O ano se vai, chegam as festas. Uma para celebrar a Humanidade; outra para festejar a Esperança. Assim seria...
À espera que aconteça como reza a civilidade, daremos um descanso em boas companhias. É um tempo curtinho. Voltamos em 2020
terça-feira, 24 de dezembro de 2019
Boas festas
Desequilibrado!?
Bolsonaro, ascensão e queda
Se ele caiu por ter desmaiado, o caso pode inspirar maiores cuidados. Levado às pressas para o Hospital das Forças Armadas, uma tomografia computadorizada não detectou alterações no seu crânio, segundo nota oficial do governo. Ficaria em observação por 6 ou 12 horas, devendo ser liberado logo em seguida.
Com 64 anos de idade, Bolsonaro sempre gozou de boa saúde. Quando serviu ao Exército ganhou o apelido de “cavalão”, tal era sua disposição física que lhe rendeu boas notas em competições esportivas. Foi elogiado muitas vezes por seu desempenho. Arriscou a vida para salvar um colega paraquedista que se afogava.
Não tivesse levado a facada que quase o matou em Juiz de Fora, estaria em forma. A facada pode tê-lo ajudado a se eleger presidente, mas fragilizou seu corpo e principalmente sua mente. Foi operado mais de uma vez em menos de um ano. Usa uma tela para proteger seu abdómen. Sente dores com frequência.
Ter visto a morte de perto mexeu muito com sua cabeça. Vive assombrado. Receia ser alvo de um novo atentado. Enxerga perigo por toda parte. Presidente algum desde a redemocratização do país escolheu ser refém de um aparato de segurança tão gigantesco como o que o protege. Apesar disso, ele cobra sempre mais.
Quando Bolsonaro fala que só será candidato à reeleição se sua saúde permitir, não está blefando. Muito menos se vitima para atrair mais votos. De fato, ele não parece nem um pouco disposto a pôr sua vida novamente em risco para exercer por mais quatro anos uma tarefa que tanto o desagrada.
Sua intenção inicial ao lançar-se candidato a presidente era ajudar os filhos em suas carreiras políticas. Não imaginava que venceria. Na hora que sua vitória foi anunciada, teve uma crise de choro. Mais tarde, confessou que se sentia esmagado pelo que acabara de acontecer. Sabia que carecia de preparo para o novo ofício.
Os filhos Flávio e Eduardo tiveram votações expressivas nos rastros do pai. Mas um ano depois, Flávio está cada vez mais enroscado com a Justiça, e Eduardo frustrado por não ser embaixador do Brasil em Washington. A família jamais se sentiu tão acuada. Natural que o patriarca sofra com tudo isso.
Bolsonaro dá presente de Natal a criminosos de farda
“Qualquer criminoso tem que cumprir sua pena de maneira integral. Essa é a nossa política”, reforçou, no dia seguinte. Após uma formatura militar, Bolsonaro repetiu que não assinaria novos atos de perdão. “Minha caneta continuará com a mesma quantidade de tinta até o final do mandato em 2022. Sem indulto”, sentenciou.
Se a vida no Brasil vale pouco, a palavra do presidente vale menos ainda. Bolsonaro não esperou nem um ano para descumprir o que prometeu. Ontem ele editou o indulto mais generoso dos últimos tempos. Anistiou policiais condenados por homicídio culposo, que agiram fora das hipóteses de legítima defesa.
O decreto beneficia até os agentes de segurança que mataram em dias de folga. É um presente de Natal para milícias e esquadrões da morte, que sempre contaram com a simpatia do clã presidencial.
A família Bolsonaro costuma reservar um lugar na ceia para criminosos de farda. O ex-sargento Fabrício Queiroz, que assinava cheques para a primeira-dama, era campeão de “autos de resistência” na Cidade de Deus. O ex-capitão Adriano da Nóbrega, condecorado na cadeia pelo primeiro-filho, é apontado como chefe de um grupo de extermínio.
O indulto será concedido ao fim de um ano em que a polícia bateu recordes de letalidade. Só no Estado do Rio, foram registradas 1.546 mortes de janeiro a outubro. É o maior número desde o início da série histórica, em 1998. Agora a matança tende a aumentar com incentivo presidencial.
