sábado, 9 de novembro de 2019

Todos os porteiros do presidente

Que ninguém coloque em dúvida a retidão da imprensa profissional. Que ninguém se deixe iludir pelas ameaças do presidente Bolsonaro a jornais e televisões que o incomodam. A história do pérfido e covarde assassinato da vereadora Marielle e seu motorista continuará a ser investigada por bravos repórteres que trabalham não por ideologia mas por uma obsessão íntima: a busca da verdade, doa a quem doer. Há muito a esclarecer.

São dois, até agora, os porteiros que deram depoimentos diferentes sobre a entrada do ex-policial militar Élcio de Queiroz no condomínio Vivendas da Barra no dia do assassinato de Marielle, 14 de março de 2018. No condomínio, morava a família Bolsonaro, a casa ainda pertence ao presidente. Um dos vizinhos, o sargento reformado da PM Ronnie Lessa, está preso, acusado dos disparos feitos com silenciador. Élcio e Lessa se encontraram ali no dia do crime e pegaram, no trajeto, o carro usado para matar Marielle. Élcio seria o motorista. Também está preso.


A investigação troca comandos, é conduzida a passos de tartaruga e revela uma série de erros da perícia e da polícia. Erros primários que não vemos nos seriados policiais na televisão. Nosso pessoal precisa fazer um estágio na Netflix: apenas 6% dos assassinatos no Brasil são elucidados e 94% não. É uma estimativa brutal a favor da impunidade e dos criminosos. 

O fantasma de Marielle, essa mãe negra da Maré, casada com uma mulher, vereadora com 46 mil votos, ativista contra esquadrões da morte, continua a assombrar. Que erro de avaliação do mandante e dos homicidas! No ano passado, escrevi um texto intitulado “Quem era essa Marielle?”. Quem ela pensava que era? Marielle não poderia prever uma comoção nacional se fosse morta. Não suspeitava nem de uma emboscada nem da apropriação de seu nome como bandeira. No Rio, no Brasil, no mundo. Mais de 600 dias após sua morte, sua figura só cresce. Porque a investigação é uma bagunça.

Informações emergem como um cadáver inchado que vem à tona. A polícia já admitiu falhas que adiaram a identificação dos suspeitos, mascararam trajetos, armas e ligações. E as falhas prosseguem. Envolvem desconsiderar mensagens de telefones dos acusados, adulterações nas planilhas de quem entra e sai, perícia nas gravações da portaria. Envolvem apresentar o áudio de um outro porteiro como se fosse o anterior.
Todos se apressam a chamar o primeiro depoimento de “fajuto”. Agora, o maior suspeito de crime de obstrução de justiça, falso testemunho e denúncia caluniosa é o porteiro que registrou o número 58 na planilha e diz ter ouvido a voz de “seu Jair”. Naquele instante, não havia crime, Bolsonaro era apenas um mero deputado e estava em Brasília. Esse porteiro está agora oficialmente “em férias”. Mas foi encontrado pela revista "Veja". Mora<span> em um sobrado com o revestimento de concreto à mostra na Zona Oeste do Rio de Janeiro, segundo a revista. "Ele se chama Alberto Jorge Ferreira Mateus e vive no bairro de Gardênia Azul, fincado em área dominada por milícias na Zona Oeste do Rio de Janeiro", afirma a reportagem.

Surpreendido, ele respondeu, interpelado pelos repórteres: “Eu não estou podendo falar nada. Não posso falar nada". O sigilo oficial voltou com força total após as revelações da TV Globo na semana passada. Até a Lei de Segurança Nacional foi invocada contra o porteiro. Ele “mentiu, se equivocou ou esqueceu”, segundo a promotora do MP. Que o sigilo sirva para preservar a integridade do inquérito e não para mascarar a verdade. O presidente e seus filhos devem ter todo o interesse nisso. Essa lambança é atroz, não?

Meus porteiros não são os campeões da informação exata. Interfonam para o apartamento errado. Esquecem de prevenir que haverá festa no play. Deixam entrar na portaria quem está com uniforme da NET ou Light, artifício manjado de assaltantes. Acontece. Somos humanos. Não fazem por mal. Até agora, só erros inocentes. 

Nenhum vizinho meu foi acusado de executar político a tiros com silenciador. Nenhum filho meu namorou a filha de um assassino. Nunca tirei foto abraçada com motorista acusado de homicídio. Nunca fui amiga de milicianos. Já pensou? A imprensa não ia largar do meu pé até entender direitinho meu papel. Com razão.

