quinta-feira, 7 de maio de 2020

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Não fosse a imprensa, o Congresso, o STF, a OMS e a PF, esse governo decolava

O bolsonarismo permite tudo, menos o mimimi. Direitos humanos é vitimismo, racismo é frescura, homofobia é viadagem. Nesse país todos têm oportunidades iguais —a não ser, é claro, o presidente da República. Para o bolsonarista, o Brasil é um país de marajás governados por um eunuco. Não está difícil para ninguém —a não ser para esse homem branco, rico de meia-idade que se aposentou aos 33 anos de idade. Força, guerreiro.

Ah, se o trabalhador soubesse como é duro ganhar mais de R$ 30 mil por mês e não ter com o que gastar porque tudo já está pago! E, pra piorar, ainda aparece o motorista e deposita R$ 40 mil pra sua mulher! Dura a vida do homem público.


Bolsonaro não consegue governar —segundo ele mesmo— por causa do STF, do Congresso, do Ibama, dos inimigos, dos aliados, da esquerda, do centrão, dos governadores, da OMS, do pessoal dos direitos humanos, da Polícia Federal, da Globo, da Folha e do Leonardo DiCaprio.

No futebol, faz parte do jogo atribuir a derrota ao juiz. Estranho, no entanto, atribuir a derrota à torcida adversária, ao formato da bola, ao tamanho do gol, ao tecido do uniforme e à cor verde da grama. “A gente tenta fazer gol, mas toda vez vem aquele cara e pega a bola com a mão.” “O goleiro?” “Isso.”

Antes da pandemia a gente já estava diante de um 7 a 1 —PIB estagnado, real desvalorizado, escândalos de corrupção na família e no partido. Com a situação atual, o presidente tinha que estar aos prantos implorando clemência, como David Luiz no Mineirão: “Eu só queria poder dar uma alegria pro povo”. Quem dera.

Bolsonaro é um tipo de zagueiro que, quanto mais leva gol, mais anima sua torcida, que não entende direito as regras do jogo e comemora qualquer bola na rede. Lembra Junior Baiano, que, segundo o próprio, não fazia gol contra: fazia golaço contra. Não achava tão relevante o fato da bola balançar a própria rede. Talvez não fosse, mesmo. Pra quem assistia a futebol pelo furdunço, era um zagueirão.

Pela lógica tradicional, Bolsonaro já teria sido derrubado. Nunca um presidente conseguiria escapar de um fracasso econômico aliado a acusações tão contundentes partindo de gente do próprio campo. Na lógica bizarra do rebanho, Bolsonaro acerta quando erra, ganha quando perde e renasce quando morre.

“Se todo o mundo está contra ele, é porque ele deve estar fazendo alguma coisa certa”. Nem sempre. Às vezes ele é só um psicopata oligofrênico e narcisista. E você gosta dele porque também é.

Como Bolsonaro, Mussolini iniciou a instauração do fascismo com ameaças ao Parlamento e à liberdade de expressão

Quase todas as rupturas democráticas na história moderna começaram da mesma maneira: com ataques à liberdade de expressão e ao Congresso, e acabaram em sangue. Foi assim, por exemplo, cem anos atrás, quando Benito Mussolini criou o fascismo.

Quem hoje no Brasil minimiza essas mesmas táticas autoritárias do presidente Jair Bolsonaro e de seus seguidores mais fanáticos, poderá despertar amanhã em um país algemado e um regime ditatorial.

Daí a responsabilidade daqueles que não dão importância às ameaças de Bolsonaro às instituições, alegando que são apenas bravatas e ameaças puramente verbais. Ou os que defendem que as instituições continuam fortes o suficiente para deter esses arroubos ditatoriais que se multiplicam a cada dia. Ameaças que, apoiadas por esse exército que vai sendo criado de seguidores mais fanáticos, começam a se materializar em violência física, como acabamos de ver contra agentes da saúde e jornalistas.

O momento é mais grave ainda porque o Brasil, e também o restante do mundo, atravessa a crise de uma pandemia que ameaça não só semear a morte pelo país, como também a quebra de toda a economia e a chegada de uma pobreza que é um terreno fértil para os anseios dos novos aprendizes de ditadores.

Bastaria um passar de olhos pelo início do fascismo mussoliniano para constatar as semelhanças com o momento em que vive o Brasil, onde as instituições se veem cada vez mais sitiadas e ameaçadas, e se começa a sentir gritos de guerra civil.

Como hoje o ex-capitão Bolsonaro, também na época Mussolini, presidente do Conselho de Ministros [primeiro-ministro], começou a lembrar ao Parlamento que, se quisesse, poderia prescindir dele e governar por decreto. Disse aos congressistas que ele poderia “fazer deste plenário surdo e cinza um acampamento de soldados”. E acrescentou, lembrando que estava começando a contar com seu exército de voluntários violentos, os fascios: "Eu poderia fechar este Parlamento e construir um Governo exclusivamente fascista. Eu poderia, mas não quis, pelo menos neste momento”.

Hoje sabemos que não eram simples ameaças vazias e retóricas do Duce, que acabou se tornando um dos ditadores mais perigosos da história e levou a Itália não só à bancarrota econômica, mas também à guerra e ao obscurantismo. E isso com a bênção de boa parte dos intelectuais da época e da mesma Igreja diante da qual Mussolini, que era ateu confesso, acabou ajoelhando-se.
Aqueles que hoje insistem que Bolsonaro é apenas um desequilibrado que vocifera sem convicção do que diz e que nunca arrastaria o país para uma aventura mussoliniana, deveriam recordar algumas afirmações feitas por ele antes ainda de vencer as eleições.

De acordo com artigo da Folha de S.Paulo em 3 de junho de 2018, Bolsonaro em 1999 chegou a defender um novo golpe militar. Segundo o então deputado, não havia solução para o Brasil “por meio do voto popular”. Mais ainda, em entrevista ao programa Câmera Aberta, questionado pelo entrevistador se fecharia o Congresso Nacional se um dia fosse presidente da República, ele respondeu: "Não há menor dúvida, daria golpe no mesmo dia! Não funciona! E tenho certeza de que pelo menos 90% da população ia fazer festa, ia bater palma, porque não funciona”.

