sexta-feira, 18 de abril de 2025
Em cerco a Dom Angélico Bernardino, ditadura investigou até gibi do Zé Marmita
Em novembro de 1978, a ditadura resolveu investigar um gibi. A repressão queria saber quem financiava “As Aventuras de Zé Marmita”. Distribuída na periferia de São Paulo, a revistinha narrava a rotina nas fábricas e incentivava os trabalhadores a lutarem por melhores condições de vida. Só podia ser coisa de dom Angélico, bispo tachado de subversivo e adversário do regime.
Na juventude, Angélico Sândalo Bernardino não sabia se queria ser padre ou jornalista. Resolveu o dilema ao unir as duas vocações, ajudando a Igreja a se comunicar com os fiéis. Antes de ser ordenado, ele já escrevia no Diário de Notícias, da diocese de Ribeirão Preto. Mais tarde comandaria as “rádios-cornetas”, com alto-falantes pendurados nos postes de favelas e ocupações.
Em 1969, o religioso foi alvo da primeira perseguição. A polícia quis prendê-lo por suposta ligação com a luta armada. A Igreja saiu em defesa do padre, e a Justiça Militar arquivou o caso por falta de provas. Dois anos depois, dom Angélico foi fichado como “elemento reconhecidamente esquerdista”, envolvido em “atividades subversivas”. “O epigrafado vem transformando o Diário de Notícias num autêntico órgão de contestação revolucionária, semeando intrigas e mentiras contra as autoridades”, esbravejaram os arapongas.
Além de ler os artigos de jornal, os militares se infiltravam nas missas para ouvir os sermões. Em 1974, um informe do II Exército relatou que ele “fez severas críticas ao governo, a quem acusou de culpado pela falta de gêneros, pelo aumento do custo de vida e pelas longas filas do INPS”. “Cristo foi considerado subversivo e por isso foi crucificado”, acrescentou o religioso, para a ira dos espiões disfarçados entre os fiéis.
Em 1976, ele foi vigiado num encontro católico em Barueri, onde acusou a repressão de usar “métodos bárbaros” para “arrancar confissões”. Destemido, repetiria a denúncia numa igreja lotada após o assassinato do operário Manoel Fiel Filho. “Quem não está vendo Deus a falar da morte triste do metalúrgico? Como tantos outros, ele foi torturado”, pregou, antes de se referir ao DOI-Codi como “casa de horrores”.
Incansável na defesa dos direitos humanos, o cardeal Paulo Evaristo Arns escalou dom Angélico como bispo auxiliar na Zona Leste. Ele passou a conviver com os órfãos do milagre brasileiro, que batalhavam pela sobrevivência em ruas sem asfalto e saneamento básico. O religioso abriu a igreja para os pobres, incentivou movimentos por creches e por moradia, usou sua voz para pressionar os poderosos.
Em 1977, quando um trem se chocou com um ônibus e matou 22 pessoas, ele ameaçou suspender a missa de domingo e se sentar nos trilhos para exigir cancelas de segurança. A RFFSA, que fazia corpo mole, teve que correr para instalar as barreiras.
Ao apoiar as greves do ABC, o bispo ficou amigo de um sindicalista que, muito tempo depois, subiria a rampa do Planalto. Em 2022, ele me disse que não se importava com patrulhas ideológicas. “A Igreja nunca teve partido político. Nós saíamos com o povo reivindicando creche, escola e hospital. Essa era a nossa subversão”, ironizou. “Nos chamavam de comunistas, mas só estávamos ao lado dos trabalhadores.”
Após cinco meses de investigações, a ditadura arquivou o caso do Zé Marmita. A Polícia Federal concluiu que não havia financiadores ocultos. O gibi da pastoral de dom Angélico era rodado “mediante doações em papel, impressão a preços menores e desenhos feitos por estudantes”. O bispo morreu na terça, aos 92 anos.
Bernardo Mello Franco
Na juventude, Angélico Sândalo Bernardino não sabia se queria ser padre ou jornalista. Resolveu o dilema ao unir as duas vocações, ajudando a Igreja a se comunicar com os fiéis. Antes de ser ordenado, ele já escrevia no Diário de Notícias, da diocese de Ribeirão Preto. Mais tarde comandaria as “rádios-cornetas”, com alto-falantes pendurados nos postes de favelas e ocupações.
Em 1969, o religioso foi alvo da primeira perseguição. A polícia quis prendê-lo por suposta ligação com a luta armada. A Igreja saiu em defesa do padre, e a Justiça Militar arquivou o caso por falta de provas. Dois anos depois, dom Angélico foi fichado como “elemento reconhecidamente esquerdista”, envolvido em “atividades subversivas”. “O epigrafado vem transformando o Diário de Notícias num autêntico órgão de contestação revolucionária, semeando intrigas e mentiras contra as autoridades”, esbravejaram os arapongas.
Além de ler os artigos de jornal, os militares se infiltravam nas missas para ouvir os sermões. Em 1974, um informe do II Exército relatou que ele “fez severas críticas ao governo, a quem acusou de culpado pela falta de gêneros, pelo aumento do custo de vida e pelas longas filas do INPS”. “Cristo foi considerado subversivo e por isso foi crucificado”, acrescentou o religioso, para a ira dos espiões disfarçados entre os fiéis.
