segunda-feira, 8 de julho de 2019

'Novo' Brasil


Urgência

É uma palavra que demanda ação imediata e decisiva. Incorpora a noção de tempo que acompanha existência humana em duas dimensões: a dimensão transcendental que, em “Confissões” de Santo Agostinho, identifica no presente, no agora, a representação do tempo Eterno; a dimensão do real em que o tempo se inscreve em variadas convenções, assumindo papel decisivo nas mais distintas atividades pessoais e profissionais.

Na política, o tempo (“timing”, difundida expressão anglófona) é a mais desafiadora das percepções para ações e tomadas de decisões dos atores políticos. Qual a chave para decifrar o enigma do momento certo das decisões em que erros e acertos afetam o cotidiano e o futuro de milhões de pessoas?


Não se inventou fórmula capaz de apontar soluções perfeitas. Simples: não é possível isolar e ponderar a miríade de variáveis que envolve alternativas possíveis de uma deliberação. Olhar os fatos históricos pelo retrovisor pode ter alguma serventia, mas não impede as “marchas da insensatez”. O destemor e a covardia são extremos perigosos: a virtude do caminho do meio é a prudência. Tudo na medida que será validada pelo tempo histórico.

Neste sentido, a experiência revela conhecida artimanha de “empurrar com a barriga” acreditando-se, equivocadamente, que a sorte coloca as coisas nos devidos lugares. Esperteza. Trata-se de uma forma de imobilismo e omissão. Há também o entusiasmado “quem sabe faz a hora, não espera acontecer” o que revela um pendor mais revolucionário do que político.

De longe, vem a expressão atribuída a Augusto, imperador romano, “apressa-te devagar” (festina lente), uma figura de linguagem que, ao utilizar o paradoxo, reforça o significado das palavras combinadas e recomenda sabedoria ao senso de urgência das decisões.

Passados os seis primeiros meses do governo Bolsonaro, as mais diferentes análises convergem para a objetividade dos números das pesquisas de opinião: uma expressiva queda na avaliação do governo, esvaindo-se o capital político da vitória eleitoral; o reconhecimento da necessidade inadiável da reforma da previdência, assumida, também, com ônus e bônus, pelo Congresso Nacional.

O Brasil travou. Afora o capítulo das emoções do Vaza/Lava Jato, é preciso dar o primeiro e decisivo passo para evitar o aprofundamento da crise econômica e, com ela, os abalos de uma crise político-institucional.

O senso de urgência alerta: a reforma da previdência deve ser votada na Câmara antes das “férias” do recesso parlamentar. Este descanso é incompatível com a inatividade e o sofrimento de 13 milhões de desempregados.
Gustavo Krause

O que não se aceita

O que me interessa, não é que as coisas se chamem esquerda ou direita. Interessa-me que nenhum cidadão seja excluído, que ninguém esteja diminuída. É uma questão política, moral e humana. E um rebaixamento da condição humana não é aceitável. Nós temos de progredir no sentido de maior qualificação da vida das pessoas, esse é o grande desafio na atual situação política brasileira. Mais do que uma questão econômica, eu acho que a primeira coisa a fazer é adquirir outra vez o respeito e impor, exigir um estabelecimento de paz para que o diálogo seja possível

Esse nivelzinho

Logo depois do golpe de 1964, desde o primeiro momento em que ficou evidente que a mediocridade comia solta, metendo os pés pelas mãos e dizendo o que lhe dava na telha, Stanislaw Ponte Preta se deu conta da intensidade do fenômeno e começou a registrá-lo em suas crônicas. Depois, reuniu alguns dos mais notáveis exemplos em uma série de livros — os sucessivos volumes do “Festival de Besteiras que Assola o País”, o Febeapá. Na certa não imaginava que, após mais de meio século, ainda no mesmo atoleiro de bobajadas e derrapando sem sair do lugar, os brasileiros estaríamos de novo obrigados a conviver com outro tanto de tolices, em meio ao que acaba de ser classificado como um “show de besteiras”. Desta vez, o diagnóstico vem do respeitado general Santos Cruz, ex-ministro da Secretaria de Governo, ex-comandante de forças de paz da ONU no Haiti e no Congo.


Mesmo neste tempo de comediantes no poder em outros países e com a concorrência de estrelas como Trump em cenas internacionais, o Brasil é sério candidato a se consagrar como o maior espetáculo de besteiras da Terra. Basta ver a que nos reduzimos, perdendo tempo com tititi, intrigas, retrocessos, rompantes, tuítes primários e xingamentos que circulam no entorno presidencial. Ficamos nesse nivelzinho de coisa, como definiu Santos Cruz. 

