segunda-feira, 28 de julho de 2025

Pensamento do Dia

 


Amazônia pode ser solução para o adubo do agronegócio

A densa floresta, os igarapés e os rios que fluem silenciosos nos arredores do município de Autazes, no estado do Amazonas, escondem fenômenos invisíveis à primeira vista. Um deles é o potássio, mineral que pode ser encontrado no subsolo, a 800 metros de profundidade. O recurso usado como base para a produção de fertilizantes simboliza a promessa para reduzir a dependência do país de adubos importados – especialmente após a invasão da Ucrânia pela Rússia, em 2022.

Outro "fato invisível" é a complexa teia de interesses econômicos, políticos e as ameaças ambientais decorrentes da exploração do mineral.

O potássio promete alavancar o agronegócio brasileiro. Mas, para retirá-lo do solo, a empresa Potássio do Brasil, subsidiária da canadense Brazil Potash Corp, precisa perfurar áreas inteiras de florestas intocadas. Estima-se o acúmulo de pelo menos duas pilhas de rejeitos com quase 80 milhões metros cúbicos só de resíduos descartados, sem uso posterior. O volume foi comparado à altura de dois prédios de oito andares. Cientistas e ambientalistas alertam que, com a retirada desse mineral do subsolo, áreas inteiras podem afundar.

Nos arredores das futuras instalações desse projeto, vive a comunidade de indígenas do Lago do Soares e Urucurituba, que aguarda, desde 2003, a demarcação oficial de seu território pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai). Cerca de 200 famílias da etnia mura estão na aldeia Soares. Conhecidos pelas suas habilidades na navegação, os indígenas mura ocupam a região dos rios Madeira, Amazonas e Purus há pelo menos um século.


"Nos pontos onde as perfurações já aconteceram, boa parte da floresta foi derrubada – e para garantir o acesso às áreas exploradas será necessário desmatar ainda mais", alerta o tuxaua (liderança tradicional) Filipe Gabriel, de 27 anos.

Há dois anos, ele está em pé de guerra com a Potássio do Brasil, a empresa responsável pelo projeto. Passou a enfrentar pressões internas, vendo lideranças locais se alinharem aos interesses da mineradora, e já foi alvo de ameaças. O temor de Filipe é que a sua aldeia acabe soterrada antes mesmo de ser reconhecida oficialmente como território indígena.

Entre março e abril, a reportagem da DW percorreu Autazes e as áreas próximas ao município que fica a cerca de 260 km a sudeste da capital amazonense.

O percurso é feito de carro, balsa e o último trecho, até o Lago de Soares, com uma pequena embarcação local (voadeira). Quem navega pelos igarapés de Autazes, e nas áreas próximas dos locais onde a empresa pretende implementar o projeto, pode estranhar como búfalos, cada vez mais presentes na região, foram parar em áreas cercadas por rios de fortes correntezas e profundos lagos. Os animais dificilmente atravessariam os rios nadando.

Segundo o biólogo Lucas Ferrante, que atua no Centro Gestor e Operacional do Sistema de Proteção da Amazônia (Censipam), há um processo de grilagem – tomada de posse de terras com falsos títulos de propriedade – com a introdução desses animais em certas áreas. A grilagem, de acordo com Ferrante, também fortalece o crime organizado, como o Primeiro Comando da Capital (PCC).

O biólogo acrescenta que os pecuaristas estariam negociando essas terras diretamente com a Potássio do Brasil, uma vez que não conseguiram adquiri-las diretamente de outros indígenas. "Nós vemos uma organização criminosa atuando na grilagem de terras, que inclusive tem invadido a região de Autazes, invadindo terras indígenas, e disseminando búfalos nessas áreas griladas", disse à DW Brasil o também colaborador do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa).

"Estamos falando de uma articulação do crime organizado diretamente com a Potássio do Brasil para ter acesso a áreas indígenas na Amazônia, o que agrava ainda mais. É uma empresa que, de fato, tem adquirido isso de maneira criminosa", acrescentou.

Questionado, o Ministério Público do Amazonas disse que investigações nestes casos são sigilosas. A reportagem também procurou a empresa Potássio do Brasil para questionar se reconhece as acusações, como tem sido a aquisição de terras para o projeto, e como controla todas as etapas desse processo. A empresa não respondeu ao pedido de esclarecimentos da reportagem até a conclusão da matéria.

Mas, segundo Ferrante, "o Brasil está abrindo uma das áreas mais conservadas, um dos últimos blocos de floresta intocada no meio da Amazônia, acelerando uma nova fronteira do desmatamento – e nós temos vários estudos publicados sobre isso – justamente para facilitar a exploração".

Ferrante destaca ainda que sua equipe pesquisa uma alternativa sustentável: o uso de microrganismos capazes de fixar potássio no solo, o que pode tornar a atual forma de extração de potássio obsoleta em apenas cerca de dez anos.

"Até esse potássio começar a ser explorado vão alguns anos e, até lá, nós já teremos essa biotecnologia em mãos, o que dispensa esse trabalho retrógrado que viola o direito dos povos indígenas e que ameaça a Amazônia através das ações da Potássio do Brasil nesse território", disse.

Atualmente, a empresa avança com o projeto de extração de potássio do solo para a produção de fertilizantes químicos.

A Brazil Potash Corp, ligada ao investidor Stan Bharti e ao banco Forbes & Manhattan, pretende explorar potássio em mais de um milhão de hectares entre Autazes e Óbidos, no Pará. Isso significa que a expansão desse projeto para além dos arredores de Manaus poderá ter impactos ambientais em uma grande área de floresta na Amazônia, abarcando vários estados, além do Amazonas.