Em 1976, ele foi vigiado num encontro católico em Barueri, onde acusou a repressão de usar “métodos bárbaros” para “arrancar confissões”. Destemido, repetiria a denúncia numa igreja lotada após o assassinato do operário Manoel Fiel Filho. “Quem não está vendo Deus a falar da morte triste do metalúrgico? Como tantos outros, ele foi torturado”, pregou, antes de se referir ao DOI-Codi como “casa de horrores”.
Incansável na defesa dos direitos humanos, o cardeal Paulo Evaristo Arns escalou dom Angélico como bispo auxiliar na Zona Leste. Ele passou a conviver com os órfãos do milagre brasileiro, que batalhavam pela sobrevivência em ruas sem asfalto e saneamento básico. O religioso abriu a igreja para os pobres, incentivou movimentos por creches e por moradia, usou sua voz para pressionar os poderosos.
Em 1977, quando um trem se chocou com um ônibus e matou 22 pessoas, ele ameaçou suspender a missa de domingo e se sentar nos trilhos para exigir cancelas de segurança. A RFFSA, que fazia corpo mole, teve que correr para instalar as barreiras.
Ao apoiar as greves do ABC, o bispo ficou amigo de um sindicalista que, muito tempo depois, subiria a rampa do Planalto. Em 2022, ele me disse que não se importava com patrulhas ideológicas. “A Igreja nunca teve partido político. Nós saíamos com o povo reivindicando creche, escola e hospital. Essa era a nossa subversão”, ironizou. “Nos chamavam de comunistas, mas só estávamos ao lado dos trabalhadores.”
Após cinco meses de investigações, a ditadura arquivou o caso do Zé Marmita. A Polícia Federal concluiu que não havia financiadores ocultos. O gibi da pastoral de dom Angélico era rodado “mediante doações em papel, impressão a preços menores e desenhos feitos por estudantes”. O bispo morreu na terça, aos 92 anos.
Bernardo Mello Franco
E se a distopia estivesse mais para '3%' do que para '1984'?
Acabei de ler "O Vazamento", de Natalia Viana, livro que deveria ser obrigatório para todo estudante de jornalismo. Em novembro de 2010, Natalia trabalhou com o Wikileaks e Julian Assange para publicar a fatia brasileira de mais de 200 mil telegramas diplomáticos do governo dos Estados Unidos. Cerca de 100 mil eram considerados confidenciais, trazendo segredos e indiscrições reportadas pelas embaixadas norte-americanas de diversos países. Antes de divulgá-los, coube à Natalia e a jornalistas parceiros selecionarem os assuntos conforme o interesse público e preservar as fontes que corriam riscos.
A publicação fez a política mundial tremer e produziu crises em todos os cantos do planeta. Os primeiros levantes populares na era das redes sociais ocorreram ainda em 2010, em países com governos autoritários, na chamada Primavera Árabe. Alcançariam as ruas do Brasil em 2013, nas manifestações de junho.
Apesar de terem se passado apenas 15 anos, a leitura do mundo e as expectativas sobre o futuro eram bem diferentes naquela época. As redes sociais e as big techs ainda não tinham o poder que alcançariam na década seguinte. Havia um imenso otimismo em relação à capacidade da tecnologia em aprofundar a transparência e a democracia. Com as redes, as verdades sobre os fatos emergiriam sem o filtro dos donos dos meios de comunicação. A vigilância sobre os abusos dos poderosos poderia se ampliar em benefício dos indivíduos.
O Estado, a burocracia e seus líderes eram vistos como representantes dos interesses de um capitalismo excludente, enquanto a internet e as redes sociais eram celebradas porque amplificavam as vozes que não podiam ser ouvidas. Havia um clamor por liberdade, que também se refletia na popularidade de livros como 1984, clássico de George Orwell. O romance distópico, publicado em 1949, depois da Segunda Guerra mundial, imaginava um futuro totalitário, hipervigiado por um Estado que observava a todos e manipulava a população por meio de mentiras e por um revisionismo histórico que seria a marca do stalinismo. Tanto Wikileaks como Orwell dialogavam com o espírito de seu tempo.
Neste mês de abril, na primeira semana, o livro voltou a causar comoção nas redes depois que o empresário e influenciador Felipe Neto promoveu uma campanha publicitária para lançar o audiobook de 1984, interpretado por atores consagrados. Na publicidade, Neto citava trechos do romance e simulava o lançamento de sua candidatura a presidente, revelando apenas no dia seguinte os reais objetivos de seu vídeo.
O livro segue relevante porque o Big Brother parece mais ativo do que nunca. As mentiras e os mantras ilusórios, capazes de manipular multidões, parecem mais influentes do que nunca, assim como a “novafala” ou “novilíngua”, que inverte o sentido das palavras para confundir a realidade, como nos famosos bordões “guerra é paz, liberdade é escravidão e ignorância é força”, que funcionavam como slogan do partido que tiranizava a população.