Como se pudéssemos nos dar esse luxo num país com 13 milhões de desempregados, em que a desigualdade é escandalosa, a saúde pública é uma calamidade, mais de metade da população não tem acesso a saneamento, 40% dos jovens entre 15 e 17 anos estão fora do ensino médio, e a OCDE revela que a média salarial dos professores é a pior entre todos os países pesquisados. E enquanto o mundo se dá conta de que a ameaça climática é cada vez mais premente, escolhemos dar de ombros para o perigo de catástrofe. Como se negar o problema faça com que deixe de existir.

Festival ou show de besteiras? Classifique como quiser a irresponsabilidade que assola o país. Mas o Oscar da vergonha é nosso.

Pensamento do Dia


É o futebol, estúpido!

O Brasil não é para amador, ensinou Tom Jobim. O Maracanã vaia até minuto de silêncio, disse o então governador Chagas Freitas, do Rio, ao presidente americano Jimmy Carter ao levá-lo para conhecer o estádio no início de abril de 1978. A presença dos dois na tribuna de honra não foi percebida pela massa dos torcedores.

A presidente Dilma Rousseff provou na pele a fúria do Maracanã na partida final da Copa do Mundo de 2017 entre a Alemanha e a Argentina. Bastou que sua imagem aparecesse nos telões do estádio para que o mundo viesse abaixo. Ela já fora vaiada na Arena Corinthians, em São Paulo, na abertura do Mundial.



Não foi por falta de avisos, pois, que o presidente Jair Bolsonaro amargou um dos maiores constrangimentos de sua vida. Sabe lá o que é sair do corredor dos vestiários, pôr o primeiro pé no campo e já começar a ouvir vaias? E prosseguir sob vaias até o palanque armado para a cerimônia da entrega da taça ao campeão?

Ali, além das vaias, Bolsonaro ouviu os mesmos insultos gritados pela torcida e que tanto chocaram Dilma. Mesmo assim levantou os braços para agradecer aos poucos aplausos que recebeu. E depois da entrega das medalhas aos jogadores, ainda teve a cara de pau de meter-se entre eles e apoderar-se da taça para ser fotografado.

Àquela altura, era o que de fato lhe interessava – aparecer na foto com a taça na mão e cercado por jogadores felizes. No mundo em que vive, Bolsonaro aprendeu que mais vale uma foto postada nas redes sociais para ser vista e disseminada por seus devotos do que possa a imprensa dizer a respeito do que aconteceu de fato.

Natural que como chefe de Estado fosse obrigação dele assistir ao último jogo da Copa América e participar da cerimônia da entrega de medalhas aos jogadores. Mas era perfeitamente dispensável que transformasse a ocasião em um teste para medir a aprovação do seu governo. Foi ele que anunciou que assim seria. Atirou no próprio pé.

Enquanto permaneceu em um camarote acompanhado por nove ministros, entre eles o ex-juiz Sérgio Moro, da Justiça, abalado pela revelação de suas conversas com procuradores da Lava Jato, Bolsonaro foi bem, obrigado. Convidado para entrar em campo, no que o fez foi o desastre previsível. Moro mandou-se sem ser notado.

Uma coisa é a voz das ruas que se ouve quando chamada por um lado ou pelo outro de um país onde o presidente se comporta como se ainda estivesse em campanha, e de certa forma está. Outra é a voz dos estádios que costuma se manifestar de forma irritada contra autoridades que misturam política com futebol.

Pelo visto, Bolsonaro nada aprendeu desde que tomou posse no cargo, e também nada esqueceu.

Inquisição é a mesma

O problema dos partidos é que se tornam reaccionários porque têm de funcionar com o aparelho, como qualquer igreja
António Lobo Antunes

Santas Casas

As Santas Casas de Misericórdia no Brasil são verdadeiramente “santas”. Prestam inestimável serviço à população brasileira, não recebendo em contrapartida, do governo federal e de outras instâncias da Federação, a remuneração correspondente ao seu trabalho e seu mérito. São “santas” ainda por continuarem prestando um auxílio indispensável aos brasileiros, sob chuvas e trovoadas que ameaçam até mesmo sua sustentabilidade.


