz, inventivo, governado por leis".
Por qualquer definição e em qualquer época, essas afirmações são racistas e totalmente incorretas.
É claro que, ao examinar a história, devemos ter cuidado ao julgar pessoas do passado pelos nossos próprios padrões. Mas, como texto fundamental da biologia moderna, introduzir um sistema de classificação para humanos que é ridículo, racista e, acima de tudo, hierárquico, deixaria uma marca indelével nos séculos seguintes.
Ao longo dos 200 anos seguintes, muitos homens buscaram refinar essas categorias com novas métricas, incluindo interpretações pseudocientíficas da craniometria, ou medidas do crânio. Nunca chegaram a uma resposta definitiva sobre quantas raças existem – nenhuma das características utilizadas é imutável, nem exclusiva das pessoas para as quais eram supostamente essenciais. Chamamos essa ideologia de "essencialismo racial". Mas todos esses esquemas colocam os europeus brancos como superiores a todos os outros.
Foi o biólogo Charles Darwin quem primeiro começou a desconstruir essas ideias, reconhecendo em seu livro "A Origem do Homem", de 1871 , que havia muito mais continuidade nas características entre pessoas que haviam sido designadas como raças distintas. No início do século XX, a biologia molecular entrou em cena, e a era da genética desmantelaria o conceito biológico de raça.
Quando começamos a analisar como os genes são compartilhados em famílias e populações, vimos que as semelhanças de fato se agrupam em grupos, mas esses agrupamentos não se alinham com as tentativas de longa data de classificar as raças. A verdadeira métrica da diferença humana está no nível genético. No século XX, quando começamos a desvendar nossos genomas e a observar como as pessoas são semelhantes e diferentes em nosso DNA, vimos que os termos em uso por vários séculos tinham pouca relação significativa com a genética subjacente.
Embora apenas uma pequena porcentagem do nosso DNA difira entre os indivíduos, o genoma é tão grande e complexo que existe uma grande diversidade. Os geneticistas ainda estão trabalhando para desvendar como isso altera a saúde das pessoas , por exemplo. Mas essas diferenças genéticas não se delineiam segundo o que chamamos de raça. Elas seguem linhas ancestrais, podem diferir por localização geográfica e podem ser rastreadas por padrões históricos de migração .
O que sabemos agora é que há mais diversidade genética em pessoas de ascendência africana recente do que no resto do mundo somado. Considere duas pessoas, por exemplo, da Etiópia e da Namíbia, e elas serão mais diferentes entre si em nível genético do que qualquer uma delas é de um europeu branco, ou mesmo de um japonês, um inuit ou um indiano. Isso inclui os genes envolvidos na pigmentação .
No entanto, por razões históricas, continuamos a nos referir tanto a etíopes quanto a namibianos sob a definição racial de "negros". Ou consideremos os afro-americanos, pessoas em grande parte descendentes de africanos escravizados trazidos para o Novo Mundo: o sequenciamento dos genomas de negros americanos revela ecos da história da escravidão transatlântica. Eles não apenas misturaram ancestralidade genética dos poucos países da África Ocidental de onde seus ancestrais foram retirados, mas também quantidades significativas de DNA de europeus brancos. Isso reflete o fato de que proprietários de escravos tinham relações sexuais – muitas das quais não teriam sido consensuais – com pessoas escravizadas.
Portanto, a simples categorização dos descendentes dos escravizados como "negros" também não faz sentido biológico. Eles são geneticamente diversos e diferentes dos ancestrais africanos dos quais descendem. Colocá-los juntos não faz sentido científico.
Portanto, é por consenso, uso e história que continuamos a usar o termo "negro". É isso que queremos dizer com uma construção social. O conceito de raça tem pouca utilidade como taxonomia biológica. Mas é extremamente importante social e culturalmente. Construções sociais são como o mundo funciona: dinheiro e tempo também são construídos socialmente. O valor de uma libra ou dólar é aplicado por acordo a bens e serviços. O tempo passa infalivelmente, mas horas e minutos são unidades inteiramente arbitrárias.