Se o mal-estar e a sensação de vigilância permanecem, porém, os vilões mudaram. O Estado, em vez de caminhar para o totalitarismo, se fragilizou. Não parece ter forças e apoio para reduzir as desigualdades e limitar a concentração de renda e poder em um contexto democrático. Já as big techs e as redes sociais se transformaram nas principais responsáveis pela vigilância e pela manipulação das vontades individuais, com o objetivo de ampliar seus lucos e acumular poder.
Com o descrédito da política, restou o mercado como a instituição garantidora da vida e da sobrevivência dos que sabem ganhar dinheiro. As novas tecnologias, contudo, aceleraram a diminuição dos empregos e esvaziaram as identidades modernas, criando imensas crises existenciais, em que a função social do trabalho deixou de ter relevância. O reconhecimento passou a estar relacionado com a capacidade de lucrar em um sistema concentrador de renda. Para sobreviver nessa nova realidade e conquistar respeito, mais do que qualquer coisa, é preciso saber ganhar dinheiro e participar ativamente da ciranda financeira.
A desregulamentação crescente do mercado favoreceu o faturamento de máfias de todos os tipos, que passaram a negociar em ambientes virtuais protegidos, com criptomoedas que podem circular pelo mundo sem serem rastreadas. As crenças no empreendedorismo se propagaram pelos profetas da autoajuda e da prosperidade, definindo o comportamento de um número crescente de pessoas que assumiram postos de destaque na elite econômica e política nacional.
Como escreve Natalia no último capítulo de seu livro, quinze anos depois do vazamento do Wikileaks, “o que era praça pública virou um shopping center regido por um algoritmo dinheirista”. Ela cita alguns dados: o valor do Google saltou de 28 bilhões de dólares em 2010 para 237 bilhões em 2023. Nesse ano, o Google e o Facebook mordiam quase 60% do total de receita com anúncios digitais no mundo. Cinco conglomerados passaram a controlar a internet no mundo e os Estados se mostravam impotentes diante da tentativa de regulamentar o novo mundo virtual.
Dito isso, é inegável que existem pitadas de 1984 na distopia que parecemos seguir, incapazes de nos libertar da jaula sufocante do mercado, que parece hipnotizar a todos na competição pelo consumo e pela ostentação, em detrimento de um projeto coletivo. Ocorre que cada vez menos serão capazes de alcançar essa riqueza, reservada aos mais dispostos a vencer, talvez 3% ou menos da população. Assim como na série brasileira da Netflix, cujo título é "3%", caberá aos que conseguirem fazer parte desse grupo se isolar e se proteger dos 97% que ficarem de fora. O Estado, nessa distopia, levantará muros, fortalecerá fronteiras e armará exércitos para proteger os super-ricos da massa empobrecida. Enquanto houver mundo.
A publicação fez a política mundial tremer e produziu crises em todos os cantos do planeta. Os primeiros levantes populares na era das redes sociais ocorreram ainda em 2010, em países com governos autoritários, na chamada Primavera Árabe. Alcançariam as ruas do Brasil em 2013, nas manifestações de junho.
Apesar de terem se passado apenas 15 anos, a leitura do mundo e as expectativas sobre o futuro eram bem diferentes naquela época. As redes sociais e as big techs ainda não tinham o poder que alcançariam na década seguinte. Havia um imenso otimismo em relação à capacidade da tecnologia em aprofundar a transparência e a democracia. Com as redes, as verdades sobre os fatos emergiriam sem o filtro dos donos dos meios de comunicação. A vigilância sobre os abusos dos poderosos poderia se ampliar em benefício dos indivíduos.
O Estado, a burocracia e seus líderes eram vistos como representantes dos interesses de um capitalismo excludente, enquanto a internet e as redes sociais eram celebradas porque amplificavam as vozes que não podiam ser ouvidas. Havia um clamor por liberdade, que também se refletia na popularidade de livros como 1984, clássico de George Orwell. O romance distópico, publicado em 1949, depois da Segunda Guerra mundial, imaginava um futuro totalitário, hipervigiado por um Estado que observava a todos e manipulava a população por meio de mentiras e por um revisionismo histórico que seria a marca do stalinismo. Tanto Wikileaks como Orwell dialogavam com o espírito de seu tempo.
Neste mês de abril, na primeira semana, o livro voltou a causar comoção nas redes depois que o empresário e influenciador Felipe Neto promoveu uma campanha publicitária para lançar o audiobook de 1984, interpretado por atores consagrados. Na publicidade, Neto citava trechos do romance e simulava o lançamento de sua candidatura a presidente, revelando apenas no dia seguinte os reais objetivos de seu vídeo.
O livro segue relevante porque o Big Brother parece mais ativo do que nunca. As mentiras e os mantras ilusórios, capazes de manipular multidões, parecem mais influentes do que nunca, assim como a “novafala” ou “novilíngua”, que inverte o sentido das palavras para confundir a realidade, como nos famosos bordões “guerra é paz, liberdade é escravidão e ignorância é força”, que funcionavam como slogan do partido que tiranizava a população.
Se o mal-estar e a sensação de vigilância permanecem, porém, os vilões mudaram. O Estado, em vez de caminhar para o totalitarismo, se fragilizou. Não parece ter forças e apoio para reduzir as desigualdades e limitar a concentração de renda e poder em um contexto democrático. Já as big techs e as redes sociais se transformaram nas principais responsáveis pela vigilância e pela manipulação das vontades individuais, com o objetivo de ampliar seus lucos e acumular poder.
