terça-feira, 29 de outubro de 2019

Se dê um tempo


Bolsonaro planeja um golpe de Estado?

Não há dúvida sobre a posição de Jair Bolsonaro sobre o golpe militar brasileiro e a ditadura que se lhe seguiu: aprovação entusiástica. Não faltam declarações antigas suas dizendo que o erro da ditadura foi ter matado pouco.

Mais recentemente, repetiu o elogio ao golpe militar em sua fala à ONU: “A história nos mostra que, já nos anos 1960, agentes cubanos foram enviados a diversos países para colaborar com a implementação de ditaduras. Há poucas décadas tentaram mudar o regime brasileiro e de outros países da América Latina. Foram derrotados! Civis e militares brasileiros foram mortos e outros tantos tiveram suas reputações destruídas, mas vencemos aquela guerra e resguardamos nossa liberdade”.


A retórica presidencial e de seu núcleo mais ideológico é uníssona em promover o estado de espírito exaltado que pode servir de preparo a um golpe. Os protestos no Chile e no Equador servem para insuflar seu discurso da ameaça comunista.

Seguindo a teoria da conspiração de Olavo de Carvalho (guru de pessoas importantes do governo, inclusive seu filho Eduardo), atribui-se ao todo-poderoso Foro de São Paulo qualquer movimentação à esquerda que ocorra no continente.

Até o vazamento de óleo que assola o litoral do Nordeste virou parte de uma agenda bolivariana para desestabilizar o Brasil. O próprio ministro do Meio Ambiente não se constrangeu de sugerir que o Greenpeace faria parte da conspiração.

Nesta segunda-feira, em mais um caso de promoção de ódio à vida institucional brasileira, o perfil oficial de Bolsonaro no Twitter veiculou um vídeo no qual um leão, representando o presidente, era atacado por uma alcateia de hienas, sobre as quais pairavam o nome de diversos partidos políticos (PT, PSDB, PSOL e até PSL, o partido do presidente), de órgãos de imprensa (inclusive a Folha) e até mesmo de instituições como o STF.

Mídia, Congresso, Judiciário são hienas em conluio para derrubar o presidente. Essa retórica só interessa, evidentemente, a quem quer deslegitimar todos esses agentes; e, possivelmente, tomar atitudes violentas contra eles. Afinal, trata-se de uma guerra.

A facada em Bolsonaro, o óleo nas praias, o bilionário George Soros, a ONU, a jovem Greta Thunberg e até o papa Francisco entram na paranoia das massas de seguidores.

O discurso do presidente e de seu núcleo ideológico encoraja esses e outros delírios, mantendo viva a crença de que um ataque inimigo é iminente e de que é necessário aderir completamente à pessoa do presidente. Os pressupostos necessários para que uma atitude emergencial drástica (fechar STF e Congresso? Perseguir adversários?) tenha apoio popular.

Para qualquer projeto de golpe, o apoio das Forças Armadas é a variável fundamental. Nesse sentido, não é nada tranquilizador ver o general Villas Bôas fazer ameaças veladas à ordem social enquanto o STF se prepara para votar a prisão em segunda instância.

Bolsonaro louva a tortura e a ditadura. Além disso, promove a polarização da sociedade, conjuntura que facilita a imposição de uma ditadura. Será que existe um plano concreto de ruptura institucional e supressão das liberdades democráticas do país?

Ou apenas mantém viva essa possibilidade como um último recurso em caso de necessidade? Ou será que busca os ganhos políticos da polarização sem maiores pretensões? Dados os valores publicamente declarados de Bolsonaro, seríamos tolos se descartássemos qualquer uma dessas hipóteses.
Joel Pinheiro da Fonseca

Brasil submeteu sua história a um processo de avacalhação

Muita gente do campo democrático anda preocupada em superar a atual polarização brasileira e encontrar um rumo para o País. Acontece que o Brasil não vai experimentar nenhuma guinada realmente democrática se não encarar duas coisas. A primeira, mais imediata e superficial, é que este campo democrático se empenhe de fato numa releitura rigorosa do que aconteceu de 2013 para cá. A segunda, exigindo mergulho em águas mais profundas, é a necessidade de repensar a sociedade e reinventar a nação.