O número de hospitais filantrópicos no Brasil é impressionante: 2.172. Sua rede estende-se por todo o País. Em 968 municípios só ela presta atendimento hospitalar, não há outra opção. Saúde ali significa presença de um hospital da Santa Casa. Atende, portanto, cidades que, sem ela, estariam totalmente ao desamparo.

Não deixa de existir aí um paradoxo. O serviço prestado é claramente público, enquanto a sua fonte de financiamento estatal é insuficiente para cobrir os seus custos. Os hospitais filantrópicos cuidam dos mais desfavorecidos de forma deficitária, enquanto o Estado se faz ausente. E, como se sabe, não são poucos os desperdícios nos hospitais públicos. Há um notório desequilíbrio.

Para ter uma ideia do problema, dos seus 170.869 leitos, 126.883, ou seja, 74%, são destinados ao Sistema Único de Saúde (SUS). Isso faz o custo dos serviços prestados ao sistema público, em valores de 2018, elevar-se a R$ 24 bilhões, recebendo em contrapartida, mais para contra do que a seu favor, de receitas por serviços prestados, R$ 15 bilhões. O seu déficit é, portanto, de R$ 9 bilhões, aí já descontados os valores que as instituições usufruíram em isenções, sem as quais os déficits seriam ainda maiores.

O modelo é nitidamente insustentável, só podendo levar à insolvência. As crises só tendem, nesse sentido, a aumentar, por operarem esses hospitais filantrópicos com uma tabela do SUS claramente defasada. De fato, eles terminam cobrindo esse déficit, quando conseguem tal proeza, com as receitas de convênios privados e da prestação de serviço particulares. São os seus recursos próprios que estão financiando o SUS, exercendo eles uma função de Estado, enquanto este não cumpre sua própria função.

Há dois problemas em pauta. Um é o déficit de financiamento do sistema, que só pode ser resolvido com repasses públicos, principalmente por via de uma atualização da tabela do SUS que seja realista, de acordo com o atendimento público esperado; outro é a dívida acumulada pelo sistema, que só cresce se não for equacionada realisticamente, e com juros subsidiados.

O presidente Jair Bolsonaro foi sensível a esse problema. Soube receber os representantes dessas instituições, além de lhes ter prometido, em sua campanha eleitoral, atendimento especial. Pelo destino, quando recebeu uma facada, teve sua vida salva pela Santa Casa de Juiz de Fora (MG). Sem ela provavelmente não teria resistido. Pôde ele mesmo constatar a importância desse tipo de hospital filantrópico.

Agora Bolsonaro está cumprindo sua promessa com uma linha de financiamento especial, conduzida pela Caixa Econômica Federal. Seu custo é ainda relativamente alto em relação aos bancos privados, mas representa inegavelmente um avanço. Há ainda muito a fazer no que diz respeito a outras linhas possíveis de financiamento público, como o oriundo do FGTS, que, de tão altos os custos, não podem, por isso mesmo, por ora, contribuir para a solução desses problemas.

O que importa, porém, é que as discussões foram abertas, iniciativas foram tomadas e diálogos, estabelecidos. Por exemplo, o próprio presidente da Caixa Econômica Federal, Pedro Guimarães, esteve pessoalmente visitando a Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre, hospital, aliás, modelo pela gestão eficiente, pela racionalização de seus serviços e por seu atendimento de alta qualidade. Foi igualmente sensível às demandas do setor e pôde constatar in loco o benefício recebido pela população e a valorização do mérito, incentivada pelo seu qualificado quadro de dirigentes.

Contudo, conforme observado, o equacionamento das dívidas é uma parte deveras importante dos problemas dos hospitais filantrópicos. Essas primeiras medidas são da maior relevância, mas constituem apenas o início do caminho. O desequilíbrio estrutural permanece enquanto não for feita uma cada vez mais necessária revisão da tabela do SUS e não for dado o devido cuidado a repasses dos Ministérios da Saúde e da Educação. Sem essas medidas a própria existência dos hospitais filantrópicos estará ameaçada. O problema não tem nenhuma conotação ideológica, é simplesmente de aritmética!

Esclareçamos melhor essa defasagem. Desde o Plano Real até 2018 a tabela do SUS foi reajustada em 93,78%. O INPC/IBGE teve uma variação nesse período de 506,49%. E a variação do salário mínimo foi de 854%. Será que as Santas Casas merecem essa posição de patinhos feios? Será que não têm nenhum valor?