Antes de autografar o decreto, Bolsonaro ameaçou anistiar PMs envolvidos em massacres de repercussão internacional, como o do Carandiru. Pelo texto divulgado ontem, os casos ficarão de fora. É um truque conhecido. O homem começa anunciando o intolerável, para provocar protesto e indignação. Depois ensaia um pequeno recuo, para que o absurdo pareça não ser tão grave assim.
No show de ‘seu Jair’, o grande fecho de um ano
“Não tenho nada a ver com isso”, disse o presidente na quinta-feira de manhã, ao ser questionado sobre a investigação conduzida no Rio de Janeiro pelo Ministério Público Estadual. Se de fato acreditava nisso, mudou de ideia rapidamente. Na manhã seguinte, ao sair do Palácio da Alvorada, enfrentou a imprensa com muito mais disposição, defendendo seu filho, distribuindo grosserias e criticando o juiz Flávio Itabaiana, do Tribunal de Justiça do Rio, por causa das operações de busca e apreensão realizadas na quarta-feira e da quebra de sigilo de pessoas e empresas investigadas no caso. As grosserias foram dentro do padrão bolsonariano. Interessante, mesmo, foi a inexplicada referência à filha do juiz.
Funcionária do governo fluminense, essa jovem, “pelo que parece”, é fantasma, disse o presidente aos jornalistas. O governo do Estado do Rio logo rebateu, informando a função e as qualificações da moça, uma advogada, e a data de sua nomeação, feita 15 dias antes da distribuição eletrônica do processo de Flávio Bolsonaro ao Juízo de Direito da 27.ª Vara Criminal. Mas como e por que o presidente Bolsonaro sabia da existência dessa moça e de seu emprego? Alguém lhe contou? Alguém havia investigado a família do juiz, por decisão própria ou por ordem de autoridade federal?
Tão interessante quanto essas perguntas é o estilo presidencial. Guardião juramentado da Constituição, o chefe do Poder Executivo reagiu à investigação sobre seu filho atacando o juiz, pondo em dúvida sua seriedade e lançando suspeita sobre a condição profissional de sua filha como servidora pública. Detalhe: ao mencionar a suspeita, usou a expressão “pelo que parece”, numa clara exibição de irresponsabilidade.
Enfim, o ataque ao juiz e à filha em nada se assemelhou à reação própria de um homem público ou mesmo de qualquer cidadão razoável e equilibrado. Pareceria mais normal se partisse de um miliciano ou, de modo geral, de alguém pouco afeito a agir segundo a lei e segundo padrões civilizados.
É difícil dizer, no entanto, se esses padrões são importantes para quem se acostumou a posar para fotos fazendo gesto de quem maneja uma arma – ou duas, em muitos casos. Seus filhos e muitos apoiadores do presidente Bolsonaro têm o mesmo hábito, como se houvesse algum mérito na encenação do uso de armas numa sociedade do século 21.
Mas isso terá pouca importância, dirão os muito otimistas, se a política econômica avançar na direção correta e os negócios prosperarem. Comentários desse tipo têm sido frequentes, mesmo entre pessoas bem alfabetizadas e até com diplomas de boas universidades. Segundo dizem, há no Brasil dois governos. Um se dedica a assuntos como a posse e o porte de armas, a moralização da arte, o combate ao comunismo, mesmo imaginário, e a cristianização das funções de um Estado leigo. Outro se empenha na implantação de uma economia liberal, na diminuição do Estado e na criação de condições para a firme expansão dos negócios.
Mas haverá mesmo dois governos? Haverá um contraste efetivo entre a crueza do bolsonarismo mais simples e a sofisticação de uma política econômica redentora? É preciso ter muita fé, ou valorizar acima de tudo qualquer chance de lucro, para levar a sério esse contraste. Talvez algumas perguntas possam enriquecer o debate, se houver de fato debate.
Por que o ministro da Economia endossou – corrigindo-se, depois do escândalo – a ideia de um novo AI-5 no caso de grandes manifestações contra o governo? Será ele, de fato, tão liberal quanto se proclama? Ou estará, afinal, muito próximo das preferências políticas de seu chefe e de seus filhos?