Junho de 2013 expressou de forma aguda a crise representacional do partidocratismo. A chamada “classe política” tinha simplesmente dado as costas à sociedade. E esta – numa resposta lógica e natural, mas surpreendentemente enérgica – declarou nas ruas que aquela não a representava. Infelizmente, a discussão acabou sufocada por dois processos. De uma parte, o da corrupção, vindo à luz de forma inédita em nossa história. De outra, o do “impeachment”. E a conversa política mais rica foi adiada. O regime partidocrata sentiu, aliviado, que podia empurrar a questão com a barriga. Neste sentido, a campanha presidencial de 2014 foi escandalosamente esperta, entre a dissimulação e a alienação.

Todos os candidatos – sem exceção – fizeram de conta que 2013 não tinha acontecido. O ideal seria que os partidos tivessem a coragem de fazer uma espécie de “psicanálise selvagem”, para usar a expressão freudiana cara a Glauber Rocha. Como isso não acontecerá dentro do atual sistema político-partidário, teríamos ao menos de rever a peripécia que nos levou ao fracasso. Ou começaremos mal – se é que será possível falar de começo e não de mera continuação de tudo. Insistimos que o PT é incapaz de explicitar seus erros. Mas os demais partidos de esquerda e centro-esquerda, também. Nunca ouvi uma autocrítica em profundidade do PSDB. De outro ângulo, a Rede precisa aprender a ser mais conjuntural ou vai se tornar pura fantasia filosófica. Parece que, hoje, humildade política é um bem bastante escasso no País. Mas vamos ter de passar por esse cabo das tormentas, se quisermos que ele vire da boa esperança.

Quanto ao outro lance, o sociólogo Werneck Vianna passou pelo tema em entrevista recente. Observou que o desentendimento a respeito de nossa trajetória histórica e dos nossos valores chegou a um ponto agônico: “Ninguém mais pode reconhecer na nossa história êxitos e sucessos”. Execra-se até mesmo a Abolição de 1888, luta democrática vigorosa, que se arrastou por décadas, numa ampla coalizão de classes e cores. Enfim, “tudo que era da nossa tradição foi depredado, foi jogado no lixo”. Despreza-se a nossa história, desqualificam-se todos os nossos feitos: o 13 de Maio hoje é “o dia do taxidermista”. A grande questão é esta: de algumas décadas para cá, temos submetido a nossa história como povo e nação, a nossa experiência nacional, a um processo de avacalhação sistemática.


Vou resumir o que aconteceu. A partir da década de 1970, a esquerda começou a produzir uma espécie de contra-história do Brasil. E digo contra-história porque era a mesma velha história oficial, que nos veio de Varnhagen e do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, mas com o sinal algébrico radicalmente invertido: tudo o que antes se celebrava, passou a ser execrado. E tudo que era desconsiderado, passou a ser glorificado. Com o tempo, qualquer feito nacional se tornou alvo de agressão, desprezo e chacota. Na verdade, o que se fez foi substituir mentiras antigas por mentiras novas. O Brasil passou a ser visto como num antigo filme de bandido e mocinho. E foram se multiplicando textos e mais textos nessa direção, conformando então uma nova história oficial do País, desde que ela se gravou nos parâmetros curriculares do ensino, sob o governo de Fernando Henrique Cardoso.

E o processo não parou. Foram pilhas e pilhas de livros, bombardeio diário nas salas de aula. A apresentação da Estação Primeira de Mangueira, no carnaval deste ano, foi na verdade o desfile desta nova história oficial. Houve quem chegasse a escrever que a escola de samba estava contando a história que não se encontrava nos livros. Longe disso: o desfile da Mangueira foi desfecho de anos e anos de doutrinação, via livros, artigos, panfletos, cursinhos políticos, pregação em escolas públicas e privadas. Com todas as suas mistificações, que a esquerda cultua por desconhecimento dos fatos históricos.