Note-se, ainda, que esses hospitais têm uma taxa muito elevada de internações de alta complexidade, em torno de 59,95%, destacando-se as de cardiologia, de quimioterapia, de cirurgias oncológicas e de transplantes. Para onde irão essas pessoas doentes se as Santas Casas se virem inviabilizadas na prestação desses serviços? E essas pessoas, em sua imensa maioria, não têm outra opção.

A abnegação e a dedicação de seus dirigentes são dignas de nota, por seus valores morais e religiosos. Lutam contra uma corrente que lhes é desfavorável. Têm sabido resistir. Entretanto, a falência ronda boa parte desses hospitais, alguns sofrendo a ameaça direta de fecharem as suas portas. Leitos faltam no País! O sistema hospitalar público é notoriamente ineficiente e caro. A população brasileira muito sofre com isso. Não seria o caso de se valorizar aqueles que estão efetivamente oferecendo um serviço público de qualidade a custos notoriamente inferiores?

Retrocesso ambiental pode custar até US$ 5 tri

Os recentes números do desmatamento na Amazônia — aumento de 60% em junho de 2019, em relação ao mesmo mês em 2018 — e o “desmonte” do Ministério do Meio Ambiente mostram que o Brasil caminha rapidamente para seu pior cenário ambiental neste século, o que pode custar até US$ 5 trilhões ao país.

A conclusão é de um grupo de pesquisadores — da Coppe/UFRJ, da UFMG e da UnB — ouvidos pelo GLOBO. Em julho de 2018, ao lado de outros cinco colegas, eles publicaram um artigo na revista “Nature Climate Change" que definia o “pior cenário” como a conjugação do aumento do desmatamento com má governança, ou seja, baixo controle do desmate e incentivo ao agronegócio predatório.

No estudo, eles observaram três recortes da História recente do país: antes de 2005, quando o desmatamento foi alto, e a governança, fraca; de 2005 a 2011, período considerado, pelos especialistas, de boa governança, com políticas de controle que resultaram em redução do desmate; e, por fim, de 2012 a 2017, de governança intermediária, quando se mantiveram medidas de controle e, ao mesmo tempo, sinais de estímulo a práticas negativas para as florestas (caso também de 2018).

— Claramente, temos hoje uma dinâmica bastante negativa que aponta para o pior cenário. Mantida a dinâmica atual, vamos retroceder aos níveis de antes de 2005 — afirma o cientista político Eduardo Viola, da UnB, um dos autores do estudo. — Com seis meses de governo, ainda é cedo para dizer que estamos num período de baixa governança. Mas é fato que estamos tendendo a isso.

Para André Lucena, da Coppe/UFRJ, se o Brasil de fato retroceder ao pior cenário, "não há chance alguma de cumprir as metas do Acordo de Paris". O país é o sétimo maior emissor do mundo, e sua meta de redução é de 37% em 2025.

— O Brasil tem ainda o compromisso de manter o aumento de temperatura abaixo dos 2 graus. Para isso, pode emitir uma quantidade específica de carbono até 2050. Se o desmatamento come esse “orçamento” todo de carbono, outros setores da economia vão ter que fazer um esforço enorme para compensar.

Se entre 2005 e 2012 o país conseguiu reduzir as emissões em 54%, foi em grande parte porque também reduziu o desmatamento (em 78%). Agora, avalia Raoni Rajão, professor da UFMG e coautor do artigo, "é grande a probabilidade de o desmatamento em 2019/2020 ser bem superior ao de 2018/2019".

— Nesses últimos dois meses, o alarme começou a soar de maneira mais forte, porque o nível de desmatamento descolou dos números do ano passado — afirma Rajão. — Claramente há risco de se caminhar para um cenário fraco. Há evidências disso, como o desmonte de aspectos essenciais do Ministério do Meio Ambiente, dos instrumentos de controle que podem realmente reduzir ou zerar o desmatamento.

Para Roberto Schaeffer, da Coppe/UFRJ e também autor do artigo, "nada é mais sensato e barato do que enfrentar com seriedade a questão do desmatamento":

— Todos ganham se dermos um basta ao desmatamento no Brasil. Só perdem aqueles com interesses escusos — diz.

Procurado para comentar estimativas e críticas dos pesquisadores, o Ministério do Meio Ambiente não se pronunciou.