Bolsonaro foi ainda mais longe. Na mesma entrevista, declarou que não acreditava que existisse uma solução para o Brasil por meio da democracia e defendeu a morte de “30.000”, incluindo civis e o então presidente Fernando Henrique Cardoso. O hoje presidente disse que “através do voto você não vai mudar nada nesse país, nada, absolutamente nada! Só vai mudar, infelizmente, no dia em que partir para uma guerra civil aqui dentro, e fazendo o trabalho que o regime militar não fez. Matando uns 30.000, começando pelo FHC, não deixar ele pra fora não, matando! Se vai morrer alguns inocentes, tudo bem, tudo quanto é guerra morre inocente.”

Bolsonaro sonhava, então, com uma ditadura de verdade, pois, para ele, a do Brasil havia sido pequena. Nem havia chegado a ser uma de fato, e ele sentia desgosto por não ter havido mais mortos na época, já que, segundo ele, não valia a pena torturar pessoas, teria sido melhor matá-las.

É importante recordar hoje essas declarações arrepiantes de Bolsonaro anos atrás, agora que está com o poder em suas mãos e que de novo volta a ameaçar fechar o Congresso e meios de comunicação.

Naquela ocasião o deputado Bolsonaro foi acusado de atacar os valores democráticos, mas o então procurador-geral da República, Geraldo Brindeiro, deu parecer favorável ao arquivamento de suas declarações, alegando que, como deputado, gozava de imunidade parlamentar. Voltaremos hoje a acreditar que suas ameaças, sendo agora presidente, são simples retórica amparada na liberdade de expressão que ele abomina e combate?

Não é possível analisar ameaças ao Congresso, ao Supremo Tribunal Federal e aos meios de comunicação sem levar em conta os antecedentes políticos do presidente. Já está claro que a cada dia ele dá mais um passo em seu projeto autoritário.

Querer minimizar as ideias de Bolsonaro contra as liberdades democráticas ou atribuí-las a um puro exercício de linguagem, como fez dias atrás o presidente do Supremo, José Antonio Dias Toffoli, é mais do que uma imprudência, é uma grave irresponsabilidade. Afirmar, como fez o magistrado comentando com entusiasmo a bravata pública e as ameaças às liberdades do Presidente, que “talvez a maneira de ele falar não seja a mais correta ou adequada. Pode ser que a forma prejudique o conteúdo”, é um eufemismo grave que parece querer ignorar o momento delicado e talvez sem volta atrás que a democracia está sofrendo neste país.

Esses eufemismos pronunciados pelo presidente da mais alta corte indicam que as forças democráticas responsáveis por vigiar e defender os valores intocáveis das liberdades ainda não entenderam o que aconteceu em todos os movimentos da história que acabaram em opressão e na negação dos valores do Estado moderno, e que produziram jorros de sangue inocentes. Todos eles começaram ameaçando a fazer o que acabaria se tornando realidade.

Os eufemismos são válidos quando se trata de aliviar a dor ou o horror, mas quando as liberdades são ameaçadas, quando os diferentes são ofendidos e atacados, quando se dá luz verde à violência dos grupos mais exaltados do ódio, é preciso ter a coragem de chamar as coisas por seu verdadeiro nome.

Não é forma, mas conteúdo quando Bolsonaro, diante da dor das mortes que o coronavírus está causando, exclama com cinismo: “E daí?” Não se trata de um problema de linguagem. Quando exalta a tortura, debocha de outros povos e ameaça com rupturas institucionais, suas palavras, dados os seus antecedentes já desde jovem, não podem ser tratadas como um mero exercício lexical.

Como escreveu Miriam Leitão em sua coluna de O Globo, as ameaças do presidente são “explícitas. Não cabem mais silêncios”. Neste momento, tentar minimizar as ameaças às liberdades por parte de Bolsonaro significa ser seu cúmplice.

Por tudo isso, a responsabilidade máxima pelo que poderá ser o futuro do Brasil, ante as ameaças que suas conquistas democráticas, que foram orgulho do mundo, estão sofrendo dia após dia, recai neste momento nas instituições que, segundo a Constituição, têm o direito e o dever de conter essa loucura de nostalgias fascistas.

E como já afirmei em outro artigo, isso tem que ser já, porque amanhã pode ser tarde demais. E então de nada adiantará chorar. E não se iludam, quem pagaria o maior preço seriam os mais desvalidos, os duplamente perdedores, como em todos os fascismos e nazismos que hoje estão tentando ressuscitar com sua carga de dor e sangue.

É isso o que os responsáveis de hoje, os que deveriam ser os guardiões da democracia, querem para o Brasil, que já sonhou com dias mais luminosos?

Fez bem o ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva, ao declarar que as Forças Armadas estão comprometidas “com a democracia" e que “as Forças Armadas estarão sempre ao lado da lei, da ordem, da democracia e da liberdade". Agora será preciso ver, de modo concreto, se as Forças Armadas, que estão massivamente no Governo Bolsonaro, lhe permitirão seguir em frente em seus ataques à democracia, sem tomar decisões concretas, já que estamos nos acostumando demais a constatar que as palavras não bastam quando a realidade se vai impondo cada dia mais ameaçadora e sombria.

Arriscar vidas para salvar o futebol, um sacrifício impensável no pico da pandemia

No último Dia do Trabalhador, o presidente do Internacional, Marcelo Medeiros, ameaçou demitir jogadores que se recusem a retornar às atividades em meio à pandemia de coronavírus. Após repercussão negativa, o cartola amenizou o tom, afirmando ter se tratado de um “mal-entendido”, e assegurou que o clube gaúcho seguirá “respeitando todas as orientações que preservem a saúde” dos funcionários. Nesta semana, porém, o Inter manteve a programação de retomar treinamentos quase dois meses depois da paralisação. Uma postura que minimiza a exposição a riscos de contaminação dos profissionais envolvidos nos jogos e entoa o lobby inconsequente do Governo Federal pela volta à rotina pré-quarentena, apesar dos casos da doença ainda estarem fora de controle no país.

De acordo com o Inter, jogadores e funcionários serão testados para covid-19 e o acesso ao clube contará com medidores de temperatura. O modelo é semelhante ao adotado pelo Flamengo, que investiu cerca de 100.000 reais para adquirir kits de testagem, que também contemplam as famílias dos atletas. Os dois clubes fazem parte da exceção dos grandes que ostentam condições financeiras para comprar equipamentos de proteção e garantir o cumprimento de protocolos mínimos de segurança. A maioria das equipes no Brasil, sobretudo as que disputam os campeonatos estaduais, interrompidos antes de seu desfecho, amarga uma realidade de dívidas, salários atrasados e estruturas precárias. Essas nuances precisam ser levadas em conta antes de adaptar modelos aplicados em outros países para a retomada do futebol.