Foi assim que vi a ex-ministra da Cultura, minha querida Ana de Holanda, aplaudindo: vamos, com a Mangueira, saudar os malês. Ora, os malês nada tinham a ver com liberdade, igualdade, fraternidade. Pelo contrário: seu projeto, em 1835, incluía fuzilar os brancos e escravizar os mulatos. Como Zumbi, eram africanos escravistas, que lutavam exclusivamente contra a sua própria escravização, não contra a escravidão em geral. Esta só foi combatida, enquanto sistema, pelo movimento abolicionista.

Esta desqualificação da experiência nacional brasileira, como disse, rola no reino do desconhecimento. E o que é pior: no espaço de uma sociedade bipolar. Vai-se então da euforia à depressão em fração de segundo, mas sob os signos constantes do masoquismo e da autodepreciação derivada da ignorância. Daí que ouçamos frases do tipo “é assim desde 1500, é assim desde as capitanias”, por exemplo. Mas é ridículo postular uma linha de continuidade entre Mem de Sá e a Odebrecht. A suposta analogia é fruto apenas da combinação de ignorância histórica e masoquismo nacional.

Claro que temos um vasto elenco de coisas abomináveis em nossa história. E ao mesmo tempo temos muito o quê comemorar. Falei já do movimento abolicionista e de 1888, ainda hoje a nossa maior revolução social. Mas posso dar vários exemplos e em diversos campos. Vejamos. Enquanto os norte-americanos atiravam seus índios em reservas estéreis de poeira e cactos, o Brasil (graças ao general Rondon e aos antropólogos Darcy Ribeiro e Eduardo Galvão, o autor de Santos e Visagens) criou o Parque Nacional do Xingu, um paraíso ecológico maior do que Israel, quase do tamanho da Bélgica.

Mesmo nosso tão criticado espírito de conciliação merece ser visto com outros olhos. Quem o despreza, manifesta-se, admitindo-o ou não, como se só a guerra fratricida, com cidades bombardeadas e gente metralhada nas ruas, pudesse ser a glória suprema. Uma celebração bélica que nos vem de comunistas e do futurista Marinetti – e que aqui podemos encontrar tanto no Retrato do Brasil do aristocrata Paulo Prado quanto nos delírios mais extremistas da esquerda. Um sub-romantismo homicida.

Enfim, o Brasil precisa de uma tremenda mudança de mentalidade com relação a si mesmo. “Metânoia” era a palavra grega para isso, como aprendemos com a “Septuaginta”. Sim: mudar a mentalidade deve ser o objetivo maior. E esta será uma tremenda luta ideológica e cultural. Não para voltar atrás, mas para ajustar as coisas, em leituras mais serenas e menos sectárias.

Temos de ser claros e críticos diante dos legados históricos, mas não cegos, desinformados e unilaterais. Porque o que se fez, com a construção de uma nova história oficial do País, resultou em autossabotagem nacional. Na banalização do tudo-que-o-Brasil-e-os-brasileiros-fazem é merda.

Enfim, é isso. Falando da França oitocentista em seu Diário, Michelet disse algo que se aplica à perfeição à atual conjuntura brasileira: “De todos os males deste país, o mais profundo, a meu ver, é que ele perdeu a consciência de si mesmo, a consciência de sua natureza, de sua missão, de seu papel nesse momento, a consciência histórica de seu verdadeiro passado”. Sem uma revisão crítica do que levou às manifestações de junho de 2013 e desembocou na vitória da extrema direita em 2018, de uma parte – e, de outra, sem um repensamento vertical da nossa história e da nossa sociedade, com vistas a uma reinvenção da nação, dificilmente iremos a algum lugar.
Antonio Risério

Manter um terço com manipulação

Agora ele precisa estar em campanha o tempo todo para transformar em algo orgânico, com substância, a confluência de fatores que o elegeu no ano passado. Seu primeiro mandato, portanto, é de destruição e enfrentamento das instituições. Jair Bolsonaro é o primeiro presidente que governa pensando em apenas um terço do eleitorado,
preocupação é que as pessoas pensem que a manutenção desses 33% do eleitorado se dá só com mentira, manipulação de pessoas.