Pensamento do Dia


Silêncio de Bolsonaro sobre Lula e STF é gritante

Jair Bolsonaro acatou com reverência e recato o julgamento em que o Supremo Tribunal Federal tachou de inconstitucional a prisão de condenados na segunda instância. Absteve-se de revidar os ataques desferidos por Lula ao deixar a cadeia. Ou seja, Bolsonaro esteve completamente fora de si nas últimas horas. Seu silêncio, por gritante, injeta hipocrisia na conjuntura.

A prudência ensina: "Pense duas vezes antes de falar". Imprudente, Bolsonaro fala dez vezes antes de pensar. De repente, decidiu calar. Nesta sexta-feira, esquivou-se dos repórteres em duas solenidades. À noite, de volta ao Palácio da Alvorada, parou na entrada para distribuir afagos a um grupo de fãs. Fugiu de perguntas sobre STF e Lula. "Não vou entrar numa furada", alegou.



Mais cedo, ao discursar numa cerimônia de formatura do curso de formação de policiais federais, Bolsonaro caprichou na loquacidade ao recobrir de elogios o seu ministro da Justiça. Chegou mesmo a insinuar que não estaria na Presidência se Moro não tivesse feito o que fez como juiz da Lava Jato. "Se essa missão dele não fosse bem cumprida, eu também não estaria aqui. Então, em parte, o que acontece na política do Brasil devemos a Sergio Moro", disse Bolsonaro.

Até os cegos enxergam a manobra retórica do capitão. Para compensar a irritação dos devotos que o criticam nas redes sociais por poupar o Supremo e Lula, Bolsonaro encosta sua imagem declinante na figura mais popular do governo. O prestígio de Moro junto à opinião pública cresce na proporção direta da diminuição de sua reputação nos meios jurídicos.

Bolsonaro não critica o Supremo porque descobriu, depois dos 60 anos de idade, que os ministros Dias Toffoli e Gilmar Mendes são seus amigos de infância. Ambos expediram liminares para blindar o primogênito Flávio Bolsonaro, que é acusado de peculato e lavagem de dinheiro, numa investigação coestrelada pelo PM Fabrício Queiroz. De resto, embora não possa confessar em público, o capitão declara em privado que vê a libertação de Lula como um presente a serviço da polarização.

Nesse contexto, Bolsonaro acaba deixando Sergio Moro em posição vexatória. É como se o ministro emprestasse a respeitabilidade que presume ter para ser utilizada por um chefe espertalhão. Está entendido que, por delegação de 57 milhões de brasileiros, o governo é de Bolsonaro, que carrega a tiracolo o seu clã. Mas é Sergio Moro quem coloca a cara na vitrine por eles.

Aos ricos, a liberdade

Com nova interpretação do STF sobre cumprimento de pena, ricos e poderosos agora tem a certeza da impunidade total sobre seus atos. Já os que não podem pagar as caras bancas de advogados, continuarão lotando nossas prisões
Daniel Coelho, líder do Cidadania na Câmara

Quantos traficantes, ministro?

O Supremo vai realizar, finalmente, velho sonho de ministros bem nossos conhecidos. O de soltar Lula. Sem se preocupar que, além dele, ganharão as ruas um caminhão de condenados. Quantos? Segundo Gleisi, “outros 148 mil criminosos também serão libertados”. Mas ninguém assina embaixo do que diz esta senhora. O Banco Nacional de Monitoramento de Prisões (BNMP), do CNJ, informou serem “190 mil”. E, contraditoriamente, o presidente do mesmo CNJ, Tofolli, reduziu esse número a “só” 4.895. “Só”? Acha pouco?, ministro. Sem que se explique a razão dessa diferença nos números. Antes, 190 mil. Depois, “só” 4.895. Será mesmo?


O ministro Toffoli dispõe dos dados, no CNJ. E tem o dever de completar a informação. Sabemos só de alguns, na Lavajato: Lula, José Dirceu, seu irmão Luiz Eduardo; um timaço com Delúbio, Vaccari, Bumlai, Genu, por aí; altos funcionários da Petrobrás nomeados, pelo governo da época, para distribuir propinas entre os companheiros; e alguns ricaços, donos da Engevix, da Mendes Júnior, da Corretora Bônus Banval. Mas falta saber quais serão os milhares de outros criminosos a serem beneficiados. Quantos traficantes?, senhor ministro. Fernandinho Beira Mar e Marcola estarão nesta ação entre amigos? E quantos pedófilos? E quantos estupradores? E quantos assassinos? Os brasileiros têm direito de saber. Que tudo ocorre em sombras. Para que um único condenado por corrupção seja solto. Não é justo.