Com o descrédito da política, restou o mercado como a instituição garantidora da vida e da sobrevivência dos que sabem ganhar dinheiro. As novas tecnologias, contudo, aceleraram a diminuição dos empregos e esvaziaram as identidades modernas, criando imensas crises existenciais, em que a função social do trabalho deixou de ter relevância. O reconhecimento passou a estar relacionado com a capacidade de lucrar em um sistema concentrador de renda. Para sobreviver nessa nova realidade e conquistar respeito, mais do que qualquer coisa, é preciso saber ganhar dinheiro e participar ativamente da ciranda financeira.
A desregulamentação crescente do mercado favoreceu o faturamento de máfias de todos os tipos, que passaram a negociar em ambientes virtuais protegidos, com criptomoedas que podem circular pelo mundo sem serem rastreadas. As crenças no empreendedorismo se propagaram pelos profetas da autoajuda e da prosperidade, definindo o comportamento de um número crescente de pessoas que assumiram postos de destaque na elite econômica e política nacional.
Como escreve Natalia no último capítulo de seu livro, quinze anos depois do vazamento do Wikileaks, “o que era praça pública virou um shopping center regido por um algoritmo dinheirista”. Ela cita alguns dados: o valor do Google saltou de 28 bilhões de dólares em 2010 para 237 bilhões em 2023. Nesse ano, o Google e o Facebook mordiam quase 60% do total de receita com anúncios digitais no mundo. Cinco conglomerados passaram a controlar a internet no mundo e os Estados se mostravam impotentes diante da tentativa de regulamentar o novo mundo virtual.
Dito isso, é inegável que existem pitadas de 1984 na distopia que parecemos seguir, incapazes de nos libertar da jaula sufocante do mercado, que parece hipnotizar a todos na competição pelo consumo e pela ostentação, em detrimento de um projeto coletivo. Ocorre que cada vez menos serão capazes de alcançar essa riqueza, reservada aos mais dispostos a vencer, talvez 3% ou menos da população. Assim como na série brasileira da Netflix, cujo título é "3%", caberá aos que conseguirem fazer parte desse grupo se isolar e se proteger dos 97% que ficarem de fora. O Estado, nessa distopia, levantará muros, fortalecerá fronteiras e armará exércitos para proteger os super-ricos da massa empobrecida. Enquanto houver mundo.
Os jornais e os dentes de uma atriz britânica
Como a notícia estava no “meu” jornal, segui caminho – não me cabe a mim comentar as opções dos meus colegas. Ao ver que o New York Times publicou uma notícia sobre o mesmo assunto, percebi que a história teve repercussão à escala, senão planetária, pelo menos ocidental.
Por outras palavras: o problema é geral.
O New York Times diz que “Wood, estrela da série The White Lotus, da HBO, criticou o Saturday Night Live por causa de um sketch que gozou com o seu sorriso”, tendo a actriz escrito no Instagram que o sketch “é mau e não tem piada”. Wood diz que não é uma “flor de estufa” e até “adora ser alvo de piadas”, mas só quando as piadas “são inteligentes” e “têm sentido de humor”, qualidades que não detectou na piada sobre os seus dentes.
Wood explica: “A piada do Saturday Night Live era sobre flúor. Eu tenho dentes grandes, não tenho dentes com problemas.” A atriz britânica quer rigor nas piadas e só acha graça quando a piada é fiel à realidade. Se tivesse dentes a precisar de flúor, ter-se-ia rido. Como não precisa de flúor, não se riu.
Wood, que tem 31 anos, ficou famosa com o seu papel na série de televisão Sex Education, criada para a Netflix, descrita na Wikipédia como “a British teen sex comedy drama” – só conheço miúdos que acham a série maçadora, mas a intenção é que faça rir e daí a palavra “comédia” no auto-retrato.
A questão é que, noutra vida, não seria preciso explicar o que é humor a uma actriz que faz uma série definida como humorística.
Já nesta vida, dominada pelo politicamente correcto, a queixa de Wood foi notícia nos jornais de referência.
O Guardian foi mais longe e, além da notícia, publicou um artigo de opinião no qual uma humorista britânica, Athena Kugblenu, explica as razões pelas quais a piada dos humoristas americanos sobre Wood não tem graça: 1) “O flúor é um mineral natural que é adicionado à pasta de dentes e à água porque ajuda a manter os dentes saudáveis”, pelo que “a premissa da piada é que os dentes de Wood não são saudáveis, o que não é de todo o caso” e, por isso, a piada “é desonesta”; e 2) “Se os britânicos têm dentes ‘maus’, não é por falta de flúor. É por causa de um Serviço Nacional de Saúde que fornece medicina dentária através de contratos complicados e inadequados. É mais fácil encontrar alguém que nos faça um check-up gratuito à nossa saúde intestinal do que encontrar alguém que nos examine a boca.”
Kugblenu repete a bizarra tese de que o humor só tem graça quando descreve a realidade de forma literal e acrescenta outro argumento sem sentido, ignorando que Wood tem dois milhões de dólares, pelo que, se quisesse, teria acesso ao melhor dentista do Reino Unido.