Claro que existem robôs, tem algo artificial. Mas existe também uma mudança radical de fazer política. Bolsonaro se aproximou de pessoas conectadas no mundo digital, mas que se sentiam excluídas da política há muito tempo
 Marcos Nobre, presidente do Centro Brasileiro de Análise e Planejament

Vídeo indica que os Bolsonaro temem isolamento

Antigamente, quando um presidente precário deixava o país, dizia-se que a crise viajava para o exterior. Hoje, Jair Bolsonaro leva junto as redes sociais. E deixa no Brasil o filho Carluxo, que ajuda a manter os perfis eletrônicos do pai abastecidos com uma cota diária de tolices. A penúltima asneira foi a postagem de um vídeo que simplifica a guerra do bem contra o mal em que Bolsonaro se imagina metido.

A peça associa a figura do presidente da República à de um leão, cercado por hienas enraivecidas, que seriam os inimigos do rei. No final, há um chamamento dirigido aos "conservadores patriotas". Diz o seguinte: "Vamos apoiar o nosso presidente até o fim, e não atacá-lo. Já tem a oposição pra fazer isso!".


Mal comparando, o apelo aos conservadores para que se mantenham ao lado do presidente é algo muito parecido com uma versão eletrônica do pedido feito por Fernando Collor quando o chão de sua Presidência parecia fugir-lhe dos pés: "Não me deixem só!". Talvez por essa razão o vídeo foi retirado das redes sociais de Bolsonaro. Ou o presidente se arrependeu da postagem ou puxou a orelha de Carluxo.

A simplificação esquemática exposta no vídeo revela que Bolsonaro meteu-se num círculo viciado que apequena sua Presidência. É como se o capitão e seus devotos reconhecessem o risco de isolamento. Para adular o bolsonarismo, adotou-se desde o início do governo um linguajar que afugentou o eleitor antipetista de centro. Com a popularidade em queda, Bolsonaro exacerbou o discurso. Condenou-se a dialogar com um terço do eleitorado que ainda o tolera incondicionalmente.

Bolsonaro não soube aproveitar um fenômeno da eleição. Virou presidente numa campanha em que o voto das pessoas que pensam como ele foi anabolizado pelo pedaço do eleitorado que não suportava a ideia de devolver o PT ao poder. Começou a encolher já no dia da posse. Podendo pregar a união nacional, preferiu atiçar a polarização. Discursando no parlatório do Planalto, disse que "o povo começou a se libertar do socialismo". Não se deu conta de que a União Soviética acabou faz 28 anos.

Além de não unir o país, Bolsonaro passou a guerrear com seu próprio grupo. Afastou auxiliares sensatos, criou problemas para o pedaço do governo que tenta mostrar resultados, colocou fogo no circo do PSL. O vídeo reproduzido e depois retirado das redes sociais convoca os patriotas conservadores a saírem em defesa do presidente a partir de uma premissa falsa: a suposição de que os partidos de oposição, a mídia, o STF, a OAB e outros inimigos imaginários constituem uma forte ameaça. Bobagem. Em matéria de oposição, ninguém consegue superar Bolsonaro. O capitão se opõe a si mesmo com uma maestria que nenhum oposicionista consegue igualar.

Pensamento do Dia


Justiça de rico e de pobre

São 337 mil. É gente suficiente para encher quase cinco Maracanãs em dia decisivo para o Flamengo matar a fome de 38 anos na Libertadores.

São quase todos jovens, periféricos, pobres, negros e mulatos, alguns quase brancos ou quase pretos de tão pobres, como descreve Caetano Veloso em “Haiti”.

Presos “provisórios”, para a burocracia, e já somam 41,5% do total de encarcerados (818,8 mil em agosto). São pessoas forçadas a viver dentro das 2,6 mil cadeias. Cumprem pena mesmo sem condenação.

A maioria está trancada há pelo menos quatro anos, 48 meses ou 192 semanas. Espera a assinatura de um juiz para decidir o rumo: vida em liberdade ou no exército oferecido pelo Estado brasileiro aos 80 grupos criminosos que controlam presídios.