Porém, desde 2015, o Ministério Público apura irregularidades no licenciamento ambiental do projeto, denúncias de ameaças de morte, cooptação de lideranças indígenas, assédio e a compra de terras sob coação nos arredores de Autazes.

Anunciado no município há mais de dez anos, o projeto da Brazil Potash Corp. para construir uma mina de potássio já tem as obras iniciadas. Os moradores nos arredores das futuras instalações relataram à DW Brasil que há o movimento de embarcações e que parte da área começou a ser desmatada.

Porém, isso acontece sem as licenças do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), órgão federal. Através do órgão estadual Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas (Ipaam), a empresa obteve o licenciamento ambiental fracionado, relata o advogado que representa a comunidade. Foram licenças individuais separadas para diferentes partes do projeto, como a construção de estradas e depósitos de rejeitos, em vez de uma licença emitida pelo Ibama.

A DW Brasil entrou em contato com o Ibama e questionou por que o órgão não é o responsável pelo licenciamento ambiental, considerando que se trata de um projeto de interesse nacional. Em resposta, o Ibama afirmou que se baseia no artigo 7º da Lei Complementar nº 140/2011, segundo o qual sua atuação seria obrigatória apenas caso as instalações impactassem diretamente terras indígenas. Por esse motivo, como são áreas em demarcação, declarou que "não se verificam as características que justificariam a atuação do órgão".

Mas a abstenção do Ibama no licenciamento tem sido questionada pela Justiça. Em 2023, a justiça do Amazonas suspendeu o licenciamento ambiental, alegando que a competência era do Ibama, e não do órgão estadual Ipaam. No ano passado, porém, o Tribunal Regional Federal da 1° Região (TRF1), reverteu a decisão, fortalecendo o Ipaam no impasse que se arrasta há cerca de dez anos.

"A gente sabe que por costume – um costume triste –, os órgãos estaduais tendem a ser muito mais propensos a liberar licenças de qualquer jeito do que o federal, e é o que está acontecendo aqui. Há violações crassas, licenciamento feito de qualquer maneira, cheio de irregularidades pelo órgão estadual", disse à DW Brasil o procurador Fernando Merloto Soave.

Outro imbróglio no licenciamento ambiental é o fato de as comunidades mais impactadas pelas futuras instalações do projeto não terem sido ouvidas, segundo explicou à DW Brasil o MPF do Amazonas. A consulta às comunidades do entorno é uma diretriz da Organização Internacional do Trabalho (OIT).

O advogado do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), João Vitor Lisboa Batista, que representa as comunidades Lago do Soares e Urucurituba, diz que "o maior desafio tem sido provar que a consulta realizada não foi válida porque as pessoas que deveriam ser ouvidas foram ignoradas".

Segundo o advogado, a estratégia da empresa Potássio do Brasil foi deslocar a área do empreendimento para os locais em processo de demarcação, como Lago do Soares e Urucurituba, já que a Constituição Federal proíbe mineração em terras indígenas. Segundo a liderança indígena Filipe Gabriel, com frequência diz-se na região que "se a terra não está demarcada é porque não tem indígenas, então se pode explorar, porque não tem donos".

Mas o MPF questiona esse argumento e explica que "não se pode minerar em cima desses territórios, estejam eles demarcados ou não", diz o procurador Fernando Merloto Soave. "O que faz o território existir, ou não, é seu uso tradicional. Delimitar ou demarcar é papel burocrático do governo", acrescenta.

No início de abril, a Funai visitou a aldeia Lago do Soares, com os primeiros apontamentos para a delimitação do território. Uma terceira visita deste órgão que realiza estudos para identificar, delimitar, demarcar e registrar as terras indígenas será realizada em setembro deste ano.

Se a área do Lago do Soares for demarcada como terra indígena pela Funai, o Ibama deve intervir (de acordo com a Constituição) e isso implicaria, explicam os advogados, em um processo de licenciamento ambiental mais minucioso sobre os impactos ambientais do empreendimento.

Enquanto isso, a empresa já atua em Urucurituba e movimenta seus maquinários pelos territórios, relatam moradores no local. Segundo consta no site da Potássio do Brasil, "o povo mura de Autazes, composto por 36 aldeias e representado pelo Conselho Indígena Mura (CIM), seguiu integralmente o Protocolo, com 94% das aldeias aprovando o projeto, superando o quórum mínimo de 60% exigido".

As controvérsias não param por aí. O MPF também investiga pagamentos de subornos de cerca de R$ 10 mil a lideranças indígenas para que apoiassem projeto.

Outra questão apontada pelo MPF é a denúncia de que terras estariam sendo vendidas sob coação. Em alguns casos, os contratos incluíam cláusulas de confidencialidade que impediam os vendedores nas comunidades de revelar qualquer informação sobre as transações.

Diante das críticas, a Potássio do Brasil e o governo federal defendem o projeto para explorar potássio em Autazes como estratégico para os interesses nacionais, inclusive para garantir a segurança alimentar no país e no exterior. Isso porque a guerra entre Rússia e Ucrânia afetou o fornecimento global do mineral, e o Brasil, que importa 96% do insumo – principalmente da Rússia, Canadá e Belarus –, busca reduzir sua dependência externa. A produção local diminuiria custos de transporte e tornaria os fertilizantes mais acessíveis.