Embora a raça não seja biologicamente significativa, ela tem consequências biologicamente significativas. O impacto da maioria das doenças está correlacionado com a pobreza . Como pessoas com ascendência étnica minoritária tendem a estar em níveis socioeconômicos mais baixos , as doenças tendem a afetá-las mais severamente. Isso é verdade em todos os aspectos, mas foi exposto logo no início da pandemia . Negros, sul-asiáticos e, na América, hispânicos foram desproporcionalmente infectados e morreram de Covid-19.
A mídia imediatamente começou a buscar uma razão que reificasse uma versão biológica da raça, às vezes com foco no metabolismo da vitamina D, que está ligado à produção de melanina e tem efeitos em infecções virais. Alguns estudos mostraram que níveis mais baixos de vitamina D estavam associados à suscetibilidade à infecção por covid entre pessoas negras. Mas isso é uma correlação, não uma causa.
Por trás de quaisquer pequenas diferenças biológicas, existem causas muito mais potentes: enquanto muitos de nós estávamos confinados, os trabalhadores da linha de frente do NHS, as pessoas que limpavam nosso lixo e dirigiam nossos ônibus tinham maior probabilidade de pertencer a minorias étnicas. Eles simplesmente tinham um risco maior de serem expostos e, portanto, infectados pelo vírus . Combine isso com o fato de que grupos minoritários têm maior probabilidade de viver em moradias urbanas densas e multigeracionais , e a suposta suscetibilidade biológica desaparece.
É por isso que a genética desempenhou um papel tão importante no desmantelamento de uma justificativa científica para a raça e na compreensão do próprio racismo. E é por isso que a última declaração da Casa Branca de Trump está preocupando muitos na comunidade científica .
Trump fala frequentemente sobre aspectos da genética para defender argumentos políticos. Uma visão que ele tem expressado repetidamente é a de que algumas pessoas, e previsivelmente ele próprio, são geneticamente superiores. "Vocês têm bons genes, sabem disso, certo?", disse ele em setembro de 2020 em um comício em Minnesota – um estado com mais de 80% de população branca . "Vocês têm bons genes. Muito disso tem a ver com os genes, não é mesmo, vocês não acreditam? Vocês têm bons genes em Minnesota."
Da mesma forma, na bem-sucedida campanha de 2024, ele denunciou os imigrantes como portadores de "genes ruins" . É difícil para alguém que estuda genes – e a estranha e às vezes perturbadora história da genética – entender até mesmo o que pode constituir um gene "ruim" ou "bom".
A nossa pode ser uma história perniciosa, mas a trajetória da genética tem sido uma trajetória que tende ao progresso e à equidade para todos, conforme consagrado na Declaração da Independência.
Mas, apesar dessa descoberta fundamental, que só foi reforçada com a continuidade do trabalho com genomas humanos, raça e etnia ainda são frequentemente utilizadas para categorizar populações humanas como grupos biológicos distintos. Essas são visões que podem ser encontradas circulando na pseudociência das mídias sociais, mas também ainda se infiltram na pesquisa científica e nos sistemas de saúde .
Adam Rutherford é professor de genética no University College London, no Reino Unido, apresentador da BBC e autor de "How to Argue with a Racist", que examina a história e a ciência das noções de raça.
O presidente Donald Trump e seu governo não escondem sua rejeição a muitos aspectos da visão de mundo científica. Desde seu retorno à Casa Branca, ele realizou cortes drásticos no financiamento científico para pesquisas biomédicas e climáticas , mas, em uma recente Ordem Executiva, Trump criticou o que a maioria dos cientistas agora considera uma realidade biológica.
Intitulada " Restaurando a Verdade e a Sanidade na História Americana ", a ordem presidencial, assinada por Trump, teve como alvo uma exposição no Museu de Arte Americana Smithsonian chamada "A Forma do Poder: Histórias de Raça e Escultura Americana".