Semana passada foram lembrados no plenário do Supremo pelo juiz Luís Roberto Barroso: “Justamente porque o sistema é muito ruim, perto de 40% dos presos do país são presos provisórios. Muitos, sobretudo os pobres, já estão presos desde antes da sentença de primeira instância.”

Debatia-se um aspecto da Constituição, a prisão após condenação em segunda instância. O tema é de interesse legítimo, imediato de 1.799 pessoas encarceradas (0,21% do total) por desvio de dinheiro público (1.161), corrupção ativa (522) e passiva (116). É a quarta revisão do STF em uma década.

É a mesma Constituição que assegura “a todos” o direito à “razoável duração do processo” e “a celeridade de sua tramitação”. No entanto, 337 mil estão lá, provisoriamente, nos porões do Judiciário.

“Pobre não corrompe, não desvia recursos públicos, nem lava dinheiro”, comentou Barroso, realçando a ausência de nexo num sistema que mantém pobres aos magotes aprisionados nas trevas — centenas de milhares, sem sentença—, enquanto conduz um punhado de ricos condenados à vida iluminada pela liberdade até o último recurso em Brasília, com chance de prescrição do crime (quase mil em dois anos).

O Judiciário brasileiro precisa resolver a equação da própria ineficácia. Até porque, já é um dos mais caros do planeta. Custa 1,3% do Produto Interno Bruto, nível de gasto só encontrado na Suíça, cuja população é 25 vezes menor e a renda cinco vezes maior.
José Casado

O Brasil à beira do precipício

Há um ano, em 28 de outubro de 2018, era eleito o atual presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, em segundo turno, derrotando o candidato de esquerda, Fernando Haddad, do Partido dos Trabalhadores (PT). Com 55% dos votos, a extrema-direita voltava a governar, mais de três décadas após o fim da ditadura dos generais, estabelecida em 1964.

O deslocamento político foi notável. Desde o fracasso de Fernando Collor, primeiro presidente eleito diretamente depois do golpe militar, o bloco conservador tivera como núcleo duro uma coalizão entre o Partido da Social-Democracia Brasileira (PSDB) e o antigo Partido da Frente Liberal (PFL), atualmente denominado Democratas (DEM), nascido de uma costela do partido da ditadura.

Fragmentada e desmoralizada, a direita tradicional teve que se vincular a uma agremiação oriunda do campo democrático, embora profundamente abraçada às ideias neoliberais. Essa coligação governou o Brasil entre 1992 e 2003, consolidando seu domínio a partir de 1994, quando Fernando Henrique Cardoso, principal líder do PSDB, conquistou a Presidência da República.

A força propulsora dessa coalizão, porém, esgotou-se na virada do século. Os efeitos de médio e longo prazos do neoliberalismo —recessão endêmica, desemprego estrutural, desidratação dos serviços públicos, aguçamento da desigualdade social, crescimento da pobreza e da miséria— empurraram o pêndulo da história em favor do PT de Luiz Inácio Lula da Silva, que ganharia as eleições presidenciais de 2002.


Durante os treze anos de governos petistas, somando os mandatos de Lula (2003-2010) e Dilma Rousseff (2011-2016), o país começou a experimentar outra política econômica, alicerçada sobre programas distributivos e investimentos públicos favoráveis a mercado interno de massas, com expressiva elevação dos salários, sob reforçada regulação do Estado.

A burguesia brasileira, forjada por acintoso padrão de exploração do trabalho, suportou esse modelo em sua fase expansiva, até que os efeitos da crise mundial de 2008 travassem a economia brasileira. A alta dos salários, com a queda da taxa de lucro, até então era compensada pela expansão do consumo doméstico e o dinamismo das exportações de commodities, além de ganhos financeiros patrocinados por uma ortodoxa política monetária.

