O impeachment concretizou-se apesar da fábula do “golpe”, que as forças ditas de esquerda se encarregaram de propagar pelo mundo afora, com zelo suficiente para levar na conversa alguns respeitáveis órgãos da imprensa internacional. Na eleição, o PT venceu em Rio Branco, capital do Acre, mas perdeu em São Bernardo. Em São Paulo, a joia da coroa, o estreante Doria derrotou o incumbente Haddad e, de quebra, três figuras já curtidas desde outros carnavais: Russomanno, Marta Suplicy e Luiza Erundina. No mesmo sentido, a PEC 241 foi aprovada com uma folgada margem de 255 votos (366 a 111), deixando ao menos temporariamente em suspenso aquele monstro a que se convencionou denominar “presidencialismo de coalizão”.
Mas tudo bem, os dois jornalistas citados são argentinos, e quiçá jovens. O problema é que o prisma ideológico a que me refiro remonta aos anos 1950 e raramente é questionado, mantendo uma presença incomodamente dominante no circuito de formação da opinião. Naqueles tempos, inegavelmente, a dicotomia direita x esquerda (ou conservador x progressista) fazia sentido, não exatamente porque uma tivesse mais “sensibilidade social” que a outra, mas porque eram os tempos da guerra fria, que dividira nesses termos não só o Brasil, mas o mundo inteiro. No Brasil de hoje, não há como não entrar na substância. Quem quer conservar o quê? Faz sentido afirmar que é progressista o defensor de estatais semifalidas e do corporativismo sindical, sendo conservador e até reacionário o defensor do mérito, da probidade na administração pública, do mercado e de uma economia mais aberta?
Num livrinho intitulado Partidos Conservadores no Brasil Contemporâneo, publicado no ano 2000, os cientistas políticos Scott Mainwaring, Rachel Meneguello e Timothy Power esmeraram-se no manejo das estatísticas, mas parecem não ter percebido a fragilidade do esquema de análise fundado na dicotomia direita-esquerda, já insinuada no título da obra. “Partidos conservadores” no Brasil contemporâneo? Quais são eles? O polo “não conservador”, como é fácil adivinhar, compreende o PT, o PDT e as pequenas siglas comunistas. Fernando Collor de Mello, cujo PRN era para inglês ver, é descrito como um mero populista, mas esse adjetivo não é aplicado a Lula, sutileza que implicitamente o transforma numa liderança “verdadeiramente” ideológica.
No centro os autores colocam o PMDB e o PSDB – este, porém, pendendo para a direita por causa do papel proeminente que nele desempenha o “neoliberal” Fernando Henrique Cardoso. Do ponto de vista programático, os autores informam que o traço distintivo dos conservadores, nos anos 90, foi o papel dos Estados e mercados (o neoliberalismo tornou-se a bandeira unificadora da agenda política da direita). No Brasil, além do apoio ao governo “neoliberal” de Fernando Henrique, o que distinguiu os conservadores dos partidos de centro e de esquerda foi o fato de enfatizarem mais o crescimento econômico do que a distribuição, bem como o enxugamento da máquina estatal, a redução dos gastos públicos e a privatização. Sobre a iminência da hiperinflação em meados dos anos 90 os autores não se detiveram.
Do ponto de vista eleitoral, os conservadores geralmente se davam mal nas grandes cidades, angariando mais votos nos pequenos municípios que nos grandes centros. Quanto a este ponto, louve-se a isenção valorativa dos autores citados. Em outros tempos, era comum contrapor-se a iluminação ateniense dos grandes centros à treva perpétua dos “grotões”, como se o voto daqueles fosse portador de uma legitimidade superior à destes.
Embora sucintas, as citações acima devem ser suficientes para evidenciar o arcaísmo dessa estrutura conceitual e as distinções arbitrárias a que ela conduz. Contudo o ponto que desejo frisar é a urgente revisão de tal esquema à luz dos acontecimentos recentes. O que derrubou eleitoralmente o PT não foi a prévia ocorrência do “neoliberalismo” de Fernando Henrique, mas o paleoestatismo ideológico pelo qual se orienta, seus colossais erros de política econômica e a dimensão amazônica da corrupção posta a nu pela Lava Jato.