A ordem faz parte de uma tentativa mais ampla de moldar a cultura americana, eliminando "ideologia imprópria, divisiva ou antiamericana" dos museus do instituto. Ela afirma: "Os museus na capital do nosso país devem ser lugares onde os indivíduos vão para aprender – não para serem submetidos a doutrinação ideológica ou narrativas divisivas que distorcem nossa história compartilhada."
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Roberto Lugo, DNA Study Revisited , |
A própria exposição é criticada no texto por promover a ideia de que "raça não é uma realidade biológica, mas uma construção social", afirmando que "raça é uma invenção humana". A ordem apresenta a exposição como um exemplo de uma mudança "prejudicial e opressiva" na narrativa que retrata os valores americanos.
É nesse ponto que pessoas como eu, uma geneticista especializada em história da ciência racial, ficam um pouco irritadas.
A questão aqui é que a frase citada do Smithsonian está 100% correta. Isso não é controverso nem na ciência nem na história.
A variação humana é, obviamente, muito real. As pessoas são diferentes, e podemos ver essas diferenças na pigmentação da pele, na cor e textura do cabelo e em outras características físicas. Essas diferenças se concentram em locais ao redor do mundo: pessoas da mesma região, em média, se parecem mais entre si do que com pessoas de outras áreas – até aqui, tudo óbvio.
No século XVIII, essas características foram os principais determinantes de uma nova maneira de categorizar os humanos em termos supostamente científicos. O botânico sueco Karl Linnaeus é legitimamente creditado como o pai da biologia moderna, pois nos deu o sistema de classificação que usamos até hoje : gênero e espécie. Todos os seres vivos são nomeados de acordo com esse sistema, por exemplo, a bactéria Escherichia coli , ou o leão, Panthera leo , ou o gorila , que provavelmente dispensam explicações.
Somos Homo sapiens – pessoas sábias. Mas em sua obra fundamental, Systemae Naturae , Lineu introduziu outro nível de classificação para nós , designado principalmente pela mais visível das características humanas: a pigmentação. Lineu nos deu quatro tipos de humanos, agrupados por massas continentais: Asiáticos – pessoas com "pele amarela" e cabelos pretos lisos; Americanos – indígenas americanos, com "pele vermelha" e cabelos pretos lisos; Africanos – pessoas de "pele negra" com cachos apertados nos cabelos; e Europeus – pessoas de "pele branca" com olhos azuis.
Essas designações são claramente absurdas – nenhuma das cores é precisa, mesmo que se considere a visão obviamente incorreta de que milhões de pessoas compartilham os mesmos tons de pele, mesmo dentro dessas categorias. Mas as raízes das designações raciais que ainda usamos hoje são visíveis nesses rótulos. Alguns desses termos perderam a aceitação social e são considerados racistas. Mas ainda usamos "preto" e "branco" como descritores para milhões de pessoas, nenhuma das quais realmente tem pele preta ou branca.
Mesmo que esse esquema de cores fosse verdadeiro, as descrições originais de Lineu começavam apenas com características físicas. O que ele incluiu em edições posteriores do Systemae Naturae , que se tornou a base para o racismo científico , eram retratos de comportamentos. Os asiáticos eram descritos como "arrogantes, gananciosos e governados por opiniões", enquanto os americanos eram rotulados como "teimosos, zelosos, regulados por costumes". As mulheres africanas eram descritas como "sem vergonha", enquanto ambos os sexos eram considerados "astutos, preguiçosos e governados por capricho". Ele descreveu Europaeus como "gentil, perspicaz, inventivo, governado por leis".
Por qualquer definição e em qualquer época, essas afirmações são racistas e totalmente incorretas.
É claro que, ao examinar a história, devemos ter cuidado ao julgar pessoas do passado pelos nossos próprios padrões. Mas, como texto fundamental da biologia moderna, introduzir um sistema de classificação para humanos que é ridículo, racista e, acima de tudo, hierárquico, deixaria uma marca indelével nos séculos seguintes.