Desde 2010, no entanto, o empresariado foi paulatinamente considerando insuportável o petismo, incluindo aqueles setores que se beneficiaram de soluções decididas por Dilma Rousseff para conter a retração produtiva e a radicalização do choque distributivo. Os investimentos privados foram despencando, apesar da ampliação de subsídios estatais, embolsados como recuperação de margem, com forte custo fiscal. A queda da taxa de juros, entre 2012 e 2013, ao contrário de servir como estímulo, foi percebida como erosão de receita financeira.

Reeleita em 2014, a presidente viu-se cercada por uma escalada que já pedia sua cabeça. Sem maioria parlamentar, absorveu parte do programa neoliberal dos opositores, tentando deter ou abrandar seus ataques. Tudo deu errado: os inimigos a sentiram vulnerável, redobrando os esforços de guerra, enquanto passou a reinar confusão, divisão e desânimo nas bases progressistas.

Os resultados na economia também foram trágicos. Frente a relevantes sinais de desaquecimento desde 2013, medidas como a abrupta elevação da taxa de juros e o corte de benefícios sociais, adotadas no final de 2014, significaram apagar incêndio com jatos de gasolina. O país entrou em recessão, o desemprego disparou, as camadas médias consolidaram seu giro conservador e parte das classes trabalhadoras abandonou o PT. O desfecho seria o golpe parlamentar de 2016, com a derrubada de Dilma Rousseff.

Estava em curso uma ofensiva reacionária, perante a qual o petismo se viu aturdido e indefeso. Não pairavam ameaças frontais ao capitalismo e ao seu poder político, mas as classes dominantes queriam derrubar qualquer obstáculo, pelos meios que fossem necessários, para a adoção de um programa que revitalizasse prontamente a rentabilidade relativa e absoluta de seus negócios. A agenda deixava ser a versão moderada dos anos 90, para assumir a feição de um neoliberalismo sem peias, cujo modelo confesso referencia-se no Chile de Pinochet.

Não há compatibilidade possível entre esse caminho e a ordem democrática. A derrubada de uma presidente legítima se associa à Operação Lava Jato, desmascarada pelas mensagens publicadas por The Intercept, como elementos de um golpe de tipo novo, por dentro das instituições, com um papel destacado do sistema de justiça e do parlamento. A prisão do ex-presidente Lula, através de uma fraude judicial, foi o corolário indispensável para garantir o controle do processo eleitoral de 2018.

Os velhos partidos conservadores, à frente o PSDB e o DEM, lideraram o movimento golpista com a missão de dar vida às reformas exigidas. Naufragaram, contudo, nas eleições presidenciais. Representavam o regime político que ajudaram a enterrar, contra o qual havia se jogado a Operação Lava Jato para destruir o PT e Lula, e foram abandonados pelos setores sociais cativados pelo discurso de ruptura do sistema como a única saída para a prosperidade capitalista.

O principal filho e herdeiro dessa contrarrevolução preventiva é Jair Bolsonaro. Medíocre e aloprado, representa o rosto sem maquiagem de parte expressiva das elites brasileiras, formadas no caldo do racismo, da misoginia, do ódio aos pobres e da subserviência às nações imperiais. Como outras vezes na história, diante de crise geral das instituições, a extrema-direita emerge como solução bonapartista, abraçada à exploração dos preconceitos e das crenças mais atrasadas para constituir base de massa à uma variável neofascista.

Diante da incapacidade do conservadorismo tradicional em derrotar estrategicamente as forças de esquerda e os movimentos populares, criando as condições políticas para viabilizar o programa neoliberal, Bolsonaro irrompeu como hipótese plausível, mesmo exibindo contornos indefinidos, de mudança do regime político, atraindo novamente as Forças Armadas para o comando do Estado.

As dificuldades do governo em consolidar essa opção, em meio a uma grave crise econômica e social, são ingredientes de um cenário marcado pelo que Antonio Gramsci chamava de “equilíbrio catastrófico”, caracterizado pela incapacidade de qualquer das forças políticas ou classes sociais estabelecer sua hegemonia sobre as demais. Esse ambiente, longe de afastar a hipótese autoritária, costuma ser o terreno no qual dão frutos soluções de tipo bonapartista.