'Camisa 10' tem até patrocínio de rede
de saúde, um banco e uma rede hoteleira
Por ora, a referência são os clubes alemães, que retornaram aos treinos há duas semanas. Ainda assim, é necessário muito cuidado ao importar práticas de atividades por grupos em território nacional. O Brasil tem índice de testes para coronavírus 30 vezes inferior ao da Alemanha, menos leitos de UTI e um ritmo acelerado de novos casos, com estatísticas subnotificadas. Enquanto a Alemanha conseguiu frear o número de infectados, a curva brasileira continua em ritmo ascendente, indicando que o pico da pandemia com mais de 7.900 mortes registradas ainda não foi alcançado no país.

Mesmo com melhores indicadores que o Brasil, a Alemanha já verifica o início de uma segunda onda do vírus após relaxar as medidas de isolamento. Entre os clubes de primeira e segunda divisões que voltaram a treinar, já são dez casos confirmados de covid-19. Por outro lado, outros países europeus optam por mais prudência e adiam prognósticos de retorno aos gramados, sendo que, na França, por determinação governamental, a liga decidiu declarar o PSG como campeão e encerrar seu torneio de pontos corridos.

Neste momento, sob o risco de colapso dos hospitais e cemitérios em várias cidades, em que dispositivos de testagem se revelam falhos, falar em reinício do futebol soa como uma provocação de mau gosto. Na linha de frente do combate à pandemia no Brasil, profissionais da saúde ainda sofrem com a falta de testes de coronavírus, ao passo que o circuito milionário e privilegiado da bola não se constrange em disponibilizar uma invejável infraestrutura de testagem para se fechar em sua bolha, onde o show tem de continuar a qualquer custo.

É compreensível que clubes e federações iniciem discussões sobre cenários para a retomada dos campeonatos e avaliem protocolos de segurança adequados a cada perspectiva. Mas fazê-lo com o intuito de jogar a partir de maio, que pode ser o mês mais dramático da pandemia, é no mínimo insensibilidade dos dirigentes, como se o esporte operasse em uma realidade paralela. Isso não significa ignorar o impacto econômico da paralisação dos torneios, que, em casos de clubes menores, representa inclusive o risco de falência se ficarem à margem do amparo emergencial da CBF. De qualquer forma, arriscar vidas para salvar o futebol deveria ser algo simplesmente impensável diante do estado de calamidade pública.

Não adianta os dirigentes afirmarem que estão preocupados com a saúde dos atletas se, ao mesmo tempo, querem reconduzi-los ao campo num período tão delicado no enfrentamento à epidemia. Além de poucos clubes terem cacife para bancar todo aparato de proteção, a complexidade de uma partida de futebol, ainda que sem público, envolve centenas de profissionais, sendo que muitos deles, a parte mais vulnerável da cadeia produtiva na indústria do esporte, estarão expostos nos deslocamento ao trabalho, convertendo-se em potenciais disseminadores do vírus a seus familiares. A essa altura, o principal debate não deveria ser a retomada dos campeonatos no curto prazo, mas sim a criação de uma força-tarefa, liderada por FIFA e CBF, que garantam, com suas confortáveis reservas financeiras, a proteção de empregos dos trabalhadores que não têm o mesmo respaldo dos atletas no topo da pirâmide.

Em sua cruzada de sabotagem dos estudos científicos, o presidente Jair Bolsonaro agora investe no futebol para forçar uma volta à normalidade desaconselhada por autoridades médicas. A retomada dos jogos passaria a mensagem —falsa— de que a pandemia está controlada. Para tanto, o presidente coagiu o Ministério da Saúde a emitir um parecer favorável ao reinício dos treinamentos, sem, no entanto, se responsabilizar por parâmetros que certifiquem a proteção dos atletas. Uma jogada irracional, comparável apenas a ditaduras como a de Belarus, que segue com seus torneios durante a pandemia, mas na contramão das recomendações de entidades amparadas pela ciência.

Contando com a subserviência de dirigentes, Bolsonaro conseguiu transformar o futebol, uma atividade não essencial, em tema de urgência entre as prioridades do momento. Sinal de que a semente plantada pela cartolagem começa a dar frutos. Marcelo Medeiros, por exemplo, encontrou uma brecha na agenda do Planalto para ser recebido pelo presidente, a quem presenteou com uma camisa colorada, em março de 2019. Um ano depois, o mandatário do Inter testou positivo para coronavírus. Após dizer que sentiu o corpo “demolido” pelos efeitos da doença, o recuperado Medeiros prefere fazer coro ao discurso presidencial, ansioso para ver a bola rolando novamente, a adotar cautela antes de defender medida que expõe seus funcionários ao vírus que o atingiu. Uma amostra do pensamento tacanho de boa parte dos cartolas, aparentemente resignados em tratar vidas como números em planilhas.

Gol contra

Não quero que um amigo ou membro da família morra devido à pressão do dinheiro.

Sempre nos pedem para sermos um exemplo e é assim que deve ser. Muitas crianças e jovens prestam atenção em nós. Vamos mostrar como exemplo à sociedade que valorizamos a vida e a saúde acima de tudo. Para mim, e tenho certeza de que para a grande maioria dos jogadores de futebol, o dinheiro não é tudo
Gabriel Paulista, zagueiro brasileiro do Valencia, que teve três jogadores assintomáticos e cerca de 35% do pessoal que trabalha no vestiário da primeira equipe infectados

Bolsovírus

Estamos todos doentes. Não bastasse o drama que vivemos com a crise da Covid-19, temos que lidar com o rastro de destruição deixado por um germe patogênico incapacitante: o bolsovírus, como foi apelidado.

Jair Bolsonaro conseguiu a façanha de contaminar a população com seu discurso inescrupuloso, seu apreço pela ignorância e seu desprezo pela humanidade. Deixou um país inteiro infectado pela raiva e pela desesperança.

Estamos todos mentalmente desequilibrados. Quem não está cego e não perdeu toda a capacidade de discernimento e a decência sente os efeitos dessa infecção devastadora provocada pelo bolsovírus de uma forma também bastante severa: as pessoas estão tristes, abatidas, exaustas com o festival diário de asneiras, de grosserias e de ataques à democracia.

Assistindo ao noticiário, que dedica boa parte do seu tempo a descrever a crise institucional que não abandona o país, tenho a falsa e perigosa sensação de que não temos outro problema ainda maior, o coronavírus. A gravidade da pandemia acaba diluída diante dos mandos e desmandos desse brutamontes que enlameia a cadeira da Presidência.