Segundo a empresa relata em seu site, o projeto prevê uma produção anual de 2,4 milhões de toneladas de potássio, o que poderia suprir 20% do consumo nacional e fortalecer o agronegócio ao garantir um fornecimento estável. Atualmente, antes mesmo de completamente finalizado, o projeto gera lucros. Em novembro de 2024, obteve US$ 30 milhões com uma oferta pública inicial de ações (IPO) na Bolsa de Valores de Nova York.

Banquete para poucos

Nós brasileiros fomos historicamente divididos em dois blocos de pessoas, como se fossem predestinados a serem eternamente incompatíveis entre si: um, formado por afortunados, insensíveis na sua maioria às questões da pobreza, e o outro, constituído pelos desprovidos das condições mais essenciais de sobrevivência e privados de direitos aos acessos viabilizadores da dignidade e da emancipação humana.

Afortunados aqui são todos os que arbitram em causa própria, por vias diretas ou indiretas, os acessos para se apropriarem do que é gerado pela coletividade. Como coletividade, estou considerando a somatória dos que vivem sob as mesmas regras, em que uma minoria se apropria da maior parte do que resulta dos processos produtivos, tais como bens, serviços, cultura, lazer, proteção social, e tantos outros que deveriam ser compartilhados entre todos os que contribuem para a sua produção.


Tudo em nome da meritocracia, palavra muito falada pelos parcos privilegiados que não se julgam pelo mérito, mas pela hereditariedade e que definem como deve ser a partilha do que é vital para todos. O rigor no mérito só é cobrado dos outros, daqueles que não são beneficiados com a equidade nas oportunidades e que, em consequência, ficam impossibilitados de participarem das verdadeiras competições.

Na forma como essa partilha é feita, poucos são os aquinhoados com o que resulta da produção realizada pela esmagadora maioria da população ativa. Empresários têm isenções fiscais de cerca de R$ 587 bilhões, enquanto isso, o maior programa social do Brasil, o Bolsa Família, é rejeitado pela maioria da minoria; o que dá uma ideia do quão desigual é a repartição da riqueza produzida no País.

Uma das providências necessárias para reduzir a apartação social brasileira é acabar de vez com o incentivo fiscal enviesado, aplicado como muleta ou privilégio. O País não suporta mais essa prática com o dinheiro desses incentivos gerado por impostos pagos pelo conjunto das empresas e das pessoas físicas, ricas, pobres e indigentes, como recompensa pelo que o Estado oferece para assegurar o convívio social, as bases educacionais, a proteção sanitária e as condições infraestruturais de produção.

Não estou fazendo apologia à igualdade na distribuição de riqueza nem na posse de bens materiais, mas na igualdade de oportunidades de acesso aos instrumentos de mobilidade econômica, social e cultural. A escola do rico tem de ser igual à escola do pobre.

Temos um dilema nessa questão da desigualdade. Os beneficiários da acumulação da riqueza, geralmente, não aceitam qualquer medida governamental que retire a mínima fração de seu quinhão para atenuar a situação dos que nada ou quase nada têm. Até as propostas mais racionais, como a que visa cobrar um pouco mais de imposto de pessoas com alta renda, para compensar a isenção do pagamento de Imposto de Renda para quem ganha até R$ 5 mil vêm sendo combatidas por parlamentares representantes dos interesses da minoria privilegiada.

O discurso sobre a necessidade de redução de despesas para equilibrar as contas públicas é reverberado nas instâncias parlamentares, judiciárias e executivas, mas ninguém quer cortar na própria carne. Alguns parlamentares não aceitam sequer falar em redução ou comprometimento da aplicação do dinheiro de emendas de forma coerente com políticas públicas, membros do Judiciário mudam de assunto quando o tema é eliminação dos “penduricalhos” e integrantes dos Poderes Executivos, não tomam medidas efetivas para cortar certos gastos, inclusive determinados benefícios fiscais.

A defesa destes privilégios assemelha-se a um banquete em que os comensais se recusam aceitar à mesa quem já não esteja nela há muito tempo. Fruto de uma mentalidade colonial e escravagista renitente, esse comportamento só permite aos que estão fora da mesa as migalhas que caiam dela ou as sobras resultantes do desperdício ostentatório.

Entre os agravantes do processo de desigualdade está o progressivo aumento da concentração de renda resultante do rentismo, que nada produz de riqueza real, enquanto enriquece muitos com um dinheiro estéril. Este é um tipo de sistema que funciona como uma solitária a comer o corpo por dentro, enfraquecendo o organismo social.

O mundo está diante de uma encruzilhada formada pela radicalização da disputa geopolítica e pela necessidade de uma reconciliação que promova o respeito nas relações entre países. É mandatório controlar os ímpetos que decorrem de conflitos históricos que contaminam fronteiras e territórios econômicos, culturais e religiosos.

Nesse cenário, o Brasil pode ser um exemplo de país que tem tudo para promover a inclusão de brasileiros e abrir portas para imigrantes, como tem feito secularmente. Para isso, é urgente acabar com o fosso da desigualdade decorrente da concentração inconsequente de riqueza, que penaliza a imensa maioria de sua população e trava a dinâmica de um desenvolvimento sustentado, que pode ampliar sua capacidade de fazer a inclusão dos que já vivem aqui e de acolher a quem venha de fora.

Crise do jornalismo deixou terreno fértil para erosão da democracia

Estamos imersos em uma crise histórica de longa duração. Os pilares que sustentaram a democracia liberal do século 20 —representação política, jornalismo profissional, instituições reguladoras, pactos de coesão social— sofrem um processo de desestruturação progressiva.