Como dizer isto? Os dentes de Wood são invulgarmente virados para fora. São o tipo de dentes que as pessoas tendem a corrigir. Não é de agora. É de sempre. No Egipto Antigo, na Roma Antiga e na Grécia Antiga as pessoas usavam fios de ouro ou de intestino de ovelha para endireitar os dentes. Hoje pomos aparelhos nos dentes num misto de preocupação estética e tentativa de tornar a mordedura mais eficaz – é difícil cortar um alimento duro se os dentes de cima não encaixam nos de baixo.
Não sei se antes de Cristo os motivos eram iguais. Sei que Wood gosta de ter os dentes saídos e que essa é uma marca da sua persona, entre o sexy rebelde, o cool não convencional e o “sou como sou, rejeito artifícios”. Tudo óptimo.
O “problema” jornalístico é outro: os jornais de referência não encontraram solução para publicar os fait-divers na era digital.
No site, no fim do texto do New York Times, o jornal informa que “uma versão deste artigo apareceu na edição impressa de 15 de Abril, Secção C, página 4, com o título Actress Criticizes Sketch”. Talvez na edição em papel a “notícia” assuma visualmente o que há uns anos se “arrumava” na secção “Pessoas”, um espaço que era um misto de fait-divers da vida das celebridades, com notas mais ou menos relevantes, curiosidades picantes, casamentos, divórcios e quem-vestiu-o-quê-em-que-festa, mais mexericos e alfinetadas.
Com isso, os jornais “sérios” piscavam o olho ao leitor, tentando mostrar que não eram elitistas ao ponto de ignorar o sétimo casamento de Elizabeth Taylor. A lógica era evidente: as pessoas vão querer saber estas coisas, porque não lê-las no “seu” jornal? Lia-se sobre a guerra, o parlamento, a greve, o novo livro, o obituário e, algures a seguir a tudo isso, muitas vezes ao pé dos jogos e palavras cruzadas, havia pequenas histórias de famosos.
Não digo que os fait-divers devem desaparecer dos jornais de referência. Não são tão antigos como os correctores de dentes, mas são tão velhos como os jornais e continuam a ter o seu lugar. O problema é que hoje a distinção tornou-se invisível na leitura online, na qual tudo parece ter a mesma importância e, na ausência de uma hierarquia clara, essencial e acessório diluem-se.
Esta é a hipótese benigna de olhar para isto.
A outra hipótese é pior: é possível que a história da reação a piada do Saturday Night Live não seja vista como um fait-divers, mas como uma notícia importante. Nesse caso, a conversa é outra. Se assim for, o problema não é só geral. É geral e sério.
Por outras palavras: o problema é geral.
O New York Times diz que “Wood, estrela da série The White Lotus, da HBO, criticou o Saturday Night Live por causa de um sketch que gozou com o seu sorriso”, tendo a actriz escrito no Instagram que o sketch “é mau e não tem piada”. Wood diz que não é uma “flor de estufa” e até “adora ser alvo de piadas”, mas só quando as piadas “são inteligentes” e “têm sentido de humor”, qualidades que não detectou na piada sobre os seus dentes.
Wood explica: “A piada do Saturday Night Live era sobre flúor. Eu tenho dentes grandes, não tenho dentes com problemas.” A atriz britânica quer rigor nas piadas e só acha graça quando a piada é fiel à realidade. Se tivesse dentes a precisar de flúor, ter-se-ia rido. Como não precisa de flúor, não se riu.
Wood, que tem 31 anos, ficou famosa com o seu papel na série de televisão Sex Education, criada para a Netflix, descrita na Wikipédia como “a British teen sex comedy drama” – só conheço miúdos que acham a série maçadora, mas a intenção é que faça rir e daí a palavra “comédia” no auto-retrato.
A questão é que, noutra vida, não seria preciso explicar o que é humor a uma actriz que faz uma série definida como humorística.
Já nesta vida, dominada pelo politicamente correcto, a queixa de Wood foi notícia nos jornais de referência.
O Guardian foi mais longe e, além da notícia, publicou um artigo de opinião no qual uma humorista britânica, Athena Kugblenu, explica as razões pelas quais a piada dos humoristas americanos sobre Wood não tem graça: 1) “O flúor é um mineral natural que é adicionado à pasta de dentes e à água porque ajuda a manter os dentes saudáveis”, pelo que “a premissa da piada é que os dentes de Wood não são saudáveis, o que não é de todo o caso” e, por isso, a piada “é desonesta”; e 2) “Se os britânicos têm dentes ‘maus’, não é por falta de flúor. É por causa de um Serviço Nacional de Saúde que fornece medicina dentária através de contratos complicados e inadequados. É mais fácil encontrar alguém que nos faça um check-up gratuito à nossa saúde intestinal do que encontrar alguém que nos examine a boca.”
Kugblenu repete a bizarra tese de que o humor só tem graça quando descreve a realidade de forma literal e acrescenta outro argumento sem sentido, ignorando que Wood tem dois milhões de dólares, pelo que, se quisesse, teria acesso ao melhor dentista do Reino Unido.