Somos atropelados pelo tiroteio entre o presidente e o ex-ministro da Justiça, as brigas com os governadores, os lampejos golpistas, que se tornaram corriqueiros. E, no final do dia, trombamos com o número de mortes pela Covid-19, a baixa adesão ao isolamento, o recorde de perdas entre os profissionais da saúde, os hospitais em colapso.

Todas as nossas atenções deveriam estar focadas em salvar vidas, mas passamos boa parte do tempo tentando nos livrar da insanidade a que Bolsonaro submete o país.

Quem ainda não está louco, condição "sine qua non" para não apoiar este governo tresloucado e incompetente, está sendo enlouquecido à medida que faz oposição a ele. Ou acabamos com o bolsovírus ou não sei o que será de nós.

'Abaporu' do Novo Brasil


Entre a morte e a vida

É muito o que não se sabe sobre o avanço da Covid-19 no país. Ainda assim, parece que não nos saímos tão mal até aqui, como apontou nesta Folha o colunista Vinicius Torres Freire. Comparando a proporção de mortos por 1 milhão de pessoas, nos 40 dias depois da décima vítima, ele calculou que, mesmo descontada a subnotificação, a proporção de casos letais no Brasil era menor que nos Estados Unidos, Alemanha, Itália, Reino Unido e Espanha. Ressalvou, porém, que tudo poderia piorar, pois a progressão dos óbitos não dá margem a muito otimismo.

O mérito daqueles resultados alentadores tem de ser creditado por inteiro ao SUS e às suas equipes, aos governadores e aos prefeitos que adotaram a tempo medidas de distanciamento social e fizeram a parte que lhes cabe na mobilização do sistema público de saúde. Por terem seguido o caminho indicado pelos especialistas, alguns se tornaram alvo de Bolsonaro e das minorias abestadas que o seguem.


Mas o que os governos subnacionais podem fazer tem limites. Na saúde, assim como em outras áreas sociais, o modelo brasileiro é o federalismo centralizado. Nele, a União detém grande poder normativo, regulatório e financeiro, enquanto aos estados —e especialmente aos municípios— cabe a implementação das ações.

Nesta crise, ao mesmo tempo em que o tosco chefe do Executivo sabota políticas razoáveis, por palavras e atos —mudando o ministro da Saúde, opondo-se ao isolamento social e dando como certos os ainda duvidosos benefícios de drogas tidas por miraculosas, de cujos efeitos colaterais, aliás, desdenha—, a máquina sob o seu desgoverno tem respondido de forma lenta e errática.

Em artigo certeiro no site Poder360 —"A velha falta de prioridade e uma nova tragédia anunciada"—, o economista José Roberto Afonso e a procuradora Élida Pinto lembram que não é de hoje o sub-financiamento do SUS. Mostram também o abismo entre o que já está aprovado e o que efetivamente foi desembolsado pela União para a saúde, como se o combate à pandemia não fosse urgência urgentíssima.

Parcela crescente da população reconhece que os governadores agem em defesa da vida. Segundo pesquisa da XP-Investimentos, em abril a sua avaliação positiva saltou 18 pontos percentuais, passando de 26 % a 44% os que consideram sua atuação ótima ou boa.

Enquanto isso, a minoria criminosa que buzina às portas de hospitais, ofende enfermeiras, espanca jornalistas e se prosterna diante Bolsonaro ecoa, naturalmente sem saber, o brado do general fascista espanhol Millán-Astray nos anos 1930: "Abaixo a inteligência, viva a morte!".
Maria Hermínia Tavares

Eu, mutilado capilar

Os barbeiros me humilham cobrando meia tarifa. Faz uns vinte anos que o espelho delatou os primeiros clarões debaixo da melena frondosa. Hoje o luminoso reflexo de minha calva em vitrines e janelas e janelinhas me provoca estremecimentos de horror.

Cada fio de cabelo que perco, cada um dos últimos cabelos, é um companheiro que tomba, e que antes de tombar teve nome ou pelo menos número.

A frase de um amigo piedoso me consola:

— Se o cabelo fosse importante, estaria dentro da cabeça, e não fora.

Também me consolo comprovando que em todos esses anos caíram muitos de meus cabelos mas nenhuma de minhas idéias, o que acaba sendo uma alegria quando a gente pensa em todos esses arrependidos que andam por ai.

Imagem do Brasil adoece

Quando a tarde caía como um viaduto, ali no final da década de 70, o mundo espichava um olhar curioso em relação ao Brasil. A campanha pela anistia secava as lágrimas de Marias e Clarices, e aquele gigante da América do Sul iniciava a caminhada em direção à campanha pelas eleições diretas e o retorno à democracia.

Era também o momento em que o desmatamento da Amazônia, estimulado pelos governos militares de então, chegava às manchetes dos principais jornais do mundo. A abertura da Transamazônica, a criação de grandes fazendas de gado no sul do Pará e a aventura de produção de celulose no Amapá inquietavam os pioneiros daquilo que viria a se transformar na grande onda ambientalista global.

As diretas demoraram um pouco para chegar. Mas a democracia retomou seu rumo a partir da eleição de Tancredo Neves no Colégio Eleitoral em 1985, e o Brasil voltou a colecionar simpatias ao redor do mundo. Aquele lugar distante ainda cheio de problemas, como dívida externa, inflação e pobreza, mas com uma ponta de otimismo em relação ao futuro.

A Amazônia, por sua vez, estacionou de vez na lista dos principais temas mundiais. O meio ambiente conquistou em poucos anos lugar de grande destaque na agenda global. E o Brasil, aquela recente democracia que buscava nova posição sobre o tema, se tornou a sede de uma enorme conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento em 1992. A partir dali o país conquistaria o status de potência ambiental global.

O que poderia dar errado?

Em 1984, as camisas amarelas eram o símbolo da campanha pelas eleições diretas, que movimentaram comícios de mais de um milhão de pessoas nas principais capitais brasileiras. Hoje elas foram raptadas pelos mais radicais defensores do presidente Jair Bolsonaro, que foram às ruas de Brasília no domingo (3) com suas costumeiras faixas em defesa de uma intervenção militar e do fechamento do Congresso e do Supremo Tribunal Federal.

Na década de 80, jornalistas de todo o mundo relataram a ampla campanha que levou ao fim da última intervenção militar. Agora a imprensa internacional publica mais uma vez fotos de brasileiros nas ruas de camisas amarelas. Mas o conteúdo das reportagens publicadas ao redor do mundo não pode ser chamado de otimista.

