Em setembro de 2018, Bob Woodward publicou um livro sobre Donald Trump chamado Fear: Trump in the White House (Medo: Trump na Casa Branca) baseado em centenas de horas de entrevistas com fontes primárias, diários pessoais de colaboradores, notas de reuniões, arquivos e documentos. O livro cobre sua ascensão no Partido Republicano e a vitória nas eleições primárias, as eleições presidenciais contra Hillary Clinton e seu mandato na Casa Branca.
O livro retrata uma presidência caótica e disfuncional, com um processo decisório impulsivo e desinformado, resistente a orientações e também o papel exercido por pessoas chave do seu staff que trabalharam nos bastidores para conter danos e administrar as consequências dos impulsos presidenciais. O título do livro “Fear” remete a uma declaração do próprio Trump: “O verdadeiro poder – não quero nem usar a palavra- é o medo.”
Em excelente artigo no Estadão nesta semana, Pedro Malan diz que o futuro tornou-se mais incerto e perigoso com Donald Trump no poder. É assustador, diz Malan. Ele cita Amos Tversky: “mais assustador do que não saber algo é ser governado por quem acredita saber exatamente o que está acontecendo e o que fazer.”
Ao erradicar a confiança e plantar o medo, o governo Trump redefiniu a geopolítica mundial desmoralizando o sistema comercial, político e econômico institucionalizado no pós guerra. O sistema monetário de Bretton Woods adotou o dólar como principal moeda de referencia mundial lastreando seu valor em ouro, fixado em US$ 35 por onça. O sistema caiu em agosto de 1971 quando o governo Nixon anunciou a suspensão unilateral da conversão ouro/dólar. O mundo entrou então no sistema do câmbio flutuante onde as moedas são fiduciárias , isto é, são lastreadas apenas na confiança dos governos responsáveis por sua emissão.
Sem a amarra do padrão ouro/dólar a expansão da liquidez na economia mundial até os dias de hoje foi extraordinária permitindo um crescimento recorde da riqueza global. A base monetária global de meio trilhão de dólares em 1971 chega a US$ 129,3 trilhões em 2024. Os Estados Unidos ficaram com a parte do leão da riqueza mundial gerada para custear seu elevadíssimo padrão de consumo. Em 2024 o déficit comercial norte americano foi de US$ 918,4 bilhões e a divida pública US$ 35,8 trilhões equivalente a 124% do PIB do país. O mundo produz e financia o que os Estados Unidos consome graças ao tamanho e a força de sua economia, a credibilidade de suas instituições e a confiança em sua moeda. Os três atributos foram seriamente ameaçados pelas ações de Trump. E agora?
Agora, sem regras multilaterais respeitadas, tudo deve ser negociado em bases bilaterais entre os países, as grandes empresas globais e o governo norte americano. A funcionalidade do sistema de preços internacionais e o principio do fair trade foram feridos de morte pela nova política tarifária, declaradamente destinada a reverter na marra o déficit comercial dos Estados Unidos. Tudo que é sólido se desmancha no ar, poderia afirmar orgulhoso o revolucionário neo-marxista Donald Trump.
Certamente a desconfiança do resto do mundo no governo norte americano trará consequências nos preços relativos de mercadorias, ativos financeiros e moedas fazendo com que os fluxos internacionais de bens e de capital se alterem. Os mercados continuarão globais e a riqueza mundial a ser produzida será menor e é garantido que os Estados Unidos não vão mais ficar com a parte do leão.
Neste tsunami econômico e político é curioso ver o declaratório de líderes do Lulopetismo a favor da globalização, do livre mercado e até do famigerado “consenso de Washington”. Menos frequente, mas também se pode observar o contorcionismo intelectual de alguns poucos dedicados à defesa de Trump, quase sempre brandindo a bandeira dos ideais de liberdade do ocidente e os perigos do comunismo chinês.
Assustar-se e ter medo não é vergonha. Vergonha é se deixar enganar pela mitologia rasa e vulgar do autoritarismo e aceitar o desmonte dos avanços institucionais construídos globalmente a duras penas. A humanidade ainda terá que trabalhar muito para restaurar a confiança perdida em relações internacionais civilizadas e em um futuro de paz com uma verdadeira governança global.
Resistir ao retrocesso é o ponto de partida.
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