Em segundo lugar, haverá alguma diferença entre seu suposto liberalismo econômico e um efetivo darwinismo social? Se o rótulo de liberal for de fato aplicável à política econômica brasileira, como classificar as ideias de economistas como Richard Musgrave, por muito tempo uma referência em finanças públicas, e de Amartya Sen, premiado com o Nobel de Economia? Milton Friedman, defensor de um imposto de renda negativo para os mais pobres, terá sido um comunistão enrustido?
Por que o ministro vincula tanto a reforma tributária à eliminação de encargos trabalhistas e jamais discute, por exemplo, os defeitos do ICMS, um dos maiores entraves à competitividade? Por que batalhou pela extensão da reforma previdenciária aos Estados, mas nunca abriu um debate sério sobre o imposto estadual? Por que insiste em recriar a CPMF, um tributo aberrante, cumulativo e claramente regressivo?
Privatizar por ideologia será mais inteligente que estatizar por ideologia? Há bons argumentos a favor da privatização de muitas empresas federais, mas o governo raramente os menciona. Promete privatizar, simplesmente, às vezes citando a receita esperada, mas nunca, ou quase nunca, apresentando razões estratégicas. Trata do assunto como se fosse cumprir uma lei divina. Para parte do público isso deve bastar. Mas bastará também para quem leu mais de um livro?
Como falar, enfim, de dois governos, sendo um de Bolsonaro e o outro de um técnico disposto a taxar o seguro-desemprego e a defender, como em entrevista recente, a política ambiental em vigor no País?
Construindo uma grande nação
Três historinhas para ilustrar nossa última reflexão do ano, a primeira muito conhecida.
– Condenado à morte por corromper a juventude, o filósofo Sócrates recusou a oferta para fugir de Atenas, pois seu compromisso com a polis não lhe permitia transgredir as regras. Os gregos cultivavam o respeito à lei.
– Lúcio Júnio Bruto, fundador da República Romana, libertou seu povo da tirania de Tarquínio, derrubando a monarquia. Depois executou os próprios filhos por conspirarem contra o regime. Pregava o poeta Horácio: “Doce e digno é morrer pela Pátria”.
– Outro romano, rico e matreiro, conta Maquiavel no Livro III sobre Tito Lívio, deu comida aos pobres em uma epidemia de fome e por isso foi executado. O argumento: pretendia tornar-se um tirano. Os romanos prezavam mais a liberdade do que o bem-estar social.
Uma leitura de dois mundos. O primeiro regrado por princípios e valores, compromisso com o bem comum, obediência às leis, defesa da moral e da ética. Combina com a utopia da ilha de Thomas Morus: “uma terra de paz e tranquilidade onde os habitantes não têm propriedade individual e absoluta”.
O desenho ajuda a entender nosso tempo. Protagonistas políticos e até juízes lutam para impor suas demandas, multiplicando mazelas e velhos padrões da política.
– Condenado à morte por corromper a juventude, o filósofo Sócrates recusou a oferta para fugir de Atenas, pois seu compromisso com a polis não lhe permitia transgredir as regras. Os gregos cultivavam o respeito à lei.
– Lúcio Júnio Bruto, fundador da República Romana, libertou seu povo da tirania de Tarquínio, derrubando a monarquia. Depois executou os próprios filhos por conspirarem contra o regime. Pregava o poeta Horácio: “Doce e digno é morrer pela Pátria”.
– Outro romano, rico e matreiro, conta Maquiavel no Livro III sobre Tito Lívio, deu comida aos pobres em uma epidemia de fome e por isso foi executado. O argumento: pretendia tornar-se um tirano. Os romanos prezavam mais a liberdade do que o bem-estar social.
Emerge a pergunta: qual personagem se sairia melhor no cenário contemporâneo? O terceiro, com uma diferença: o matreiro político não seria executado por alimentar a plebe, mas glorificado, mesmo escondendo, por trás da distribuição de alimentos, seu projeto de poder. Hipótese mais provável em nossa tradição patrimonialista.
Uma leitura de dois mundos. O primeiro regrado por princípios e valores, compromisso com o bem comum, obediência às leis, defesa da moral e da ética. Combina com a utopia da ilha de Thomas Morus: “uma terra de paz e tranquilidade onde os habitantes não têm propriedade individual e absoluta”.