As frações do bloco conservador que divergem dessa alternativa, a ela estão acorrentadas, mesmo que provisoriamente e a contragosto, porque partilham o mesmo projeto nacional, a mesma política econômica e a mesma lógica golpista. Sua oposição é restrita e débil, limitada às manobras mais extravagantes do presidente, em uma luta permanente para domesticá-lo, e seu limite é especular acerca de um bolsonarismo sem Bolsonaro.

A saída democrática depende da derrota do programa neoliberal, que está dilacerando países da região. O Brasil somente poderá sair da beira do precipício quando as correntes de esquerda forem capazes, associadas a um movimento de desobediência civil como o que está sacudindo o Chile, de apresentar uma alternativa de governo que construa um novo regime constitucional, soldado pela distribuição de renda, riqueza e poder.
Breno Altman

Sem compostura

Torna-se evidente que o atrevimento presidencial parece não encontrar limites na compostura que um Chefe de Estado deve demonstrar no exercício de suas altas funções, pois o vídeo que equipara,ofensivamente, o Supremo Tribunal Federal a uma "hiena" culmina, de modo absurdo e grosseiro, por falsamente identificar a Suprema Corte como um de seus opositores
Celso de Mello, decano do STF

O partido sou eu!

Nos idos de 1630, o franciscano Frei Vicente Salvador, nosso primeiro historiador, publicou um opúsculo chamado "História do Brasil" e concluiu: “Nenhum homem nesta terra é repúblico, nem zela, ou trata do bem comum, senão cada um do bem particular”.

Frei Vicente não podia saber, mas a frase tinha algo de vidente. Cinco séculos depois e a nossa República ainda permanece inconclusa, com cada um pensando nos seus interesses privados e só depois naqueles públicos e que dizem respeito à nossa “res-publica”, não a “res- privata”.

Quem sabe Frei Vicente tinha razão não apenas quando refletia sobre os episódios ocorridos nos idos do Setecentos, mas também acerca daqueles que se desenrolam em pleno século XXI.

“O certo é que um presidente republicano não pode usar o Estado como se fosse casa própria”

Também não pode permitir que seus filhos assumam papeis para os quais não foram indicados, como se atuassem não como vereadores, deputados ou senadores, mas como “príncipes regentes”, acima da lei e das normas do bom governo.

Não data de hoje, porém, a prática de formação de verdadeiras dinastias na política brasileira, com exemplos de famílias que se perpetuam em seus estados e cujos descendentes levam os nomes de “filhos”, “netos”, “júniors”, e assim vamos.

É difícil mostrar autonomia nessa terra do favor e dos constrangimentos sociais, ou encontrar amparo numa República que durante muito tempo manteve inalterado o complicado jogo das relações pessoais, contraprestações e deveres: chave do personalismo e do próprio clientelismo.

Pode-se dizer que esse uso privado da máquina seria muito restringido a partir da Constituição de 1934, que não apenas ampliou o poder do governo federal, como tornou o voto obrigatório e secreto, a partir dos 18 anos.

Além do mais, com a criação da Justiça Eleitoral e da Justiça do Trabalho, fortaleceram-se instituições que visam cercear o arbítrio privado de verdadeiros clãs rurais e urbanos, bem como cercear seus poderes de barganha junto ao Estado.

A despeito das várias constituições que o país teve, sobretudo a partir de 1988 foram não só referendados os direitos ao voto secreto, como se estabeleceram novos direitos trabalhistas; todas medidas que visam garantir direitos individuais e do cidadão.

Mesmo assim, o legado do poder privado sobrevive fortemente dentro da máquina governamental. Muito reveladores, nesse sentido, são os dados levantados pelo Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (DIAP), acerca da assim chamada “bancada de parentes”, que continua crescendo no Congresso Nacional.

Em 2014, foram eleitos na Câmara, 113 deputados com sobrenomes oligárquicos, todos parentes de políticos estabelecidos. Nas eleições de 2018, o número de parlamentares com vínculos familiares cresceu para 172 deputados.