A explosão informacional trazida pela internet não produziu mais esclarecimento; ampliou o ruído, fragmentou consensos e corroeu formas tradicionais de mediação. O jornalismo, paralisado em sua arrogância institucional, não soube compreender a emergência do novo ambiente em rede.

As plataformas digitais, ao contrário, não hesitaram: capturaram rapidamente o centro da esfera pública, reconfigurando as formas de circulação de informação, opinião e afeto.

Embora a literatura crítica internacional acumule diagnósticos relevantes sobre a colonização algorítmica e o declínio das instituições intermediárias, é notável —e preocupante— o silêncio generalizado, inclusive no jornalismo, sobre a verdadeira dimensão dessa crise. Esta talvez seja a mais grave omissão pública do nosso tempo.

O que proponho aqui não é apenas um diagnóstico, mas um esforço deliberado de nomear essa dissolução como uma crise estrutural e civilizacional, com a qual o jornalismo tradicional se mostrou, até aqui, incapaz de lidar.

Não relato apenas uma experiência pessoal, mas a trajetória de uma geração que acreditou na função pública do jornalismo e assistiu, perplexa, ao seu esvaziamento como mediador qualificado da opinião pública.


Minha trajetória —do Jornal da Tarde e da Agência Estado à criação da Broadcast e ao diálogo com o MIT Media Lab— revela que o caminho não está na nostalgia nem na resistência passiva, mas na reinvenção ativa do jornalismo como infraestrutura pública de articulação social. Na virada do milênio, ao mergulhar nas pesquisas do Media Lab, compreendi que não vivíamos apenas uma revolução tecnológica, mas uma profunda e irreversível transformação epistemológica.

Foi Harold Innis, autor de "O Viés da Comunicação" e pai da Escola de Toronto, quem melhor formulou esta chave interpretativa: a forma como uma sociedade se comunica determina sua estrutura de poder.

Ao estudar a transição dos impérios orais para os escritos, dos registros em pedra à imprensa de massa, mostrou como o tempo social é moldado pelos meios de registro e transmissão da informação.

Mais que isso: o meio técnico dominante molda o próprio ambiente social, delimitando as possibilidades de organização política, econômica e cultural. Marshall McLuhan, seu discípulo mais conhecido, levou essa ideia adiante. Ao afirmar que "o meio é a mensagem", deslocou o foco do conteúdo para a forma da mediação. Televisão, rádio, jornal —cada meio conforma uma sensibilidade e uma lógica de organização social.

Hoje, a internet, com sua capacidade de retroalimentação em tempo real, constitui um novo sistema nervoso coletivo: um ambiente cognitivo global estruturado por tecnologias que transcendem fronteiras e operam em ritmo contínuo. Mas, pela primeira vez na história, essa infraestrutura técnica está concentrada nas mãos de poucos atores privados, sem mediação pública e sem projeto democrático correspondente.

Mesmo em crise, os jornais ainda exercem influência simbólica —citados por autoridades, lidos por formadores de opinião, referenciados por outras mídias. Mas é uma influência terminal, sem futuro, se não houver reconfiguração estrutural.

O jornalismo precisa deixar de ser apenas um produtor de conteúdos e retomar seu papel como arquitetura informacional: organizador de fluxos, mediador de sentidos, articulador de redes. No século 20, os jornais foram centros de gravidade de comunidades, catalisadores de sociabilidades e pactos sociais. A travessia para o século 21 exige que reaprendam a desempenhar essa função em ambiente digital.

Essa função foi esvaziada não pela obsolescência de sua missão, mas pela incapacidade institucional de compreender e ocupar o novo ambiente em rede.

A internet, concebida nas décadas de 1960 e 1970 como uma infraestrutura descentralizada e resistente ao controle, foi rapidamente capturada por interesses corporativos. Google, Facebook, Amazon e outras empresas surgidas em garagens ocuparam o vácuo deixado por um jornalismo preso à lógica do broadcast, enquanto o mundo passava a se estruturar segundo uma nova lógica em rede.

O resultado é uma arquitetura algorítmica voltada à maximização do engajamento, que expõe o público à manipulação informativa em escala industrial e coloniza a esfera pública com interesses comerciais disfarçados de neutralidade técnica.

O poder informacional, antes disperso em múltiplos centros de mediação, hoje está concentrado em poucas corporações que controlam não apenas os fluxos de atenção, mas as condições para a produção social de sentido.

Carrego a história como lente e vejo a rede como extensão das antigas trilhas culturais: as rotas atlânticas que expandiram a economia mediterrânea; os peabirus que cruzavam os Andes e o litoral brasileiro e serviram de base para a aventura do bandeirismo, a expansão das nossas fronteiras e a ocupação do interior; os caminhos do telégrafo que unificaram o território nacional; as rotativas que ajudaram a consolidar os Estados-nação.

A rede é, agora, a nova trilha —fluida, fragmentada, repleta de bifurcações e zonas de sombra. Como aquelas trilhas do passado, ela redefine os circuitos do poder e da circulação. Mas vai além: conecta consciências, reorganiza o espaço público e inaugura um novo estágio da humanidade.

Inspirado por meu bisavô Júlio Mesquita —que, por meio de sua atuação como empresário e jornalista, foi um dos principais articuladores das redes sociais e de interesse que estruturaram São Paulo no início do século 20—, dediquei minha trajetória jornalística também à compreensão de como se organizam os fluxos de informação na sociedade.