Pandemia e política

Ao relatar os últimos fatos referentes à pandemia do coronavírus no final de semana, o jornal inglês The Guardian publicou, sob a foto de um jovem com a camisa da seleção brasileira, a informação de que Bolsonaro estimulou novos protestos de rua, apesar dos apelos de seu ministro da Saúde para que as pessoas permaneçam em casa.

O francês Le Monde apontou os desafios que o Brasil tem pela frente. “Uma pandemia mundial, acompanhada de uma crise econômica: tudo isso não era suficiente para Jair Bolsonaro”, observou o jornal, ao comentar a demissão do ministro da Justiça, Sérgio Moro, e as denúncias que pesam contra o governo.

“O Brasil”, prosseguiu o Le Monde, “está igualmente mergulhado em uma grave crise política, de consequências potencialmente explosivas”.

A manifestação em Brasília também foi tema de destaque no site da rede de televisão Al Jazeera. Segundo o texto, Bolsonaro “atacou o Congresso e o Judiciário em um discurso para centenas de manifestantes, enquanto o número de casos do corononavírus ultrapassou 100 mil, demonstrando o crescente isolamento do antigo capitão a respeito de sua atuação diante da pandemia”.

As mesmas camisas amarelas estão estampadas em reportagem a partir de São Paulo publicada pelo jornal inglês Financial Times, que aborda as mais recentes preocupações dos líderes empresariais brasileiros em relação ao governo Bolsonaro.

Segundo a publicação londrina, a comunidade de negócios, antes satisfeita com as posições pró-mercado do novo presidente, está agora “ansiosa porque o panorama econômico e político sob o presidente mercurial está se deteriorando rapidamente”.

Índios

Do outro lado do Atlântico Norte, o jornal The New York Times – que também acompanha passo a passo a crise política em Brasília – voltou a abrir grande espaço para o outro tema brasileiro que conquista atenção internacional: a Amazônia. Em longa reportagem de seus correspondentes a partir do estado de Rondônia, o jornal alerta para o temor dos índios de um “etnocídio”.

Os correspondentes informam que Bolsonaro já enviou ao Congresso Nacional um projeto de lei destinado a regulamentar a mineração em terras indígenas e lembram que o atual presidente fez do desenvolvimento da Amazônia uma das suas principais promessas de campanha.

“Desde que chegou ao governo, Bolsonaro moveu-se de forma agressiva para implementar essas metas de desenvolvimento, colocando em prática políticas que, segundo temem os críticos, podem levar a uma nova era de etnocídio para as comunidades indígenas”, diz o The New York Times.

A reportagem chegou aos leitores do jornal poucos dias antes da publicação, nas principais capitais do mundo, de um manifesto lançado pelo fotógrafo brasileiro Sebastião Salgado, que prepara uma grande exposição sobre a Amazônia para 2021.

Após percorrer a região durante os últimos anos, ele percebeu que os índios da Amazônia, já ameaçados pela invasão de suas terras por garimpeiros, madeireiros e grileiros, podem ser os grandes prejudicados pela expansão no Brasil da pandemia do coronavírus.

Em seu “Apelo Urgente ao Presidente do Brasil e aos Líderes do Legislativo e do Judiciário”, Salgado recorda que os povos indígenas do Brasil “enfrentam uma grave ameaça à sua própria sobrevivência com o surgimento da pandemia do Covid-19”.

O manifesto, assinado por personalidades internacionais como o cineasta espanhol Pedro Almodóvar, o ex-Beatle Paul Mc McCartney, a cantora americana Madonna e o cineasta mexicano Guillermo del Toro, ressalta que muitas comunidades indígenas estão completamente desprovidas de defesa contra a pandemia.

“Sem nenhuma proteção contra esse vírus altamente contagioso, os índios sofrem um risco real de genocídio, por meio de contaminações provocadas por invasores ilegais de suas terras”, observam os signatários do apelo. “Esses povos são parte da extraordinária história de nossa espécie. Seu desaparecimento seria uma grande tragédia para o Brasil e uma imensa perda para a humanidade”.

É difícil prever se essas palavras tocarão o coração de Jair Bolsonaro. Mas sempre se pode lembrar que o apelo foi publicado um dia antes da morte, por coronavírus, do poeta Aldir Blanc, o mesmo que escolheu as palavras daquele que viria a ser um hino da campanha pela volta da democracia no Brasil. “A esperança”, escreveu Blanc naquele distante 1979, “dança na corda bamba de sombrinha”.

Por quem dobram os cotovelos

Há 1.813 militares infectados e sete óbitos, num efetivo de cerca de 390 mil nas Forças Armadas. A proporção de casos (0,5%) é dez vezes maior que o contágio do total da população brasileira. O elevado número de contagiados reflete a exposição dos militares em operações de combate à covid-19, da desinfecção de hospitais e higienização de áreas de grande circulação ao transporte de alimentos e equipamentos hospitalares. A mortalidade entre infectados, por outro lado, é um milésimo daquela observada no país, resultado, em grande parte, do monitoramento precoce dos casos e atendimento nos hospitais militares.

Alguns desses números foram expostos no tenso encontro que, no fim de semana, reuniu os comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica ao Palácio da Alvorada com o presidente da República e seus ministros militares. Na véspera, o general Edson Leal Pujol e todo o generalato presente à cerimônia de transmissão do Comando Militar do Sul haviam dobrado o cotovelo ante um presidente surpreendido.

Com os números, ofereceu-se uma explicação. Para continuar a colaborar com o combate à covid-19, que hoje mobiliza 29 mil militares em todo o país, os militares precisam se cuidar. Os comandantes bateram na tecla, que vêm pautando as portarias militares desde o início da pandemia, de que devem se proteger para proteger o país.

No dia seguinte, o comandante supremo estamparia o divórcio.


Desceu a rampa do Palácio do Planalto para mais um da série de espetáculos que protagoniza nesta pandemia. Cotovelos, naquele domingo, só entraram em cena para seus apoiadores baterem em jornalistas. Sem civismo, mas com muito cinismo, sugeriu que as Forças Armadas partilhariam consigo a paciência esgotada com as instituições e vazou a saída Pujol do comando.