O DIAP identificou, ainda, 138 deputados e senadores que pertencem a clãs políticos entre os 567 novos parlamentares – um aumento de 22% em relação a 2014. E o número de membros da "bancada dos parentes" poderia ser até maior, uma vez que a pesquisa considerou apenas relações de primeiro grau.

Os casos são muitos e registrados no país todo. Por isso limito-me a mencionar alguns, que exemplificam como a prática é ainda “norma”, e não “exceção”.

Em Pernambuco, o deputado mais votado foi João Campos (PSB), filho do ex-governador Eduardo Campos, morto em 2014. A prima do político, Marília Arraes (PT), que, por sua vez, é sobrinha de uma ex-deputada federal e neta do também ex-governado Miguel Arraes, foi a segunda mais votada.

No Ceará, um dos deputados federais mais votados é filho do atual presidente da Assembleia Legislativa. No Pará, o clã dos Barbalho garantiu tanto a reeleição do seu chefe, o senador Jader Barbalho (MDB), quanto de dois outros membros para a Câmara – a ex-mulher do senador e um primo. Na Bahia, o segundo mais votado para a Câmara é filho do senador Otto Alencar (PSD).

No Piauí, Iracema Portella (PP), filha de um ex-governador e de uma ex-deputada federal conseguiu mais um mandato na Câmara, enquanto seu marido, Ciro Nogueira (PP), foi reeleito para o Senado. No Rio Grande do Norte, metade das vagas para deputado federal foram ocupadas por parentes – um eleito é filho do atual governador.

Interessante pensar que nas eleições de 2018, houve até casos de “dinastias” que fizeram campanha com um discurso “antissistema”, aproveitando a onda em voga contra a política tradicional, mas tiveram um desempenho de “tribo”.

Esse é o caso da família Bolsonaro, que não apenas elegeu um “pai”, presidente, como também, fez com que os “filhos”, Eduardo e Flávio Bolsonaro (ambos no PSL), ocupassem posições na Câmara e no Senado, respectivamente, sendo que eles já faziam carreira na política estadual e nacional, enquanto que o outro irmão Carlos atuava como vereador na cidade do Rio de Janeiro.

E a política do familismo não se limitou ao momento das urnas. Nessa semana que passou, o Chefe do Executivo deu todo tipo de prova de que pretende usar do Palácio do Planalto para a satisfação de seus desejos mais recônditos.

Para tanto, basta ver como Jair Bolsonaro se esforça para proteger Flávio, que continua enrolado com o caso Queiroz; como não desiste de barganhar e promover seu filho Eduardo para chefe do PSL na Câmara e futuro embaixador em Washington, e ainda mantém Carlos em Brasília, atuando na (má) comunicação do governo.

Tal tipo de comportamento foge da norma republicana e leva o nome de nepotismo e de patrimonialismo, conceitos que definem práticas que fazem uso da máquina do Estado para fins privados e, nesse caso, familiares.

Isso sem esquecer da crise que o Presidente abriu com o partido que escolheu para acolher sua candidatura em 2018: o PSL. As atitudes voluntaristas de Jair Bolsonaro, expõem por outro ângulo, o personalismo e o voluntarismo com que ele pensa a política.

Presidentes isolados já existiram na história do Brasil, mas com frequência se deram mal. Foi assim com Jânio Quadros, com Fernando Collor de Mello e com Dilma Rousseff, que não conseguiram cumprir com os mandatos para os quais foram eleitos.

No entanto, um Líder do Executivo que ataca seu próprio partido, depois de 10 meses de governo, sinaliza fenômeno novo e que merece atenção. Quem sabe nosso atual Presidente sofra de síndrome de Luiz XIV.

Ao invés de “L’état c’est moi”, o representante tropical, parece ter adaptado um pouco o dito monárquico. Agora vale mesmo: “O partido sou eu”. O problema é que, ao que tudo indica, Jair Bolsonaro não está dançado valsa com seus antigos partidários e o ambiente não é de serenata. Na verdade, nada indica um “viveram felizes para sempre”.
Lilia Moritz Schwarcz