Em 1991, na Agência Estado, ao lançar a Broadcast, sabíamos que estávamos criando um protótipo do que viria: uma estrutura de informação em tempo real, personalizada, dinâmica e interativa, embrião da lógica em rede que depois se tornaria dominante.

A diferença é fundamental: a Broadcast nasceu com responsabilidade editorial, ancorada em critérios de curadoria e compromisso com a veracidade. Já as plataformas sociais, apesar de seu potencial exponencial de crescimento, foram concebidas com um único objetivo: monetizar a atenção. E é justamente aí que começa o problema.

A imprensa tradicional, presa à lógica do século 20, ignorou que a nova mídia era interativa. Quando percebeu, já era tarde. Em vez de assumir o papel de curadora dos fluxos, preferiu simular a estética digital e disputar cliques. Transplantou a lógica do papel para a web como um cadáver reanimado —e ele ainda anda.

As Redações seguiram produzindo para o público, não com ele. Ignoraram o canal de volta e perderam o centro do processo democrático. Enquanto isso, os algoritmos aprenderam a explorar o medo, o tribalismo e o consumo. A esfera pública foi colonizada.

As big techs deixaram de ser apenas empresas: tornaram-se plataformas essenciais à democracia contemporânea, controlando a infraestrutura social por onde nos comunicamos, nos organizamos e tomamos decisões coletivas. Essa centralidade, contudo, não veio acompanhada de um sistema de governança compatível com a responsabilidade que passaram a exercer.

O controle privado concentra poder sem contrapesos institucionais. Nesse vácuo floresceram aventureiros da comunicação, explorando inseguranças e preconceitos por meio de manipulação emocional. Essa degeneração da esfera pública é hoje uma ameaça real à democracia.

Quem controla os fluxos de atenção controla a opinião pública. As plataformas sabem disso. Seus algoritmos não são neutros: moldam o que vemos, como interagimos, até como votamos.

Hoje, cinco ou seis empresas, todas de tecnologia, têm poder de manipular a esfera pública global. Um poder inédito. Nem a igreja medieval, nem os impérios da imprensa ou a TV dos anos 1960 tiveram alcance comparável. Pior: é um poder opaco, automatizado e orientado por cliques, não por um debate saudável.

A Comissão Europeia reconheceu isso em 2018, ao inspirar os primeiros marcos de regulação digital na Europa. Seu relatório mostrou que os algoritmos priorizam engajamento e monetização, amplificando a polarização, espalhando desinformação e corroendo o tecido democrático. Concluiu que não basta regulação ou checagem: é preciso restaurar a coesão simbólica por meio de narrativas públicas potentes.

Ao propor uma abordagem interdisciplinar —unindo psicologia, ciência política, jornalismo, computação e educação—, o documento aponta que a desordem informacional exige mais do que ajustes técnicos: requer reconstrução coletiva da confiança pública.

Na narrativa dominante, diz-se que a desinformação se combate com "educação midiática". Como se o cidadão comum tivesse a obrigação de entender algoritmos, filtros bolha e fluxos patrocinados. É uma falácia —e uma perversidade.

O próprio relatório reconhece isso. A educação midiática deve ser um esforço cívico em larga escala, envolvendo educadores, jornalistas, ONGs, plataformas e políticas públicas, e não um fardo individual.

A responsabilidade pela qualidade do ambiente informacional é institucional, ética, política e regulatória. Mas as plataformas evitam essa responsabilidade —e parte da imprensa, ao ecoar esse discurso, torna-se cúmplice.

O que testemunhamos é a convergência entre regimes autoritários eleitos e a infraestrutura informacional dominada pelas big techs. O caso americano é emblemático: Donald Trump ameaça jornalistas, semeia ódio contra a imprensa e, ao mesmo tempo, foi cortejado por figuras como Elon Musk, que controla uma das principais plataformas de circulação de discurso político.

Essa aliança é tácita, mas eficiente. Regimes como o de Trump deslegitimam a imprensa, enquanto as plataformas desestruturam sua base econômica e capturam sua audiência.

Ambos têm interesse em um jornalismo fraco. Um quer evitar o escrutínio; o outro, monopolizar a atenção. Contudo, a relação entre Estado e plataformas é mais ambígua do que uma simples aliança. Moldam-se mutuamente, ora se cooptam, ora se confrontam.

O recente rompimento público entre Musk e Trump —após divergências sobre subsídios, regulação e posturas institucionais— expôs as tensões internas desse arranjo informal, mas estrutural. A lógica de cooptação permanece, mas os atores já disputam o protagonismo da esfera pública.

Esse embate aparece nos conflitos regulatórios em democracias marcadas por crises de representação e erosão da mediação jornalística. Na Hungria, Orbán subordinou a imprensa e instrumentalizou as plataformas.

Na Rússia, o Kremlin promoveu redes locais e explora brechas em plataformas globais para desinformação. Na China, o controle é total: bloqueio de redes ocidentais, vigilância e regulação que transforma aplicativos em extensões do Estado.

Na Índia, Modi pressiona plataformas, reforça leis de controle e mobiliza redes para campanhas nacionalistas. Nas Filipinas, Duterte usou o Facebook para consolidar apoio e atacar opositores.

No Brasil, sob Bolsonaro, as plataformas digitais deixaram de ser apenas meios e passaram a integrar uma verdadeira rede social de fato, centralizada no entorno familiar do poder, com Carlos Bolsonaro atuando como publisher —definindo pautas, controlando edições, operando sistemas de distribuição e mecanismos de cooptação.