Esse Estado perfeito contrapõe a cidade divina e a terrestre, esta afinada ao universo de Maquiavel: “os fins justificam os meios”. Para o florentino, o povo é dotado de razão e capaz de decidir o seu destino. Sonha com a liberdade e, para conquistá-la, usa quaisquer meios necessários. Sua lógica: ideologias e valores morais cedem lugar aos instrumentos em nome da hegemonia. Aqui a ética da ação prevalece sobre a ética da consciência.
O desenho ajuda a entender nosso tempo. Protagonistas políticos e até juízes lutam para impor suas demandas, multiplicando mazelas e velhos padrões da política.
Afinal, de que o Brasil necessita para fortalecer seu conceito de Nação em 2020? Primeiro: democratizar sua democracia, expandir a participação do povo, com inclusão social, boas condições do trabalho, proteção ao meio ambiente, direitos humanos, qualificando serviços públicos como educação, saúde e segurança.
Impõe-se convocar a sociedade para um projeto nacional, sem conveniências eleitoreiras. O Brasil clama por planos essenciais nas áreas social, cultural, geográfica e econômica. Paredes inteiriças em vez de tijolos. E uma relação harmônica entre os Poderes, dentro da norma constitucional.
Deve-se valorizar a meritocracia e atenuar as indicações partidárias, selecionando perfis adequados para a administração. Aristóteles dá uma pista: “Quando diversos tocadores de flauta possuem mérito igual, não é aos mais nobres que as melhores flautas devem ser dadas, pois eles não as farão soar melhor; ao mais hábil é que deve ser dado o melhor instrumento”. Isso é mérito.
Convém lembrar: uma grande democracia repousa sobre uma base de direitos e deveres, de ordem e harmonia, de ética e moral.
Frutos podres
Cristo falava por parábolas. Bolsonaro fala por slogans. Uma parábola é um relato alegórico, destinado a fazer pensar e extrair de sua narrativa uma moral. É um instrumento que se dirige, ao mesmo tempo, à fé e à razão. Já um slogan é uma afirmação categórica, acachapante, disparada para ser aceita pelo receptor sem passar necessariamente por seu cérebro. É uma arma dos publicitários, dos políticos e dos autoritários.
Uma das grandes parábolas de Cristo está em Mateus 7:15-20: "Guardai-vos dos falsos profetas, que vêm a vós com vestes de ovelha, mas que por dentro são lobos vorazes. Pelos seus frutos os conhecereis. Colhem-se porventura uvas dos espinheiros, ou figos dos abrolhos? Toda árvore boa dá bons frutos, mas a árvore má dá maus frutos. Uma árvore boa não pode dar maus frutos, nem uma árvore má pode dar bons frutos. Toda árvore que não dá bons frutos deve ser cortada e queimada".
Por falar em frutos, digo, bolsonaros, digo, slogans, o slogan favorito de Bolsonaro é o martelado "Brasil acima de tudo e Deus acima de todos". O "Brasil acima de tudo" cheira ao slogan nazista "Deutschland über alles" —"A Alemanha acima de tudo"—, mas isso não lhe provoca desconforto. Com slogans não se discute.
O Brasil de que fala Bolsonaro deve ser o nosso, que ele reduziu a seu condomínio. Mas a que Deus Bolsonaro se refere? Ao Deus dos católicos, o velhinho bonachão, de barbas e camisolão, síndico do Céu? Ou ao Deus protestante, incorpóreo, rigoroso, fiscal de nossos malfeitos aqui na Terra? A pergunta procede, porque Bolsonaro se diz católico, embora nunca seja visto com padres ou em seus rituais. Ao contrário, seu território são os templos evangélicos e seus aliados, os "bispos" de televisão. Bolsonaro servirá a dois senhores?
Pelos frutos que estão começando a despencar da árvore, Deus e o Brasil não demoram a pedir dispensa do tal slogan.