Como dizer isto? Os dentes de Wood são invulgarmente virados para fora. São o tipo de dentes que as pessoas tendem a corrigir. Não é de agora. É de sempre. No Egipto Antigo, na Roma Antiga e na Grécia Antiga as pessoas usavam fios de ouro ou de intestino de ovelha para endireitar os dentes. Hoje pomos aparelhos nos dentes num misto de preocupação estética e tentativa de tornar a mordedura mais eficaz – é difícil cortar um alimento duro se os dentes de cima não encaixam nos de baixo.
Não sei se antes de Cristo os motivos eram iguais. Sei que Wood gosta de ter os dentes saídos e que essa é uma marca da sua persona, entre o sexy rebelde, o cool não convencional e o “sou como sou, rejeito artifícios”. Tudo óptimo.
O “problema” jornalístico é outro: os jornais de referência não encontraram solução para publicar os fait-divers na era digital.
No site, no fim do texto do New York Times, o jornal informa que “uma versão deste artigo apareceu na edição impressa de 15 de Abril, Secção C, página 4, com o título Actress Criticizes Sketch”. Talvez na edição em papel a “notícia” assuma visualmente o que há uns anos se “arrumava” na secção “Pessoas”, um espaço que era um misto de fait-divers da vida das celebridades, com notas mais ou menos relevantes, curiosidades picantes, casamentos, divórcios e quem-vestiu-o-quê-em-que-festa, mais mexericos e alfinetadas.
Com isso, os jornais “sérios” piscavam o olho ao leitor, tentando mostrar que não eram elitistas ao ponto de ignorar o sétimo casamento de Elizabeth Taylor. A lógica era evidente: as pessoas vão querer saber estas coisas, porque não lê-las no “seu” jornal? Lia-se sobre a guerra, o parlamento, a greve, o novo livro, o obituário e, algures a seguir a tudo isso, muitas vezes ao pé dos jogos e palavras cruzadas, havia pequenas histórias de famosos.
Não digo que os fait-divers devem desaparecer dos jornais de referência. Não são tão antigos como os correctores de dentes, mas são tão velhos como os jornais e continuam a ter o seu lugar. O problema é que hoje a distinção tornou-se invisível na leitura online, na qual tudo parece ter a mesma importância e, na ausência de uma hierarquia clara, essencial e acessório diluem-se.
Esta é a hipótese benigna de olhar para isto.
A outra hipótese é pior: é possível que a história da reação a piada do Saturday Night Live não seja vista como um fait-divers, mas como uma notícia importante. Nesse caso, a conversa é outra. Se assim for, o problema não é só geral. É geral e sério.
Anistia como farsa
A anistia aos golpistas de variadas espécies é o tipo do assunto a respeito do qual é mais fácil falar do que realizar. Ainda assim, seus adeptos já foram além do aceitável: conseguiram pôr o tema em pauta e paralisar o Congresso em torno dele.
Brutalizados em 8 de janeiro de 2023, os três Poderes da República são agora instados a lidar com uma proposta de perdão dos crimes aos que propugnaram pelo fim do Estado de Direito em vigor no país há parcas quatro décadas.
Fala-se na produção de um acordo entre Executivo, Legislativo e Judiciário para se chegar a meios-termos entre condenações e impunidade.
Como se fossem admissíveis as seguintes situações: o Supremo Tribunal Federal fazer acertos sobre matéria que poderá julgar, o presidente aceitar a inocência de quem pretendeu impedi-lo de governar planejando até sua morte e o Congresso avalizar negociata dessa natureza.
Por mais desatinado que soe, chegamos a esse ponto em que agressores postulam perdão e os agredidos —a maioria residente no Parlamento— consideram a discussão de razoável a imprescindível.
A alegação-mestra é a de que a anistia promoveria a pacificação do Brasil. Nada mais falso. O que se pretende não é paz, e sim a reconstrução do relato histórico a fim de amenizar os fatos e fazer valer como farsa a versão de que o que houve não foi tão grave, mas apenas fruto de equívocos e pontuais excessos. Nada mais falso.
Caso o presidente da Câmara cometa a irresponsabilidade institucional de pautar o projeto, e com urgência, daí em diante nada será pacífico, a começar pela tramitação da proposta. Os defensores sinalizando oposição ao governo e este na resistência atraindo ao campo de batalha o Supremo.
No meio disso, a contrariedade da população —registrada em pesquisas—, cujas prioridades estão longe dessa anistia e muito perto da carestia, da insegurança e dos maus serviços públicos.
Uma coisa é certa: para os brasileiros a sorte dos golpistas vale menos que suas sobrevivências e o destino do país.
Brutalizados em 8 de janeiro de 2023, os três Poderes da República são agora instados a lidar com uma proposta de perdão dos crimes aos que propugnaram pelo fim do Estado de Direito em vigor no país há parcas quatro décadas.
Fala-se na produção de um acordo entre Executivo, Legislativo e Judiciário para se chegar a meios-termos entre condenações e impunidade.
Como se fossem admissíveis as seguintes situações: o Supremo Tribunal Federal fazer acertos sobre matéria que poderá julgar, o presidente aceitar a inocência de quem pretendeu impedi-lo de governar planejando até sua morte e o Congresso avalizar negociata dessa natureza.