Ao longo dos 200 anos seguintes, muitos homens buscaram refinar essas categorias com novas métricas, incluindo interpretações pseudocientíficas da craniometria, ou medidas do crânio. Nunca chegaram a uma resposta definitiva sobre quantas raças existem – nenhuma das características utilizadas é imutável, nem exclusiva das pessoas para as quais eram supostamente essenciais. Chamamos essa ideologia de "essencialismo racial". Mas todos esses esquemas colocam os europeus brancos como superiores a todos os outros.
Foi o biólogo Charles Darwin quem primeiro começou a desconstruir essas ideias, reconhecendo em seu livro "A Origem do Homem", de 1871 , que havia muito mais continuidade nas características entre pessoas que haviam sido designadas como raças distintas. No início do século XX, a biologia molecular entrou em cena, e a era da genética desmantelaria o conceito biológico de raça.
Quando começamos a analisar como os genes são compartilhados em famílias e populações, vimos que as semelhanças de fato se agrupam em grupos, mas esses agrupamentos não se alinham com as tentativas de longa data de classificar as raças. A verdadeira métrica da diferença humana está no nível genético. No século XX, quando começamos a desvendar nossos genomas e a observar como as pessoas são semelhantes e diferentes em nosso DNA, vimos que os termos em uso por vários séculos tinham pouca relação significativa com a genética subjacente.
Embora apenas uma pequena porcentagem do nosso DNA difira entre os indivíduos, o genoma é tão grande e complexo que existe uma grande diversidade. Os geneticistas ainda estão trabalhando para desvendar como isso altera a saúde das pessoas , por exemplo. Mas essas diferenças genéticas não se delineiam segundo o que chamamos de raça. Elas seguem linhas ancestrais, podem diferir por localização geográfica e podem ser rastreadas por padrões históricos de migração .
O que sabemos agora é que há mais diversidade genética em pessoas de ascendência africana recente do que no resto do mundo somado. Considere duas pessoas, por exemplo, da Etiópia e da Namíbia, e elas serão mais diferentes entre si em nível genético do que qualquer uma delas é de um europeu branco, ou mesmo de um japonês, um inuit ou um indiano. Isso inclui os genes envolvidos na pigmentação .
No entanto, por razões históricas, continuamos a nos referir tanto a etíopes quanto a namibianos sob a definição racial de "negros". Ou consideremos os afro-americanos, pessoas em grande parte descendentes de africanos escravizados trazidos para o Novo Mundo: o sequenciamento dos genomas de negros americanos revela ecos da história da escravidão transatlântica. Eles não apenas misturaram ancestralidade genética dos poucos países da África Ocidental de onde seus ancestrais foram retirados, mas também quantidades significativas de DNA de europeus brancos. Isso reflete o fato de que proprietários de escravos tinham relações sexuais – muitas das quais não teriam sido consensuais – com pessoas escravizadas.
Portanto, a simples categorização dos descendentes dos escravizados como "negros" também não faz sentido biológico. Eles são geneticamente diversos e diferentes dos ancestrais africanos dos quais descendem. Colocá-los juntos não faz sentido científico.
Portanto, é por consenso, uso e história que continuamos a usar o termo "negro". É isso que queremos dizer com uma construção social. O conceito de raça tem pouca utilidade como taxonomia biológica. Mas é extremamente importante social e culturalmente. Construções sociais são como o mundo funciona: dinheiro e tempo também são construídos socialmente. O valor de uma libra ou dólar é aplicado por acordo a bens e serviços. O tempo passa infalivelmente, mas horas e minutos são unidades inteiramente arbitrárias.
Embora a raça não seja biologicamente significativa, ela tem consequências biologicamente significativas. O impacto da maioria das doenças está correlacionado com a pobreza . Como pessoas com ascendência étnica minoritária tendem a estar em níveis socioeconômicos mais baixos , as doenças tendem a afetá-las mais severamente. Isso é verdade em todos os aspectos, mas foi exposto logo no início da pandemia . Negros, sul-asiáticos e, na América, hispânicos foram desproporcionalmente infectados e morreram de Covid-19.