Ruy Castro
Uma das grandes parábolas de Cristo está em Mateus 7:15-20: "Guardai-vos dos falsos profetas, que vêm a vós com vestes de ovelha, mas que por dentro são lobos vorazes. Pelos seus frutos os conhecereis. Colhem-se porventura uvas dos espinheiros, ou figos dos abrolhos? Toda árvore boa dá bons frutos, mas a árvore má dá maus frutos. Uma árvore boa não pode dar maus frutos, nem uma árvore má pode dar bons frutos. Toda árvore que não dá bons frutos deve ser cortada e queimada".
Por falar em frutos, digo, bolsonaros, digo, slogans, o slogan favorito de Bolsonaro é o martelado "Brasil acima de tudo e Deus acima de todos". O "Brasil acima de tudo" cheira ao slogan nazista "Deutschland über alles" —"A Alemanha acima de tudo"—, mas isso não lhe provoca desconforto. Com slogans não se discute.
O Brasil de que fala Bolsonaro deve ser o nosso, que ele reduziu a seu condomínio. Mas a que Deus Bolsonaro se refere? Ao Deus dos católicos, o velhinho bonachão, de barbas e camisolão, síndico do Céu? Ou ao Deus protestante, incorpóreo, rigoroso, fiscal de nossos malfeitos aqui na Terra? A pergunta procede, porque Bolsonaro se diz católico, embora nunca seja visto com padres ou em seus rituais. Ao contrário, seu território são os templos evangélicos e seus aliados, os "bispos" de televisão. Bolsonaro servirá a dois senhores?
Pelos frutos que estão começando a despencar da árvore, Deus e o Brasil não demoram a pedir dispensa do tal slogan.
Ruy Castro
Bombons de Bolsonaro
1. Bolsonaro nunca foi baluarte anticorrupção.
Trata-se de uma construção recente essa do Bolsonaro lavajatista. Em sua carreira, o deputado do baixo clero sempre esteve mais voltado às pautas corporativas, a fazer da política um negócio em família e a chocar com opiniões ofensivas que em combater a corrupção. Nunca integrou nenhuma CPI. Nunca foi do Conselho de Ética. Sempre criticou o Ministério Público. E, agora se sabe, praticou aquilo que sempre condenou na “velha política”.
2. Misturar política e família não tem nada de nova política.
Os Bolsonaro se instalaram no poder sem nenhuma cerimônia. Na campanha, os filhos deram as cartas. Na posse, Carluxo se aboletou de carona no Rolls-Royce, numa das cenas mais emblemáticas desta era. Bolsonaro disse que daria o “filé” aos filhos, que um podia ser ministro e outro, embaixador em Washington. Juntos, os quatro amealharam patrimônio milionário tendo sido só políticos na vida. E, agora se apura, muito desse patrimônio pode ter vindo da prática de “rachadinha” e da existência de funcionários fantasmas. A imprensa mostrou na campanha. O eleitor fechou os olhos deliberadamente.
3. Decoro e liturgia do cargo importam.
O presidente, com o filho pilhado num escândalo que mistura laranja com chocolate, se descontrolou na frente do Alvorada. Em sua tradicional “paradinha”, em que fala de improviso a jornalistas com a claque de apoiadores, ofendeu repórteres e passou um recibo ao vivo, pelas redes sociais, de que o caso assombra o clã. Ao presidente da República cabe prestar contas, e não dar piti. Comunicação improvisada dá nisso, como sempre alertaram aqueles que têm bom senso. Apelar à comunicação direta como forma de populismo pode parecer boa ideia aos filhos idólatras e aos puxa-sacos aboletados em cargos públicos, mas expõe o governante. Bolsonaro sem filtro é isso aí.
4. Paranoia e mania de perseguição são passaporte para o autoritarismo.
Um presidente que não se vexa em acusar um ex-ministro, sem nenhuma evidência possível, de integrar um complô para matá-lo, não tem mais nenhum compromisso com os fatos e com as obrigações que o cargo lhe impõe. Está, portanto, a um passo de se mostrar disposto a tudo no combate a inimigos imaginários cada vez mais abundantes e espalhados. Cabe às instituições, como venho repetindo aqui e não me cansarei de lembrar quantas vezes precisar, dar um freio aos ímpetos persecutórios e claramente autoritários do presidente.