Imagem do Dia

Cornualha ( Inglaterra)

Golpes do governo Bolsonaro ferem princípios democráticos

Em um evento com parlamentares ligados ao agronegócio, Jair Bolsonaro voltou a repetir que seu governo precisa “desfazer o que foi feito para depois fazer”. Mas sob o pretexto de “despetizar” a administração federal, seu governo já faz: ataca as instituições públicas.


Somente na semana passada, o general Augusto Heleno, ministro do Gabinete de Segurança Institucional, afirmou que os índices de desmatamento na Amazônia são manipulados, jogando lama no Inpe, centro de excelência em pesquisas espaciais.

Na Justiça, o próprio presidente disse que o ministro Sergio Moro vazou para ele informações de uma investigação sigilosa da Polícia Federal. Colocou em xeque a independência do órgão, que deve investigar até o ministro se for preciso.

No início de sua gestão, Ricardo Salles, ministro do Meio Ambiente, acusou o Ibama de forjar contratos de aluguel de veículos. Foi apoiado por Bolsonaro, que prometeu nas redes sociais expor o esquema de corrupção. Nada havia de errado com os contratos, como se provou depois.

Nas palavras de parlamentares, Bolsonaro e seus principais assessores pintam o Congresso como um reduto de corruptos. Mas usam deputados de seu partido, o PSL, para tentar emplacar uma proposta de emenda constitucional que restrinja a atuação do Supremo Tribunal Federal, especialmente em temas ligados aos costumes.

Servidores são perseguidos e demitidos por serem “petistas” ou “ideologizados”, o que fere o princípio democrático da impessoalidade na administração pública.

Um processo assim não é de “desfazer”, como diz Bolsonaro, mas um golpe no próprio Estado.

Se os fins continuarem a justificar os meios, o risco é o de virarmos uma Turquia. Recep Erdogan foi eleito presidente com uma agenda liberal na economia e a promessa de reverter os estragos causados pela crise econômica e a corrupção.

No final, ele aparelhou as instituições do país que, considerado autocrático, fica cada vez mais distante de ser aceito como membro da União Europeia.

Rotina

Os morredores de rua
não fogem ao destino -
morrem de frio no Brás
e de fome na Vila Clementino.

Raul Drewnick

Redes canibais

Canibal é todo aquele que devora indivíduos de sua espécie. Para isso, precisa dominar a presa. Torná-la indefesa. Então, trata de devorá-la. Esta é a face medonha das redes digitais, tão úteis para facilitar a nossa intercomunicação. Assim como veículos – aviões, carros, motos – são úteis à nossa mobilidade mais rápida e, no entanto, usados também para atentados terroristas, como na queda das Torres Gêmeas de Nova York. Do mesmo modo, as redes digitais possuem seu lado sombrio.

Se não sabemos usá-las adequadamente, devoram o nosso tempo, o nosso humor, a nossa civilidade. Daí a minha resistência em chamá-las de redes sociais. Nem sempre a sociabilidade supera a hostilidade. Inclusive devoram o nosso sono, pois há quem já não consiga desligar o smartphone na hora de dormir.

Devoram também a nossa capacidade de discernimento, na medida em que nos tribalizam e nos confinam em uma única visão de mundo, sem abertura ao contraditório e tolerância a quem abraça outra ótica.

A medicina já está atenta a uma nova enfermidade, a nomofobia. Termo surgido na Inglaterra, deriva de no-mobile, destituído de aparelho de comunicação móvel. Em síntese, é o medo de ficar sem celular. É a mais recente doença aditiva, sobre a qual os terapeutas se debruçam. Há quem fique horas nas redes, muito mais naufragando que navegando.

A face canibal do celular devora ainda o nosso protagonismo. É ele que, por via de suas múltiplas ferramentas e aplicativos, decide o rumo de nossas vidas.

A enxurrada de informações que recaem sucessivamente sobre cada um de nós, quase todas descontextualizadas, nos conduz inelutavelmente ao território da pós-verdade. Elas tocam a nossa emoção e, céleres, neutralizam a nossa razão. Com certeza a maioria de nós não é capaz de, gratuitamente, ofender um estranho na padaria da esquina. Porém, nas redes muitos endossam difamações, acusações levianas e calúnias. Haja fake news!

Há mais de 70 anos, meu confrade Dominique Dubarle escreveu sobre a cibernética: “Podemos sonhar com um tempo em que uma máquina de governar viria a suprir a hoje evidente insuficiência das mentes e dos instrumentos habituais da política” (Le Monde, 28/12/1948).