Por mais desatinado que soe, chegamos a esse ponto em que agressores postulam perdão e os agredidos —a maioria residente no Parlamento— consideram a discussão de razoável a imprescindível.
A alegação-mestra é a de que a anistia promoveria a pacificação do Brasil. Nada mais falso. O que se pretende não é paz, e sim a reconstrução do relato histórico a fim de amenizar os fatos e fazer valer como farsa a versão de que o que houve não foi tão grave, mas apenas fruto de equívocos e pontuais excessos. Nada mais falso.
Caso o presidente da Câmara cometa a irresponsabilidade institucional de pautar o projeto, e com urgência, daí em diante nada será pacífico, a começar pela tramitação da proposta. Os defensores sinalizando oposição ao governo e este na resistência atraindo ao campo de batalha o Supremo.
No meio disso, a contrariedade da população —registrada em pesquisas—, cujas prioridades estão longe dessa anistia e muito perto da carestia, da insegurança e dos maus serviços públicos.
Uma coisa é certa: para os brasileiros a sorte dos golpistas vale menos que suas sobrevivências e o destino do país.
O medo é o método
Bob Woodward, jornalista do Washington Post, ficou famoso pelas reportagens investigativas sobre os abusos de poder cometidos pelo Presidente Richard Nixon. No inicio dos anos setenta, junto com Carl Bernstein outro jornalista do Post, fizeram um trabalho jornalístico decisivo para que o escândalo de Watergate fosse descoberto e investigado até seu desfecho com a renuncia de Nixon em 1974. A crônica deste episódio vergonhoso da politica norte americana foi registrada no livro Todos os Homens do Presidente que virou um filme espetacular com Robert Redford e Dustin Hoffman nos papeis principais.
Em setembro de 2018, Bob Woodward publicou um livro sobre Donald Trump chamado Fear: Trump in the White House (Medo: Trump na Casa Branca) baseado em centenas de horas de entrevistas com fontes primárias, diários pessoais de colaboradores, notas de reuniões, arquivos e documentos. O livro cobre sua ascensão no Partido Republicano e a vitória nas eleições primárias, as eleições presidenciais contra Hillary Clinton e seu mandato na Casa Branca.
O livro retrata uma presidência caótica e disfuncional, com um processo decisório impulsivo e desinformado, resistente a orientações e também o papel exercido por pessoas chave do seu staff que trabalharam nos bastidores para conter danos e administrar as consequências dos impulsos presidenciais. O título do livro “Fear” remete a uma declaração do próprio Trump: “O verdadeiro poder – não quero nem usar a palavra- é o medo.”
Em excelente artigo no Estadão nesta semana, Pedro Malan diz que o futuro tornou-se mais incerto e perigoso com Donald Trump no poder. É assustador, diz Malan. Ele cita Amos Tversky: “mais assustador do que não saber algo é ser governado por quem acredita saber exatamente o que está acontecendo e o que fazer.”
Ao erradicar a confiança e plantar o medo, o governo Trump redefiniu a geopolítica mundial desmoralizando o sistema comercial, político e econômico institucionalizado no pós guerra. O sistema monetário de Bretton Woods adotou o dólar como principal moeda de referencia mundial lastreando seu valor em ouro, fixado em US$ 35 por onça. O sistema caiu em agosto de 1971 quando o governo Nixon anunciou a suspensão unilateral da conversão ouro/dólar. O mundo entrou então no sistema do câmbio flutuante onde as moedas são fiduciárias , isto é, são lastreadas apenas na confiança dos governos responsáveis por sua emissão.
Sem a amarra do padrão ouro/dólar a expansão da liquidez na economia mundial até os dias de hoje foi extraordinária permitindo um crescimento recorde da riqueza global. A base monetária global de meio trilhão de dólares em 1971 chega a US$ 129,3 trilhões em 2024. Os Estados Unidos ficaram com a parte do leão da riqueza mundial gerada para custear seu elevadíssimo padrão de consumo. Em 2024 o déficit comercial norte americano foi de US$ 918,4 bilhões e a divida pública US$ 35,8 trilhões equivalente a 124% do PIB do país. O mundo produz e financia o que os Estados Unidos consome graças ao tamanho e a força de sua economia, a credibilidade de suas instituições e a confiança em sua moeda. Os três atributos foram seriamente ameaçados pelas ações de Trump. E agora?
Agora, sem regras multilaterais respeitadas, tudo deve ser negociado em bases bilaterais entre os países, as grandes empresas globais e o governo norte americano. A funcionalidade do sistema de preços internacionais e o principio do fair trade foram feridos de morte pela nova política tarifária, declaradamente destinada a reverter na marra o déficit comercial dos Estados Unidos. Tudo que é sólido se desmancha no ar, poderia afirmar orgulhoso o revolucionário neo-marxista Donald Trump.
Certamente a desconfiança do resto do mundo no governo norte americano trará consequências nos preços relativos de mercadorias, ativos financeiros e moedas fazendo com que os fluxos internacionais de bens e de capital se alterem. Os mercados continuarão globais e a riqueza mundial a ser produzida será menor e é garantido que os Estados Unidos não vão mais ficar com a parte do leão.