5. Relação com milícias coloca em xeque o discurso liberal de que a economia justifica tudo.
Na quarta-feira escrevi que, a despeito de ser um recordista de impopularidade, Bolsonaro seria favorito em 2022 se a economia seguisse crescendo, ainda que devagar. Eduardo, o 03, tirou onda, querendo desviar o foco do irmão chocolatier. Pois a impopularidade está confirmada, mas o favoritismo será fortemente abalado se o mito de pés de barro ficar nu, como já está ficando. Além de laranjal e rachadinha, o caso Flávio & Queiroz tem tudo para deixar ainda mais patente uma explosiva relação do clã com as milícias do Rio. Algo que será difícil até para a elite liberal, disposta a fechar os olhos para tudo em nome da agenda econômica, engolir.
Envergonhismo
Se o século passado não começou, concretamente, em 1900 ou em 1901 e sim em 1914, a década que ora finda começou com a crise financeira de 2008 e seu séquito de catástrofes econômicas, sociais e políticas. A desmistificação do capitalismo predatório, dominado pelas finanças, foi, sem dúvida, um dos destaques dos Anos 10, assim como o recrudescimento do fascismo, do fundamentalismo religioso (com Maomé e Jesus), do populismo nacionalista e pestilências correlatas ou decorrentes, como as eleições de Trump e Bolsonaro e a malaise global (de Hong Kong a Santiago do Chile).
A questão ambiental fechou a década como a mais urgente e candente de quantas, a seu modo, contribuíram para desmistificar a crença de que fomos criados à imagem e semelhança de Deus todo poderoso, criador – não destruidor – do Céu e da Terra. Não há teodiceia que me explique e justifique a devastação da Amazônia, a lenta destruição do planeta, nem a escolha de Ricardo Salles para ministro do Meio Ambiente.
É muito infortúnio acumulado para nos punir até de pecados de que me sinto totalmente isento, assim como os leitores que não votaram no dendrófobo Bolsonaro nem facilitaram sua eleição.
Claro que, como sempre, inclusive em 1350, tido como o ano mais terrível de todos os tempos, coisas legais aconteceram. A expansão da Netflix, das lutas igualitárias e das mídias sociais, por exemplo. Mas antes que vocês tenham de recorrer ao Google para saber o que de tão terrível ocorreu em 1350, informo: naquele ano a peste negra fez suas primeiras vítimas na Europa.
Por falar em internet, quatro anos atrás, numa palestra em Turim, Umberto Eco (uma das perdas intelectuais mais sentidas do decênio) pôs em xeque a euforia em torno das mídias sociais. Ainda não se falava muito em fake news e outras pragas disseminadas pela internet quando ele soltou esta joia de sabedoria crítica: “As redes sociais deram o direito à palavra a uma legião de imbecis, que antes apenas falavam num bar, sem causar dano à coletividade”. Se obrigado a escolher a frase da década, talvez me inclinasse por essa aí.
Alçado pela TV a um patamar em que já se sentia superior, o imbecil analógico (originalmente conhecido como o idiota da aldeia) foi promovido a “portador da verdade”, a demiurgo digital de baboseiras, patranhas e absurdos que só costumam germinar em cérebros de configuração quase protozoária – mas com Jesus, constrangidíssimo, em seu coração.
Os imbecis multiplicam-se como ratos e ervas daninhas, e não há porque subestimar sua insopitável capacidade destrutiva. Formam a base irredutível e incondicional, o núcleo duro do trumpismo e do bolsonarismo – e é quase exclusivamente para eles e seus preconceitos fundamentalistas que Trump e Bolsonaro governam, forjando factoides e disparando asneiras e agressões gratuitas no Twitter, para desviar a atenção de fatos e suspeitas comprometedores.
Eles representam a barbárie, a ignorância satisfeita, a estupidez rancorosa, o ressentimento perverso, que, no caso brasileiro, atingiram seu mais alto grau de contaminação nos ministros que se ocupam de estrangular a educação e a cultura, degradar o meio ambiente e avacalhar a diplomacia, para realçar apenas os mais em evidência na mídia.