O Leviatã cibernético previsto pelo frade dominicano francês hoje tem nome: Google, Facebook, WhatsApp etc. Essas corporações devoram todos os nossos dados para que a regulação algorítmica repasse às ferramentas incapazes de nos enxergar como cidadãos. Para elas, somos meros consumistas. Eis a era do Big Data.

As redes digitais devoram inclusive a realidade na qual estamos inseridos. Nos deslocam para a virtualidade e ativam em nós sentimentos nocivos de ódio e vingança. O príncipe encantado se transforma em monstro. Os valores humanitários se esgarçam, a ética se dissolve, a boa educação é descartada. Importa agora, com esta arma eletrônica nas mãos, travar a batalha do “bem” contra o “mal”. Deletar os inimigos virtuais após crucificá-los com injúrias que se multiplicam através de hipelink, vídeo, imagem, website, hashtag, ou apenas por uma palavra ou frase.

Eis o que pretende cada emissor: viralizar o que postou. O próprio verbo deriva de vírus, substantivo empregado na biologia; derivado do latim, significa “veneno” ou “toxina”. Cria-se assim a pandemia virtual! Preciso ler rápido este email ou zap porque outros tantos me aguardam na fila! E, se for o caso, responder em texto conciso, ainda que agrida todas as regras da gramática e da sintaxe. Segundo a pesquisadora Maryanne Wolf, em média acessamos, por dia, 34 gigabytes de informação, um livro com 100 mil palavras. Sem tempo suficiente para absorção e reflexão.

Corremos o risco de dar um passo atrás no processo civilizatório. A menos que famílias e escolas adotem algo similar ao advento do carro, quando se percebeu a necessidade de criar autoescolas para educar motoristas. O celular está a exigir, também, uma pedagogia adequada ao seu bom uso.

Só no dicionário e na cabeça de Bolsonaro a reeleição vem antes de trabalho

Todo presidente tem de ensopar o paletó, esfalfando-se durante quatro anos, para realizar uma boa administração. Com exceção, naturalmente, de Jair Bolsonaro, cujo governo já nasceu pronto. Neste sábado, o capitão foi à festa julina do Clube Naval, em Brasília. Aproveitou para fazer um comício. Considerando-se reeleito, declarou o seguinte: "Pegamos um país quebrado moral, ética e economicamente. Mas se Deus quiser nós conseguiremos entregá-lo muito melhor para quem nos suceder em 2026".

Noutros tempos, os políticos evitavam escancarar seu desejo de poder. Dizia-se que a função pública era um suplício que não se postulava, para o qual os correligionários ou as massas convocavam. Há três meses, o próprio Bolsonaro disse, num discurso no Planalto: "Não nasci para ser presidente, nasci para ser militar". Soou menos ambicioso: "Não me sobe à cabeça o fato de ser presidente. Eu me pergunto, eu olho pra Deus e falo: 'O que eu fiz para merecer isso?"



De repente, alguma coisa subiu à cabeça do presidente. Para susto dos tecelões do Congresso, que temem colocar azeitona na empada de Bolsonaro ao aprovar a reforma da Previdência, o capitão transforma a reeleição no seu tema compulsivo. Agora, ele quer, sim, ser reeleito. Passou a adorar o emprego. No melhor estilo nunca antes na história desse país, jactou-se: "Não temos, graças a Deus, nenhuma acusação de corrupção. Aquilo que parece que estava fadado a fazer parte de nossa história ficou para trás".

Quem ouve o presidente fica com vontade de beber do mesmo quentão e viver no país que ele escolheu para si, seja onde for. Não é justo que o resto dos brasileiros tenha de permanecer num Brasil em que há meia dúzia de ministros suspeitos —um deles condenado por improbidade—, o laranjal do PSL, as encrencas do primogênito Flávio Bolsonaro e o cheque do ex-faz-tudo Fabrício Queiroz na conta da primeira-dama Michelle Bolsonaro.

O cérebro do político começa a funcionar na hora em que ele nasce. E só para no instante em que ele sobe no caixote. No comício do Clube Naval, Bolsonaro se absteve de levar em conta que o único lugar onde o sucesso vem antes do trabalho é o dicionário. Fora dele, um presidente capaz de produzir prosperidade econômica não precisa pleitear a reeleição, pois ela lhe cairá no colo. Do mesmo modo, um mandatário que não fabrica senão crises e incertezas tampouco precisa reivindicar a continuidade. Será perda de tempo.