A mídia imediatamente começou a buscar uma razão que reificasse uma versão biológica da raça, às vezes com foco no metabolismo da vitamina D, que está ligado à produção de melanina e tem efeitos em infecções virais. Alguns estudos mostraram que níveis mais baixos de vitamina D estavam associados à suscetibilidade à infecção por covid entre pessoas negras. Mas isso é uma correlação, não uma causa.
Por trás de quaisquer pequenas diferenças biológicas, existem causas muito mais potentes: enquanto muitos de nós estávamos confinados, os trabalhadores da linha de frente do NHS, as pessoas que limpavam nosso lixo e dirigiam nossos ônibus tinham maior probabilidade de pertencer a minorias étnicas. Eles simplesmente tinham um risco maior de serem expostos e, portanto, infectados pelo vírus . Combine isso com o fato de que grupos minoritários têm maior probabilidade de viver em moradias urbanas densas e multigeracionais , e a suposta suscetibilidade biológica desaparece.
É por isso que a genética desempenhou um papel tão importante no desmantelamento de uma justificativa científica para a raça e na compreensão do próprio racismo. E é por isso que a última declaração da Casa Branca de Trump está preocupando muitos na comunidade científica .
Trump fala frequentemente sobre aspectos da genética para defender argumentos políticos. Uma visão que ele tem expressado repetidamente é a de que algumas pessoas, e previsivelmente ele próprio, são geneticamente superiores. "Vocês têm bons genes, sabem disso, certo?", disse ele em setembro de 2020 em um comício em Minnesota – um estado com mais de 80% de população branca . "Vocês têm bons genes. Muito disso tem a ver com os genes, não é mesmo, vocês não acreditam? Vocês têm bons genes em Minnesota."
Da mesma forma, na bem-sucedida campanha de 2024, ele denunciou os imigrantes como portadores de "genes ruins" . É difícil para alguém que estuda genes – e a estranha e às vezes perturbadora história da genética – entender até mesmo o que pode constituir um gene "ruim" ou "bom".
A nossa pode ser uma história perniciosa, mas a trajetória da genética tem sido uma trajetória que tende ao progresso e à equidade para todos, conforme consagrado na Declaração da Independência.
Os EUA e seu presidente antiliberal
O que acontece quando a autoproclamada maior democracia do mundo elege um presidente contrário ao liberalismo? Não devemos nos deixar enganar pelas aparências: mais do que o discurso, liberal é aquele que age como tal, que respeita os pressupostos do liberalismo, tanto na política quanto na economia. Donald Trump, por tudo que já fez em seu segundo mandato, é um presidente antiliberal, um dirigente mais aproximado a um autocrata do que a um presidente republicado contido pela "rule of law".
O adjetivo liberal é uma das muitas palavras do léxico político que vão se tornando opacas à medida em que seu uso inflaciona, mas designa uma atitude muito clara, do ponto de vista da filosofia política. O liberal é sobretudo um defensor da primazia da autonomia do indivíduo, um princípio que estabelece limites muito claros e firmes à capacidade de interferência e intervenção estatal. Falando de um modo simples: o liberal quer viver sua vida a seu modo sem que o Estado se intrometa em suas crenças, decisões pessoais e negócios.
A maioria das democracias contemporâneas herdeiras da filosofia liberal do século XVIII, dentre elas a brasileira, convive com uma versão atenuada do liberalismo clássico. Entende-se que a autonomia individual é uma garantia fundamental de todas as pessoas ao mesmo tempo em que se atribui ao estado papéis não só regulatórios, mas também programáticos, voltados à busca da redução da desigualdade social. Os Estados Unidos, ao contrário de países de liberalismo atenuado pelo desenvolvimentismo, é o baluarte desse tipo de liberalismo que podemos chamar de "clássico".