Desalentador é também ver "entendidos" se exibindo, em falas e textos lamentáveis, cheios de lugares comuns. Tentando emprestar alguma dignidade a essa decisão pífia. Lembro meu pai, num Discurso de Paraninfo que fez em 1964. No duro ano que inaugurou os duros anos da "Redentora". Disse ele, sobre os que "interpretam" a lei para ferir a democracia: “Quando o despotismo se instaura há, quase sempre, um jurista que não lhe falta com seus serviços. Como se o direito fosse matéria informe sobre a qual se pudesse operar livremente e não devesse ter substancial conteúdo de expressão da consciência coletiva”. Após o que citou Tocqueville: “Ao lado de um déspota que comanda, se encontra quase sempre um jurista”. E concluiu dizendo que “traía sua ciência o jurista que legalizava a tirania”. O velho chamava essa gente de “juristas da ditadura”. Se aqui ainda estivesse, no Brasil de hoje, talvez usasse a expressão “juristas da impunidade”. Advogados e juízes (inclusive ministros!), leves e felizes, devotados “só” a soltar os seus.
José Paulo Cavalcanti Filho

Precisamos falar sobre Guedes

Até agora, os desvarios de Bolsonaro e de alguns de seus ministros e as afrontas constantes à institucionalidade do país têm deixado a equipe econômica do governo em paz. O espaço que teve até aqui a equipe de Paulo Guedes foi importante para a aprovação da reforma da Previdência, que, no frigir dos ovos, foi melhor do que se esperava. As economias que gerará para os cofres públicos nos próximos dez anos parecem adequadas, e a reforma está alinhada tanto com a dinâmica do envelhecimento populacional quanto com a necessidade de tornar as contribuições progressivas, diluindo o mecanismo gerador de desigualdades implícito no regime anterior. É claro que o ideal teria sido combater os privilégios mais diretamente, e é óbvio que os militares não deveriam ter sido poupados. Mas, dentro dos limites do possível, foi uma boa reforma. Fim dos comentários elogiosos.


Na última semana, Guedes desvendou um pacote de propostas de emendas constitucionais (PECs) para reduzir o tamanho do Estado e torná-lo mais eficiente. As PECs também têm como objetivo diminuir a despesa do governo, contribuindo para o equacionamento das contas públicas nos próximos anos. Parece ótimo, não? Quem em sã consciência contestaria esses princípios, sobretudo depois de testemunhar os desmandos do Estado máximo criado durante a gestão de Dilma Rousseff? Reside aí o problema: muita gente parece ter se esquecido de que erros catastróficos como os da condução econômica de Dilma não justificam outros erros catastróficos disfarçados de “liberalismo”, ah, finalmente o “liberalismo”.

É cedo para avaliar o impacto fiscal das medidas de Guedes, mas isso, por incrível que pareça, importa menos. O que realmente importa é a legitimidade das PECs sequenciais ou uma chuva de PECs. Emendas constitucionais da envergadura proposta alterarão, se aprovadas, a estrutura da Constituição de 1988. A Constituição Federal de 1988 cometeu erros, tentou impor um Estado de Bem-Estar Social excessivamente oneroso para a realidade do país. No entanto, o princípio continua correto: em um país de desigualdade elevada e em que a pobreza extrema é não apenas alta, mas está subindo, não há como prescindir das redes de proteção social que a Constituição criou. Na realidade, no debate macroeconômico moderno, em que a economia política voltou a figurar como elemento de análise de extrema importância, não há quem, em sã consciência, possa defender o Estado mínimo de Guedes. Afinal, o Estado precisa ter o tamanho adequado para atender à população e aos desafios sociais atrelados à desigualdade.

A fala de Piñera, em entrevista recente à BBC, é republicana. Trata do tema das manifestações e da desigualdade dentro dos marcos democráticos, destacando que é preciso mudar a Constituição chilena elaborada pelo ditador Augusto Pinochet. Ao que tudo indica, isso será feito da forma correta: não por meio de PECs sequenciais ou de uma chuva de PECs, e sim por meio de uma Assembleia Constituinte que redesenhe o pacto federativo. Guedes anda falando em pacto federativo, criticando os tais 30 anos de social-democracia — alguém viu esses 30 anos? — e afirmando a necessidade das PECs. Mas, ao propor desfigurar a Constituição de 1988 sem passar pelos processos políticos necessários para garantir a legitimidade do que propõe, age, sim, como o restante do governo Bolsonaro. Ignora a institucionalidade democrática, ou a atropela, em nome de um suposto bem maior, que seria o equilíbrio das contas públicas provavelmente à custa dos programas sociais de que o país tanto necessita.

Entre o Estado máximo que leva ao desastre e o Estado mínimo ilegítimo e perigoso em tempos de insatisfação social, há o Estado de tamanho apropriado para atender às necessidades da população. Qual a chance de que tenhamos esse debate em lugar da malemolência cívica que prefere ignorar obviedades? Confesso que não vou prender a respiração.
Monica de Bolle