WhatsApp, X (ex-Twitter) e Facebook tornaram-se canais centrais da comunicação oficial do governo. A base foi mobilizada digitalmente para atacar a imprensa, hostilizar adversários e deslegitimar instituições. O caso brasileiro revela, com nitidez, como a lógica das plataformas pode ser instrumentalizada para corroer a esfera pública e minar os fundamentos da mediação democrática.

Se o jornalismo tivesse se reinventado como mediador em rede, e não como emissor vertical, boa parte do espaço ocupado pela desinformação poderia ter sido contido. Trump, Orbán, Duterte e Bolsonaro talvez não tivessem encontrado terreno tão fértil para manipular a opinião pública.

Nesse cenário, a imprensa não pode mais se limitar a produzir e distribuir informação. Precisa, como fez a família Bolsonaro de forma perversa, fomentar e monitorar redes sociais de fato, mas com outra finalidade: reconstruir o espaço comum da linguagem, da escuta e do conflito civilizado.

Essa é hoje a tarefa essencial do jornalismo. Para cumpri-la, é preciso desenvolver sistemas e ambientes próprios, que sustentem uma relação em rede com o público, rompendo com a lógica reativa e subordinada às plataformas. Não se trata apenas de informar, mas de reorganizar a esfera pública em torno de vínculos mais legítimos, mediações transparentes e sentidos compartilhados.

Isso exige uma organização editorial conectada a redes sociais reais —aquelas formadas por vínculos vivos nos territórios, vínculos entre o público e seus grupos de interesse, compostos também por educadores, cientistas, lideranças locais e cobertos por jornalistas de campo.

Isso vai muito além das estruturas artificiais que as plataformas das big techs passaram a chamar de "redes", com a cumplicidade da imprensa, apenas para sustentar um modelo de negócios perverso, baseado na extração da atenção e na desinformação.

O jornalismo que se faz necessário hoje é aquele capaz de articular inteligência distribuída e sustentar-se não apenas por publicidade, mas por confiança, pertencimento e corresponsabilidade.

Não se trata de nostalgia. Como alertava McLuhan, tendemos a enfrentar o novo com os reflexos do passado, "uma marcha para o futuro olhando para o retrovisor".

É hora de redesenhar a mediação: não há democracia sem esfera pública, nem esfera pública sem estruturas de mediação. E, neste novo ambiente, isso exige criar relações em rede com o público —vínculos contínuos, distribuídos e confiáveis, capazes de sustentar um jornalismo que não apenas informe, mas articule—, reconectando-o.

O "Relatório de Desenvolvimento Humano 2025 — Uma Questão de Escolha: Pessoas e Possibilidades na Era da IA", publicado recentemente pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), é um chamado à ação.

Segundo o documento, a reconstrução da democracia passa, necessariamente, pela reconstrução do jornalismo, articulada a um novo pacto político que inclua governança democrática das infraestruturas digitais, transparência algorítmica, responsabilização das plataformas e estímulo a ecossistemas informacionais sustentáveis.

O que está em jogo é uma encruzilhada civilizatória entre emancipação e servidão algorítmica. O conceito central do relatório é o "poder agencial algorítmico": algoritmos que moldam escolhas, organizam o visível e delimitam o possível. Treinados com dados históricos, amplificam desigualdades sob a aparência de neutralidade.

Essa infraestrutura, controlada por poucos, configura uma colonização simbólica. As plataformas moldam afetos, polarizam crenças e corroem os mecanismos da opinião pública. O relatório propõe caminhos: uma "inovação com intenção", orientada por valores públicos, e uma "economia de complementaridade" entre humanos e máquinas.

O PNUD é incisivo: o futuro da IA será determinado por escolhas políticas e institucionais, não tecnológicas.

Três pilares são fundamentais: transparência, para que os critérios que orientam a operação algorítmica sejam compreensíveis e auditáveis; responsabilidade, para que decisões automatizadas possam ser contestadas e revisadas; e contestabilidade, para que haja mecanismos institucionais efetivos de revisão e correção.

O relatório alerta que, ao deixar as plataformas definirem os termos do debate, estamos entregando a cidadania a sistemas opacos e não contestáveis. Essa "automatização do poder" captura atenção, promove consumo e reforça desigualdades. Este é o núcleo da questão: a governança da inteligência artificial é, antes de tudo, um desafio político.

Não há arranjo institucional viável sem enfrentar a extrema concentração de poder informacional e computacional nas mãos de um punhado de empresas privadas, guiadas unicamente por lucro e controle de mercado. As propostas de regulação, tal como estão sendo desenhadas, tendem a reforçar ainda mais esse domínio.

Só uma ação coercitiva de alcance global —capaz de afetar diretamente seus ganhos, desmontar estruturas de monopólio e inverter os incentivos predatórios— pode, de fato, mudar o jogo. É preciso falar a única linguagem que elas entendem: o bolso.

O diagnóstico do PNUD converge com a análise que Martin Wolf, principal comentarista econômico do Financial Times, vem desenvolvendo desde 2014: caminhamos para uma era de regimes autocráticos, impulsionados por ressentimentos de massa gerados pelo capitalismo financeiro e alavancados por plataformas digitais que concentram o poder informacional.

Em "The Crisis of Democratic Capitalism", Wolf argumenta que a sobrevivência da democracia depende de instituições intermediárias fortes e legitimadas, capazes de sustentar uma esfera pública funcional. Sem jornalismo independente, crítico e estruturado como mediação confiável, abre-se espaço para a desinformação, o tribalismo e a erosão dos fundamentos republicanos.