Neste tsunami econômico e político é curioso ver o declaratório de líderes do Lulopetismo a favor da globalização, do livre mercado e até do famigerado “consenso de Washington”. Menos frequente, mas também se pode observar o contorcionismo intelectual de alguns poucos dedicados à defesa de Trump, quase sempre brandindo a bandeira dos ideais de liberdade do ocidente e os perigos do comunismo chinês.
Assustar-se e ter medo não é vergonha. Vergonha é se deixar enganar pela mitologia rasa e vulgar do autoritarismo e aceitar o desmonte dos avanços institucionais construídos globalmente a duras penas. A humanidade ainda terá que trabalhar muito para restaurar a confiança perdida em relações internacionais civilizadas e em um futuro de paz com uma verdadeira governança global.
Resistir ao retrocesso é o ponto de partida.
Em setembro de 2018, Bob Woodward publicou um livro sobre Donald Trump chamado Fear: Trump in the White House (Medo: Trump na Casa Branca) baseado em centenas de horas de entrevistas com fontes primárias, diários pessoais de colaboradores, notas de reuniões, arquivos e documentos. O livro cobre sua ascensão no Partido Republicano e a vitória nas eleições primárias, as eleições presidenciais contra Hillary Clinton e seu mandato na Casa Branca.
O livro retrata uma presidência caótica e disfuncional, com um processo decisório impulsivo e desinformado, resistente a orientações e também o papel exercido por pessoas chave do seu staff que trabalharam nos bastidores para conter danos e administrar as consequências dos impulsos presidenciais. O título do livro “Fear” remete a uma declaração do próprio Trump: “O verdadeiro poder – não quero nem usar a palavra- é o medo.”
Em excelente artigo no Estadão nesta semana, Pedro Malan diz que o futuro tornou-se mais incerto e perigoso com Donald Trump no poder. É assustador, diz Malan. Ele cita Amos Tversky: “mais assustador do que não saber algo é ser governado por quem acredita saber exatamente o que está acontecendo e o que fazer.”
Ao erradicar a confiança e plantar o medo, o governo Trump redefiniu a geopolítica mundial desmoralizando o sistema comercial, político e econômico institucionalizado no pós guerra. O sistema monetário de Bretton Woods adotou o dólar como principal moeda de referencia mundial lastreando seu valor em ouro, fixado em US$ 35 por onça. O sistema caiu em agosto de 1971 quando o governo Nixon anunciou a suspensão unilateral da conversão ouro/dólar. O mundo entrou então no sistema do câmbio flutuante onde as moedas são fiduciárias , isto é, são lastreadas apenas na confiança dos governos responsáveis por sua emissão.
Sem a amarra do padrão ouro/dólar a expansão da liquidez na economia mundial até os dias de hoje foi extraordinária permitindo um crescimento recorde da riqueza global. A base monetária global de meio trilhão de dólares em 1971 chega a US$ 129,3 trilhões em 2024. Os Estados Unidos ficaram com a parte do leão da riqueza mundial gerada para custear seu elevadíssimo padrão de consumo. Em 2024 o déficit comercial norte americano foi de US$ 918,4 bilhões e a divida pública US$ 35,8 trilhões equivalente a 124% do PIB do país. O mundo produz e financia o que os Estados Unidos consome graças ao tamanho e a força de sua economia, a credibilidade de suas instituições e a confiança em sua moeda. Os três atributos foram seriamente ameaçados pelas ações de Trump. E agora?
Agora, sem regras multilaterais respeitadas, tudo deve ser negociado em bases bilaterais entre os países, as grandes empresas globais e o governo norte americano. A funcionalidade do sistema de preços internacionais e o principio do fair trade foram feridos de morte pela nova política tarifária, declaradamente destinada a reverter na marra o déficit comercial dos Estados Unidos. Tudo que é sólido se desmancha no ar, poderia afirmar orgulhoso o revolucionário neo-marxista Donald Trump.
Certamente a desconfiança do resto do mundo no governo norte americano trará consequências nos preços relativos de mercadorias, ativos financeiros e moedas fazendo com que os fluxos internacionais de bens e de capital se alterem. Os mercados continuarão globais e a riqueza mundial a ser produzida será menor e é garantido que os Estados Unidos não vão mais ficar com a parte do leão.
Neste tsunami econômico e político é curioso ver o declaratório de líderes do Lulopetismo a favor da globalização, do livre mercado e até do famigerado “consenso de Washington”. Menos frequente, mas também se pode observar o contorcionismo intelectual de alguns poucos dedicados à defesa de Trump, quase sempre brandindo a bandeira dos ideais de liberdade do ocidente e os perigos do comunismo chinês.
Assustar-se e ter medo não é vergonha. Vergonha é se deixar enganar pela mitologia rasa e vulgar do autoritarismo e aceitar o desmonte dos avanços institucionais construídos globalmente a duras penas. A humanidade ainda terá que trabalhar muito para restaurar a confiança perdida em relações internacionais civilizadas e em um futuro de paz com uma verdadeira governança global.
Resistir ao retrocesso é o ponto de partida.
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