Lunáticos anti-iluministas e grotescos evangelistas do terraplanismo, investem como cruzados contra a ciência e o racionalismo. A cada bizarrice que cometem ou extravasam, se, por escrito, com solecismos e patéticos erros de ortografia, baixa em mim e em muita gente um sentimento de profundo desânimo, de descrença no País. Mais do que isso: de vergonha de ser brasileiro.
Em trevas passadas, Otto Lara Resende, deprimido e impotente diante das coisas que aqui aconteciam, ameaçou “trancar sua matrícula de brasileiro”. Sorte dele não poder estar aqui agora, a testemunhar e padecer os efeitos dos piores anos de nossa República.
Otto só faltou amaldiçoar o Conde Afonso Celso, jornalista e acadêmico afamado por um livro de exacerbado e ingênuo patriotismo, escrito em 1900, cujo título – Por que me Ufano do Meu País – sintetizava o fervor com que acreditava na superioridade do Brasil e no seu “deslumbrante porvir”. Exagerou as dádivas que a natureza nos deu e as potencialidades de seu povo, assegurando, nas hipérboles finais, que Deus jamais nos abandonaria. “Se aquinhoou o Brasil de modo especialmente magnânimo, é porque lhe reservava alevantados destinos”, concluiu.
Na mesma época, o poeta Olavo Bilac perpetrou A Pátria, papinha lírica para criança, que nos obrigavam a decorar e declamar, para que não esquecêssemos de amar com fé e orgulho a terra em que nascemos, pois não veríamos nenhum país (“que céu! que mar! que florestas!”) como este. Ou melhor, como aquele.
Do livrinho de Afonso Celso nasceu a palavra ufanismo, há muito pejorativa e hoje, particularmente, descabida. Não conheço um brasileiro em pleno gozo de suas faculdades mentais que se ufane, no momento, da terra em que nasceu.
Está mais do que na hora de alguém escrever algo como “Por que me Envergonho do Meu País”. E enriquecer nosso vocabulário com a palavra “envergonhismo”.
Falta noção de decoro
Se dependesse dos discursos de campanha, a política do Brasil seria um oásis da ética. O que transforma a vida pública brasileira num deserto da virtude é a insistência com que a realidade estraga as boas intenções. Da boca pra fora, o candidato Bolsonaro era bela viola. Fazia pose de político antissistema. Do governo pra dentro, o presidente Bolsonaro é pão bolorento. Personifica a perversão sistemáticaJosias de Souza
Laço com miliciano reflete grupo que chegou ao poder com Bolsonaro
As conexões entre o clã e o PM, hoje acusado de chefiar uma milícia, são conhecidas há mais de uma década. A mulher de Adriano foi contratada para trabalhar no gabinete de Flávio em 2007. Anos mais tarde, a mãe também conseguiu uma vaga.
Se alguém ainda conseguia acreditar que era tudo coincidência, as informações levantadas pelo Ministério Público estão aí para mostrar que esses vínculos fazem parte da operação política da família. Quando Bolsonaro se elegeu presidente, foi esse o grupo que chegou ao poder.
O suspeito de comandar uma milícia sanguinária no Rio era praticamente um dos sócios da rachadinha que funcionava no gabinete de Flávio na Assembleia Legislativa. Os promotores descobriram que uma parte do dinheiro devolvido ao assessor Fabrício Queiroz, operador do esquema, passou por uma conta bancária controlada por Adriano.
A mulher do ex-policial reconheceu a amigas que era funcionária fantasma e repassou parte do salário a Queiroz. Numa troca de mensagens, Adriano também indicou que recebia parte desse dinheiro público.
Danielle da Nóbrega ficou no gabinete de Flávio por 11 anos. O clã não pode dizer que não sabia quem era o casal. Quando Bolsonaro preparava sua última campanha, Queiroz procurou a mulher para dizer que ela poderia perder o cargo. Contou que a família não queria correr riscos, dada sua relação com o ex-policial.
O verniz anticorrupção de Sergio Moro ou o encanto liberal de Paulo Guedes não ocultam esses laços. Outrora implacável, o ministro da Justiça permanece apático, enquanto os fãs da equipe econômica preferem fingir que só os números importam.
Mas é impossível fechar os olhos para o pacote completo. Só há um governo. Nele, existem Jair, Flávio, Moro, Guedes, Queiroz, Adriano...
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