A questão central não é apenas regular as plataformas, mas reconstruir a esfera pública em meio a novas infraestruturas de poder. O relatório do PNUD é um chamado à ação: não podemos seguir como usuários passivos de sistemas algorítmicos. Precisamos deliberar coletivamente sobre o desenvolvimento tecnológico, a arquitetura informacional e os valores que a orientam.

Este é um ponto de inflexão civilizatório: ou criamos mecanismos institucionais para conter a lógica extrativista das plataformas, ou veremos consolidar-se um colonialismo digital que restringe liberdades, corrói a deliberação democrática e reduz a agência humana à lógica dos algoritmos.

O desafio é político. Exige um novo pacto social que subordine a tecnologia à emancipação, não à dominação.

O silêncio público e institucional sobre a gravidade dessa crise é, ele próprio, parte do problema. Persistir nesse mutismo equivale a legitimar a nova ordem algorítmica como inevitável e incontornável. Romper com esse silêncio é o primeiro passo para a reconstrução da esfera pública.

Ou tomamos a iniciativa de desautomatizar a esfera pública e democratizar as infraestruturas digitais, ou permaneceremos como espectadores passivos da consolidação de uma nova ordem social algorítmica, na qual a liberdade e a democracia não terão mais espaço para florescer.

Não se trata apenas de propor ajustes ou inovações incrementais: é preciso coragem política, intelectual e institucional para reimaginar o jornalismo e as infraestruturas digitais como bens públicos essenciais à democracia.

Esta tarefa é ainda mais urgente diante do quadro de insegurança e desesperança que hoje atravessa a humanidade, resultado da falência das formas tradicionais de representação política, do declínio da mediação jornalística e da emergência de um poder informacional opaco e concentrado.

A reconstrução da esfera pública, portanto, não é apenas um imperativo técnico ou institucional, mas uma resposta necessária ao mal-estar difuso que corrói a confiança coletiva e ameaça o próprio futuro da democracia.

Este é o desafio essencial do nosso tempo —enfrentar a consolidação de uma nova ordem social algorítmica, imposta por conglomerados tecnológicos privados que hoje detêm mais poder do que muitos Estados nacionais.

É também o momento de lutar para retomar o espírito original da internet, uma rede sem centro e controle, pensada para crescer pelas bordas, fortalecer a autonomia dos indivíduos e ampliar os horizontes da cooperação humana.

Essa promessa foi capturada e distorcida por aplicações controladas por grandes plataformas, que concentram poder, extraem atenção e impõem lógicas opacas de vigilância e manipulação.

Se não formos capazes de reequilibrar essa correlação de forças, a democracia será apenas um simulacro tolerado pelas plataformas, e o jornalismo, uma função residual subordinada ao mercado da atenção.

Trump e a estratégia do absurdo negociado

Donald Trump tem um estilo de negociação próprio, que rompe com os protocolos tradicionais da diplomacia. Ele se apoia em uma verdade incontestável: o acesso ao mercado norte-americano é um ativo de altíssimo valor para países e empresas de todo o mundo. Mas, a partir desse fato, simula um poder absoluto — como se os Estados Unidos pudessem impor qualquer condição, em qualquer circunstância, sem custo ou consequência.

Este simulacro de soberania ilimitada ignora a realidade central do mundo contemporâneo: a interdependência dos mercados, das cadeias produtivas e das instituições multilaterais. Trump sabe disso, mas atua como se não soubesse. Impõe exigências econômicas extravagantes. E faz mais: introduz no processo de negociação exigências que não podem ser atendidas, sob pena de violar a soberania ou os princípios constitucionais do país interlocutor.

É o que se viu em diversos episódios:

• Com o Canadá, impôs tarifas sem precedentes desde a criação do NAFTA e culpou o Canadá pela crise do fentanil, ao não controlar adequadamente sua fronteira ao tráfico da droga, que já matou milhares nos EUA.

• Com o México, também condicionou as relações comerciais à já fracassada “guerra contra as drogas”, como se o problema da demanda interna nos EUA fosse irrelevante, mas que, na verdade, mostra a incapacidade deste país de combater com eficácia o tráfico de drogas.

• Com a Dinamarca, propôs a compra da Groenlândia, território autônomo com população e governo próprios, rompendo com qualquer lógica geopolítica ou ética.

• Com a União Europeia, ele instaurou um ambiente constante de tensão, utilizando tarifas como forma de pressão política e manteve o rompimento com a OTAN no horizonte de possibilidades.

• E agora, no caso brasileiro, insinua que a liberação do ex-presidente Jair Bolsonaro — réu perante o Supremo Tribunal Federal — seria condição inescapável para melhorar o diálogo bilateral e permitir a negociação da tarifa absurda de 50% nas importações dos EUA.

Essa prática revela uma estratégia recorrente: lançar exigências impossíveis, que estão fora do campo técnico e do escopo da negociação. O objetivo não é obter concessões razoáveis, mas sim desnortear o interlocutor, colocá-lo em uma posição defensiva e deslocar o debate para uma lógica de força. É a negação do multilateralismo, que nunca foi fácil, mas que criou um marco legal para as negociações comerciais entre países.

Esta estratégia de Trump faz parte de um modelo de diplomacia de intimidação, que se ancora na assimetria de poder real, mas a explora por meio do absurdo e da extravagância retórica. Em lugar de buscar acordos estáveis, Trump prefere impor constrangimentos e chantagens, criando uma atmosfera na qual o outro lado não tem margem para negociação legítima, a não ser se submeter ao arbítrio e capitular.