Tratava-se de um balão de ensaio, mas tinha gás suficiente para aumentar a insatisfação dos oficiais da ativa com o presidente da República. O comandante que expunha as tropas ao risco de contágio, visto que se trata “da maior missão” de sua geração, estaria, de fato, com seu cargo em risco? Não. Tratava-se apenas de um presidente que resolvera regar de baciada a semente da indisciplina nos quartéis, praga da República brasileira da qual ele é apenas o mais recente representante.

É sua maneira de reagir ao cordão de isolamento que as instituições começam a apertar em torno de seu pescoço. O decano do Supremo Tribunal Federal é o puxador desse cordão. O depoimento do ex-ministro Sergio Moro frustrou muita gente mas não ao ministro Celso de Mello, que lhe deu publicidade bem como a todo inquérito.

Foi além do procurador-geral da República ao pedir a busca e apreensão do celular do ministro e estabelecer prazo para a tomada de depoimentos das testemunhas e a entrega do vídeo da reunião em que Moro disse ter sido tratada a substituição da superintendência da Polícia Federal no Rio.

Alguns dos intimados não gostaram da advertência do decano de que a resistência das testemunhas em marcar o dia, a hora e o local para serem ouvidos pode resultar em condução coercitiva. Depois que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi tirado de sua casa de madrugada para depor no aeroporto de Congonhas, o Supremo resolveu limitar o instrumento.

Réus não lhe estão mais sujeitos, mas o depoimento “debaixo de vara” continua valendo para testemunhas, mesmo que, entre elas, estejam três generais da reserva na função de ministros (Augusto Heleno, Luiz Eduardo Ramos e Walter Braga Netto), um dos quais, da ativa.

Advertência no mesmo tom foi usada contra o secretário-geral da Presidência, Jorge Oliveira, e o secretário de Comunicação Social da Presidência, Fábio Wajngarten. Além do prazo de 72 horas para a entrega do vídeo da reunião, eles foram lembrados de que a eventual adulteração do material está sujeita a penalidades previstas na lei.

Um influente general da reserva viu na decisão do decano uma afronta à presunção de inocência, mas Celso de Mello não parece preocupado com as reações. Não foi por decisão dele que generais deixaram as Forças Armadas para servirem a um governo que tem Jair Bolsonaro como presidente da República e Wajngarten como chefe da comunicação.

O decano chegou ao Supremo no governo José Sarney, quando a democracia parecia consentimento de uma ditadura insepulta. Parece confiar no compromisso das Forças Armadas com a defesa da Constituição ao encurtar a vara com a qual intimou os servidores militares lotados no Palácio do Planalto. A quem serão leais, ao presidente, às Forças Armadas ou à lei máxima do país? A evolução do inquérito mostrará se as três lealdades terão como ser conjugadas.

Nas mais de três décadas em que os militares se ocuparam exclusivamente de profissionalizar as Forças Armadas, só deveram satisfação à justiça fardada. Foi a militarização deste governo, pela tese já nocauteada da tutela, que inverteu esta situação. Na ditadura, o Supremo Tribunal Federal teve acanhado desempenho, com honrosas exceções, como o ministro Ribeiro da Costa, que contestou o julgamento do governador deposto Miguel Arraes pela justiça militar. Hoje não há submissão possível.

No limite, o presidente da Corte e seu ex-assessor, o atual ministro da Defesa, movem as peças da contemporização. Se as Forças Armadas têm números a mostrar de sua participação no combate à covid-19, a Corte também os tem. Foram 1.660 processos e 1.473 decisões em torno da pandemia. Dias Toffoli reabilitou a Ordem do Dia de 31 de março, Fernando Azevedo e Silva entronizou a Constituição. Ambos repudiaram a violência contra jornalistas.

Não chega a ser um dueto, mas é um diálogo que pode manter Bolsonaro sob o cerco da Constituição. Ontem Toffoli definiu o Supremo como a última trincheira. A ver como dará cabo de um presidente que, na definição de um fardado, continua a ser o pentatleta da academia militar. Aquele que, quando a corda arrebentar, se manterá em pé com um pedaço dela nos dentes e os cotovelos em riste.

Pensamento do Dia


Sem chance

No rumo em que vai, o governo Bolsonaro não tem chance de dar certo, isso não significa que o impeachment do presidente da República venha a ocorrer. O problema é que as variáveis de sucesso conspiram para que as coisas deem errado. A primeira delas é o conceito de governo. Bolsonaro fez uma opção por um governo de colisão com os demais poderes e esferas de poder, anda às turras com o Congresso e o Supremo, os governadores e os prefeitos. No lugar do presidencialismo de coalizão, optou por uma estratégia de centralização de poder e confronto. Montou um time de militares para operar a administração, mas não deixa que os generais do Palácio do Planalto façam uma política de conciliação à la Duque de Caxias. Seu estilo está mais para Gastão de Orléans, o Conde d’Eu.


Governança e governabilidade caminham de mãos dadas, Bolsonaro cria instabilidade política permanentemente, força os limites do regime democrático. A segunda variável de sucesso seria um método adequado de governança. Aparentemente, é um assunto com o qual não se preocupa. Confronta permanentemente a elite do serviço público, desestabiliza até as atividades-fins, como aconteceu com a Saúde, num momento decisivo para achatamento da curva da epidemia de coronavírus. Se tivesse colado no então ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, estaria usufruindo dos mesmos índices de popularidade que o auxiliar ostentava, mas errou feio. E continua errando, embora aparentemente tenha caído a ficha para o novo ministro da Saúde, Nelson Teich, de que, neste momento, é loucura relaxar a política de isolamento social.

No mesmo caso se enquadra a ruptura com o ex-ministro Sergio Moro, que saiu do governo acusando o presidente da República de interferências indevidas na Polícia Federal. O depoimento de Moro no inquérito que investiga o caso, divulgado ontem, frustrou a oposição, que esperava denúncias mais contundentes do que aquelas que já havia feito. O problema de Moro é que a maioria de suas afirmações depende de confirmação do estado-maior do governo. Embora todo ocupante de cargo público tenha compromisso com a verdade, nada garante que os generais Luiz Eduardo Ramos (Secretaria de Governo); Augusto Heleno (Gabinete de Segurança Institucional) e Walter Braga Netto (Casa Civil), ao interpretar os fatos, corroborem as acusações de Moro; resta saber o que dirão os delegados da Polícia Federal (PF) Ricardo Saad, Carlos Henrique de Oliveira Sousa, Alexandre Saraiva, Rodrigo Teixeira, Maurício Valeixo e Alexandre Ramagem.