Essa fidelidade aos pressupostos liberais fortes é um dos elementos constitutivos da economia de livre mercado americana. Por décadas, investidores viram os Estados Unidos como um lugar seguro para alocar seus recursos, um país caracterizado por instituições estáveis e por um estado de direito rigoroso, algo importante quando se precisa de previsibilidade quanto ao futuro, a redução da incerteza que tanto apavora os tantos mercados.
Ao mesmo tempo, nos acostumamos a reconhecer no sistema jurídico americano uma defesa bastante rigorosa e abrangente da liberdade de expressão e todas a formas de liberdade correlatas - dentre elas a acadêmica e de credo. A América livre era uma terra em que cada um poderia dizer, pensar e produzir o que e tanto quanto quisesse. O estado manteria a retaguarda.
O que torna Donald Trump tão disruptivo é sua ofensa sistemática ao liberalismo e aos princípios estruturantes básicos da vida cultural norte-americana. Ele desorganiza a economia baseada no livre mercado, tumultua o funcionamento de instituições poderosas como as universidades, inviabiliza o controle judicial das violações a direitos quando declaradamente ignora o cumprimento das decisões judiciais. Por isso o mundo está estupefato.
É muito difícil imaginar que tal deterioração aconteça tão rapidamente. Por enquanto, assistimos um tanto incrédulos à passividade de uma sociedade que vê ruir, em meses, toda uma centenária tradição de defesa das liberdades. A América livre acabará? Quão fortes são os valores sociais quando a política os ignora?
O adjetivo liberal é uma das muitas palavras do léxico político que vão se tornando opacas à medida em que seu uso inflaciona, mas designa uma atitude muito clara, do ponto de vista da filosofia política. O liberal é sobretudo um defensor da primazia da autonomia do indivíduo, um princípio que estabelece limites muito claros e firmes à capacidade de interferência e intervenção estatal. Falando de um modo simples: o liberal quer viver sua vida a seu modo sem que o Estado se intrometa em suas crenças, decisões pessoais e negócios.
A maioria das democracias contemporâneas herdeiras da filosofia liberal do século XVIII, dentre elas a brasileira, convive com uma versão atenuada do liberalismo clássico. Entende-se que a autonomia individual é uma garantia fundamental de todas as pessoas ao mesmo tempo em que se atribui ao estado papéis não só regulatórios, mas também programáticos, voltados à busca da redução da desigualdade social. Os Estados Unidos, ao contrário de países de liberalismo atenuado pelo desenvolvimentismo, é o baluarte desse tipo de liberalismo que podemos chamar de "clássico".
Essa fidelidade aos pressupostos liberais fortes é um dos elementos constitutivos da economia de livre mercado americana. Por décadas, investidores viram os Estados Unidos como um lugar seguro para alocar seus recursos, um país caracterizado por instituições estáveis e por um estado de direito rigoroso, algo importante quando se precisa de previsibilidade quanto ao futuro, a redução da incerteza que tanto apavora os tantos mercados.
Ao mesmo tempo, nos acostumamos a reconhecer no sistema jurídico americano uma defesa bastante rigorosa e abrangente da liberdade de expressão e todas a formas de liberdade correlatas - dentre elas a acadêmica e de credo. A América livre era uma terra em que cada um poderia dizer, pensar e produzir o que e tanto quanto quisesse. O estado manteria a retaguarda.
O que torna Donald Trump tão disruptivo é sua ofensa sistemática ao liberalismo e aos princípios estruturantes básicos da vida cultural norte-americana. Ele desorganiza a economia baseada no livre mercado, tumultua o funcionamento de instituições poderosas como as universidades, inviabiliza o controle judicial das violações a direitos quando declaradamente ignora o cumprimento das decisões judiciais. Por isso o mundo está estupefato.
É muito difícil imaginar que tal deterioração aconteça tão rapidamente. Por enquanto, assistimos um tanto incrédulos à passividade de uma sociedade que vê ruir, em meses, toda uma centenária tradição de defesa das liberdades. A América livre acabará? Quão fortes são os valores sociais quando a política os ignora?
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