No Brasil, é fundamental que se mantenham os princípios constitucionais e a autonomia das instituições. A sugestão — ainda que indireta — de que o presidente da República possa interceder em favor de um réu no STF para obter benefícios diplomáticos é inaceitável. Não há margem, em um Estado democrático de Direito, para que se negocie fora dos marcos da legalidade.

Ao contrário do que Trump tenta fazer parecer, não se trata de uma disputa entre vontades políticas. Trata-se de um limite institucional inegociável.

O Brasil deve se relacionar com os Estados Unidos — como com qualquer parceiro — com pragmatismo e responsabilidade. Mas sem jamais ceder à lógica da submissão ou da intimidação. É assim que se defende a soberania nacional.

Bolsonarismo alimenta separatismo

Depois da tentativa de golpe, o bolsonarismo namora a divisão do país. Vídeos nas redes exaltam estados fanatizados pelo ex-capitão, com autoelogios e provocações, espécie de preparação para uma guerra vizinha. Sedição em marcha. “Brasil acima de tudo”, como pensamento político, é um patriotismo vago e tosco, daqueles que não conseguem viver no mesmo espaço de seus adversários. Daí o ódio contra os nordestinos, de uma região não cooptada e descrita sob preconceito. Ordem do dia: “Rachar para reinar”.


O fracionamento do país é uma velha arma na política brasileira, sacada desde os primórdios, ali pelo Império. Ao norte e ao sul ocorreram movimentos separatistas, sob justificativas as mais diversas. Foram sempre combatidos pelo poder federal. No início da República, os miseráveis de Antônio Conselheiro apareceram pintados como monarquistas e, depois, ponta de lança de racha territorial. Era mentira — a fake news da época — para encobrir centenas de mortes de depauperados seres humanos, como está em “Os sertões”, de Euclides da Cunha, escritor e engenheiro militar que não se deixou enganar pela conversa dos companheiros de farda.

A manutenção da integralidade do território brasileiro nasce sob os portugueses, baseados na diplomacia e na luta por estabelecer a sua língua, e prossegue como dogma sob os militares brasileiros. Nacionalismo incentivado por Dom Pedro II e tornado bandeira a partir da Guerra do Paraguai.

Daí ser curioso bolsões bolsonaristas retomarem o tema separatista, no embalo da polarização e do rescaldo da derrota eleitoral de 2022 — apesar do uso criminoso da máquina estatal. Sem esquecer, por isso o espanto, que Jair Bolsonaro é capitão reformado. Um mau militar, segundo o general Ernesto Geisel, mas um tipo gerado em meio ao pensamento verde-oliva.

O delicioso “Rondon: uma biografia”, de Larry Rohter (o jornalista que Lula da Silva quis expulsar, ui), descortina movimentos curiosos no final da Monarquia e início da República. O marechal Cândido Rondon, figuraça, engenheiro militar e colega de Euclides da Cunha, com a missão de implantar o telégrafo no Centro-Oeste, passou maus bocados com elementos de sua tropa. Condenados por diversos crimes, de assassinato a roubos ou até a prosaica vadiagem, eram sentenciados a pagar suas penas em serviços militares. Lá iam para os cafundós e matas de Mato Grosso, sob as ordens de Rondon, bater estacas e puxar fios. Os bons e maus faziam as mesmas tarefas. Em documentos e cartas, com trechos reproduzidos no livro, o marechal lamenta a indisciplina e indolência de parte de seus comandados — rebelados e reticentes diante da hierarquia militar.

Bolsonaro (ainda) não foi condenado a prestar serviços, mas sua conhecida indisciplina, como a suspeita de planejar explodir dutos no Rio, guarda parentesco com os dissabores enfrentados pelo Marechal Rondon. Após um processo disciplinar, lembremos, ele foi reformado e deixou o Exército. Seu movimento se deu por conta de alegados baixos soldos, portanto, inconformado à sua maneira com o rito salarial. Se não tiver aumento, eu boto abaixo — hum.

O separatismo de seus correligionários poderia ser uma ferramenta de pressão, não tivessem perdido as eleições no voto majoritário. Mesmo assim, é um instrumento covarde de preconceito e clivagem, dado que não é incomum quem pense em separar o sul rico do norte pobre. Nos vídeos, os bolsonaristas se colocam como heróis da pátria, trabalhadores e vencedores incansáveis, artífices individuais do progresso e riqueza (embora não tenham produzido um Guimarães Rosa ou João Cabral de Melo Neto). Eles não se acanham ainda em propagandear um racismo difuso — o sangue branco, de origem europeia, é saudado como diferencial. Paraná e Santa Catarina — a região mais afoita — teriam atingido seus IDHs positivos por graça divina, independente do restante (e impostos) do país. O Nordeste, pelo raciocínio, seria miserável por preguiça e má intenção. Curioso esse patriotismo Brasil acima de todos os outros. Já pediram intervenção militar, agora incentivam o separatismo.

A política brasileira — vale dizer: não só aqui — trabalha sob o reflexo do maniqueísmo de raciocínio das redes sociais. O bem x mal. É a lógica da exclusão, do banimento dos contrários. Infelizmente, a polarização não ajuda, transformada em instrumento de manutenção de poder. O separatismo bolsonarista não difere da lógica lulista, naquele diapasão já afamado nos discursos — nós x eles ou ricos x pobres. Com vocês, o Brasil esquecido por todos.