Moro não conta com a solidariedade política do Ministério Público Federal (MPF) e do Supremo Tribunal Federal (STF), que vão investigar o caso numa linha de ponderação e equilíbrio. Não pretendem ser protagonistas, no momento atual, de uma crise institucional. No depoimento de Moro, além das acusações contra Bolsonaro, também há contradições e lacunas que podem ser usadas contra o ex-juiz. Apesar de contar com grande prestígio na opinião pública, Moro agora enfrenta uma guerra nas redes sociais, para a qual não estava preparado. Continua sendo um nome fortíssimo para a disputa da Presidência em 2022, mas terá de atravessar o deserto sem camelo, se digladiando com os inimigos declarados e ocultos que amealhou ao longo de sua atuação, inclusive nos tribunais. O caso Moro, porém, tira de Bolsonaro a bandeira da ética.

A terceira variável do sucesso é a construção de um ambiente favorável para o governo. Impossível isso ocorrer a curto prazo. No plano mais objetivo, a pandemia de coronavírus e a recessão mundial modificaram completamente as circunstâncias nas quais Bolsonaro governa. Um governante que chegou ao poder mais pela sorte do que pelas virtudes tem grandes dificuldades de lidar com mudanças de envergadura. É o caso de Bolsonaro. Aves podem fazer coisas como mergulhar e falar, mas não pode dar leite. É assim que a economia funciona. No cenário de desestruturação das atividades econômicas por causa da epidemia, a política econômica ultraliberal do ministro Paulo Guedes foi para o espaço; não pode ser implementada sem um custo social muito alto no imediato pós-epidemia. Essa é uma contradição com a qual Bolsonaro não contava. No mundo inteiro, se discute o que será o “novo normal” na vida social e econômica. Não é possível, simplesmente, voltar ao que se fazia antes, como imagina.

O ambiente político também mudou muito, embora o governo venha fazendo um esforço para aumentar seu cacife no Congresso. A aproximação de Bolsonaro com os partidos do chamado Centrão blindará o governo diante das tentativas de impeachment da oposição, mas isso não melhora seu desempenho administrativo, que deixa muito a desejar, nem garante a hegemonia no Congresso, além de afastar setores da opinião pública identificados com Moro. Além disso, o estresse institucional criado por Bolsonaro atrapalha as negociações políticas. Tanto o Congresso quanto o Supremo, ao contrário do que o presidente da República se queixa, vêm atuando no sentido de colaborar com o governo no enfrentamento da crise provocada pela pandemia. Nesse aspecto, deveria até agradecer, em vez de tanto reclamar.

Militares precisam decidir de que lado estão

Faz um ano e meio que Jair Bolsonaro assumiu a Presidência e, nesse período, nenhuma outra instituição mudou tanto quanto os militares. O ministro da Defesa já costumava ser um membro importante do governo, mas se continha, discretamente.

Raramente, o líder dessa pasta dava entrevistas. Os contatos com os outros Poderes – Judiciário e Legislativo – se restringia ao protocolo oficial. Nas últimas duas décadas, os militares ficaram claramente subordinados ao controle civil. Nenhum ministro da Defesa teria ousado criticar publicamente o Congresso ou a Justiça.

Isso mudou no governo Bolsonaro: os militares ocupam quase todos os postos-chave do Executivo – dos 22 ministros, oito são oriundos das fileiras uniformizadas do Exército, incluindo generais na ativa. Além disso, há 2.500 fardados distribuídos em cargos administrativos e empresas estatais – onde, cada vez mais, ditam as regras. Dois generais foram nomeados com o novo ministro da Saúde, Nelson Teich, e controlam a pasta. Teich não tem poder executivo.

Por isso, não é exagero afirmar que, atualmente, o Brasil já tem um governo militar. Isso vale para o número de cargos ocupados, mas também para a crescente influência exercida pelos militares sob Bolsonaro e para a maneira como assumem cada vez mais áreas de responsabilidade – a exemplo do Ministério da Saúde e, cada vez mais, da economia.


O presidente e os militares são dependentes uns dos outros. Bolsonaro precisa de comandados para governar porque a maior parte de seus "especialistas" civis se revelam incapazes. Já os uniformizados sabem exatamente que nunca teriam chegado ao centro do poder sem Bolsonaro.

Essa coalizão de interesses, porém, já começou apoiada num alicerce torto: na hierarquia militar, o ex-capitão e professor formado na escola de Educação Física do Exército se situa bem abaixo de seus ministros. Ao final de sua curta carreira militar, foi apenas por pouco que Bolsonaro conseguiu evitar uma demissão degradante. Depois de um suposto plano de explodir bombas para pressionar por maiores soldos no Exército (Bolsonaro negou participação e foi absolvido após um processo disciplinar), passou a ser visto como insurgente e causador de confusão.

O penúltimo presidente do regime militar, Ernesto Geisel, chegou a dizer em entrevista que Bolsonaro era um "mau militar". O atual mandatário se vinga dessa desonra até hoje, tratando generais de quatro estrelas como garotos insubordinados ou demitindo funcionários de alta patente quando um de seus filhos aponta o dedão para baixo.

Ainda assim, o destino e a futura credibilidade dos militares têm ligação estreita com a sorte do governo Bolsonaro. Por enquanto, nas pesquisas de opinião, as Forças Armadas têm boa reputação no país. Mas isso vai mudar.

É que o presidente não deixa dúvidas de que quer invalidar a divisão de Poderes. Desta maneira, surge a questão existencial sobre o posicionamento dos militares nesses ataques crescentes contra o Supremo Tribunal Federal e o Congresso.

Até agora, os militares mal criticaram Bolsonaro pela sua gestão irresponsável da pandemia do novo coronavírus ou pelos seus ataques aos outros Poderes. As declarações suavizadas de membros do Exército chegam atrasadas – e isso depois de o presidente ter aparecido diante de manifestantes que pediram de volta a ditadura pela segunda vez.

Repetidamente, porém, representantes das Forças Armadas legitimam as aparições de Bolsonaro com a liberdade de expressão. Atualmente, parece que foi o setor linha-dura que assumiu o comando da opinião entre os militares.

Por diversos motivos, generais não ousam demonstrar opiniões claras. De um lado, isso se deve ao fato de serem militares, que não contestam ordens. De outro, obviamente eles apreciam os privilégios e o acesso ao poder.

Mas há um motivo muito mais dramático: eles temem perder o controle sobre as próprias tropas. Bolsonaro goza de altíssima popularidade entre os soldados de baixa e média patente. Isso fica evidente quando o ex-capitão visita um quartel do Exército, onde seus fãs se concentram especialmente entre os soldados, e não no comando.

