Frei Vicente não podia saber, mas a frase tinha algo de vidente. Cinco séculos depois e a nossa República ainda permanece inconclusa, com cada um pensando nos seus interesses privados e só depois naqueles públicos e que dizem respeito à nossa “res-publica”, não a “res- privata”.
Quem sabe Frei Vicente tinha razão não apenas quando refletia sobre os episódios ocorridos nos idos do Setecentos, mas também acerca daqueles que se desenrolam em pleno século XXI.
“O certo é que um presidente republicano não pode usar o Estado como se fosse casa própria”
Também não pode permitir que seus filhos assumam papeis para os quais não foram indicados, como se atuassem não como vereadores, deputados ou senadores, mas como “príncipes regentes”, acima da lei e das normas do bom governo.
Não data de hoje, porém, a prática de formação de verdadeiras dinastias na política brasileira, com exemplos de famílias que se perpetuam em seus estados e cujos descendentes levam os nomes de “filhos”, “netos”, “júniors”, e assim vamos.
É difícil mostrar autonomia nessa terra do favor e dos constrangimentos sociais, ou encontrar amparo numa República que durante muito tempo manteve inalterado o complicado jogo das relações pessoais, contraprestações e deveres: chave do personalismo e do próprio clientelismo.
Pode-se dizer que esse uso privado da máquina seria muito restringido a partir da Constituição de 1934, que não apenas ampliou o poder do governo federal, como tornou o voto obrigatório e secreto, a partir dos 18 anos.
Além do mais, com a criação da Justiça Eleitoral e da Justiça do Trabalho, fortaleceram-se instituições que visam cercear o arbítrio privado de verdadeiros clãs rurais e urbanos, bem como cercear seus poderes de barganha junto ao Estado.
A despeito das várias constituições que o país teve, sobretudo a partir de 1988 foram não só referendados os direitos ao voto secreto, como se estabeleceram novos direitos trabalhistas; todas medidas que visam garantir direitos individuais e do cidadão.
Mesmo assim, o legado do poder privado sobrevive fortemente dentro da máquina governamental. Muito reveladores, nesse sentido, são os dados levantados pelo Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (DIAP), acerca da assim chamada “bancada de parentes”, que continua crescendo no Congresso Nacional.
Em 2014, foram eleitos na Câmara, 113 deputados com sobrenomes oligárquicos, todos parentes de políticos estabelecidos. Nas eleições de 2018, o número de parlamentares com vínculos familiares cresceu para 172 deputados.
O DIAP identificou, ainda, 138 deputados e senadores que pertencem a clãs políticos entre os 567 novos parlamentares – um aumento de 22% em relação a 2014. E o número de membros da "bancada dos parentes" poderia ser até maior, uma vez que a pesquisa considerou apenas relações de primeiro grau.
Os casos são muitos e registrados no país todo. Por isso limito-me a mencionar alguns, que exemplificam como a prática é ainda “norma”, e não “exceção”.
Em Pernambuco, o deputado mais votado foi João Campos (PSB), filho do ex-governador Eduardo Campos, morto em 2014. A prima do político, Marília Arraes (PT), que, por sua vez, é sobrinha de uma ex-deputada federal e neta do também ex-governado Miguel Arraes, foi a segunda mais votada.
No Ceará, um dos deputados federais mais votados é filho do atual presidente da Assembleia Legislativa. No Pará, o clã dos Barbalho garantiu tanto a reeleição do seu chefe, o senador Jader Barbalho (MDB), quanto de dois outros membros para a Câmara – a ex-mulher do senador e um primo. Na Bahia, o segundo mais votado para a Câmara é filho do senador Otto Alencar (PSD).
No Piauí, Iracema Portella (PP), filha de um ex-governador e de uma ex-deputada federal conseguiu mais um mandato na Câmara, enquanto seu marido, Ciro Nogueira (PP), foi reeleito para o Senado. No Rio Grande do Norte, metade das vagas para deputado federal foram ocupadas por parentes – um eleito é filho do atual governador.
Interessante pensar que nas eleições de 2018, houve até casos de “dinastias” que fizeram campanha com um discurso “antissistema”, aproveitando a onda em voga contra a política tradicional, mas tiveram um desempenho de “tribo”.
Esse é o caso da família Bolsonaro, que não apenas elegeu um “pai”, presidente, como também, fez com que os “filhos”, Eduardo e Flávio Bolsonaro (ambos no PSL), ocupassem posições na Câmara e no Senado, respectivamente, sendo que eles já faziam carreira na política estadual e nacional, enquanto que o outro irmão Carlos atuava como vereador na cidade do Rio de Janeiro.
E a política do familismo não se limitou ao momento das urnas. Nessa semana que passou, o Chefe do Executivo deu todo tipo de prova de que pretende usar do Palácio do Planalto para a satisfação de seus desejos mais recônditos.
Para tanto, basta ver como Jair Bolsonaro se esforça para proteger Flávio, que continua enrolado com o caso Queiroz; como não desiste de barganhar e promover seu filho Eduardo para chefe do PSL na Câmara e futuro embaixador em Washington, e ainda mantém Carlos em Brasília, atuando na (má) comunicação do governo.
Tal tipo de comportamento foge da norma republicana e leva o nome de nepotismo e de patrimonialismo, conceitos que definem práticas que fazem uso da máquina do Estado para fins privados e, nesse caso, familiares.
Isso sem esquecer da crise que o Presidente abriu com o partido que escolheu para acolher sua candidatura em 2018: o PSL. As atitudes voluntaristas de Jair Bolsonaro, expõem por outro ângulo, o personalismo e o voluntarismo com que ele pensa a política.
Presidentes isolados já existiram na história do Brasil, mas com frequência se deram mal. Foi assim com Jânio Quadros, com Fernando Collor de Mello e com Dilma Rousseff, que não conseguiram cumprir com os mandatos para os quais foram eleitos.
No entanto, um Líder do Executivo que ataca seu próprio partido, depois de 10 meses de governo, sinaliza fenômeno novo e que merece atenção. Quem sabe nosso atual Presidente sofra de síndrome de Luiz XIV.
Ao invés de “L’état c’est moi”, o representante tropical, parece ter adaptado um pouco o dito monárquico. Agora vale mesmo: “O partido sou eu”. O problema é que, ao que tudo indica, Jair Bolsonaro não está dançado valsa com seus antigos partidários e o ambiente não é de serenata. Na verdade, nada indica um “viveram felizes para sempre”.
Lilia Moritz Schwarcz
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