Especialmente no Brasil, o Exército é reflexo da sociedade desigual: as fileiras superiores têm altos privilégios, só comparáveis aos de juízes ou promotores públicos. Já a maioria dos soldados recebe soldos baixos, vive em quartéis degradados e tem equipamentos catastróficos à disposição.

Por isso, os militares precisarão decidir logo se vão continuar apoiando Bolsonaro em seu curso autoritário. É que, em algum momento, pode ser que eles não consigam mais impedir esse processo. O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, ele próprio filho de um general, disse há pouco com clarividência: "As Forças Armadas não preparam golpe, mas podem ser levadas a isso."

Subversão da ordem

“O Congresso é hoje um poder que está comprometido, que se compõe de uma minoria de privilegiados. Aquele Congresso não dará mais nada ao povo brasileiro. Por que não transferir a decisão para o próprio povo brasileiro, fonte de todo o poder?”

A declaração é de Leonel Brizola, no comício da Central de 13 de março de 1964. Cinquenta e seis anos depois, o fechamento do Congresso volta a ser pregado nas ruas do Brasil, mas com sinal trocado. Se no passado a violação da legalidade foi obra de uma esquerda que tentava atrair as forças armadas para uma aventura, hoje é a direita radical que tenta subverter a ordem com seu discurso contra dois poderes da República, Legislativo e Judiciário, e em defesa de intervenção militar.

O paralelo com 1964 é inescapável. Naquela época, o então presidente João Goulart subia no palanque ao lado dos “generais do povo”, entre eles o então ministro da Guerra, Jair Dantas Ribeiro. Hoje é Jair Bolsonaro que sobe no palanque para dizer que os militares estão com ele e com o povo.

Em comum, a tentativa de instrumentalização das Forças Armadas, uma instituição de Estado com funções constitucionais bem definidas como a própria nota do ministro da Defesa fez questão de ressalvar após o ato pró-intervenção militar do último domingo.


O golpe de 1964 foi ungido em nome da defesa da legalidade e do combate à subversão. Ironicamente, hoje quem subverte a ordem é uma direita fanatizada, que atenta contra cláusulas pétreas da Constituição, como a liberdade de imprensa.

Os métodos da direita subversiva guardam semelhanças com os “fasci de combattimento”, milícias formadas por Benito Mussolini em 1919 e que, três anos depois, foi a coluna vertebral da Marcha sobre Roma. Não há, por parte de Bolsonaro, uma só palavra de condenação das agressões físicas a jornalistas e enfermeiros. Ao contrário, ele insufla suas falanges, quando não parte para o diversionismo dizendo que elas são obra de infiltrados.

“A marcha sobre Brasília” está em curso. Seu propósito - pode ser - o auto golpe, que o presidente mal consegue disfarçar. Se vai conseguir arrastar as Forças Armadas para a aventura são outros quinhentos.

É de se estranhar o ensaio do presidente para substituir o comandante do Exército, general Edson Pujol "um soldado de comportamento exemplar" por um general mais sintonizado com seus planos.

Recuou momentaneamente dada às resistências do estamento militar. Além do mais, seu nome de sonhos para assumir o posto de comandante do Exército, general Eduardo Ramos, violaria um critério que tem sido observado ao longo de diversos governos, o da antiguidade.

O modus operandi de Bolsonaro é de não desistir. Recua para em seguida voltar com força até conseguir seu objetivo. Está aí o episódio do novo diretor-geral da Polícia Federal para confirmar. Ele não desistirá enquanto não demitir o atual comandante do Exército.

Ao contrário da afirmação do presidente, as Forças Armadas não endossam muitos de seus atos . Como vivemos tempos anormais elas foram obrigadas a se pronunciar por duas vezes em 15 dias. É alentador o fato de na nota dessa segunda-feira o general Fernando Azevedo e Silva ter reafirmado o compromisso das três armas com a Constituição, a democracia e a liberdade. O ministro da Defesa realçou o papel das Forças Armadas como instituições de Estado. Para bom entendedor meia palavra basta.

Sim, os militares concordam com a queixa de Bolsonaro em relação ao ativismo judicial que estaria presente em algumas decisões monocráticas de ministros do STF. Entre isso e o aval às incursões antidemocráticas do presidente há uma enorme distância. Até porque personalidades insuspeitas, como o ex- presidente Fernando Henrique Cardoso, tiveram o mesmo ponto de vista em relação ao episódio que inviabilizou a nomeação de Alexandre Ramagem para novo diretor da Polícia Federal.

A Constituição delegou ao STF o papel de poder moderador. Ele só será realizado de forma virtuosa se a Suprema Corte não for parte do contencioso, observando a independência e a harmonia entre os poderes. Vai nessa direção a sugestão do ministro Marco Aurélio Mello de que questões envolvendo os outros poderes sejam apreciadas pelo pleno da Corte.

Não se deve dar pretextos para esta direita avançar na subversão da ordem. A observância rígida da legalidade é hoje a bandeira a ser empunhada para evitar que 1964 se repita, dessa vez sob forma de farsa.

Hubert Alquéres

Faltaram os estilhaços

Escapou a Dante mais esta oportunidade de aumentar seu livro: fazer servir a certos criminosos uma salada de estilhaços de vidro
Murilo Mendes, "Estilhaços"

Três sugestões contra o vírus

Já deu para perceber que não há remédio para Jair Bolsonaro. Ele não dá trégua ao bom senso, não faz concessão ao contraditório, ignora apelo em favor do entendimento. Como mandar o presidente calar a boca é exagerar nos seus próprios termos, aqui algumas sugestões para superar o tormento.

1) Jornais, sites de notícias, emissoras de TV e rádio deveriam abandonar a cobertura das manhãs presidenciais no Palácio da Alvorada. Poderia se fazer um pool, e cada dia apenas um cinegrafista, um operador de áudio e um fotógrafo gravariam a saída diária de sua excelência, sem perguntas e sem transmissão ao vivo. Ninguém mais seria ofendido por Bolsonaro, e as bobagens que ele disser para a sua claque ficariam registradas. E, claro, só se publicaria o que de fato importasse.

As perguntas do dia seriam feitas em atos públicos no Palácio do Planalto ou em cerimônias oficiais do presidente. Bolsonaro continuaria falando tontices, podem ter certeza, notícia não faltaria. Só que sem o apoio da claque matinal não teria os arroubos agressivos habituais. Duvido que o capitão tivesse coragem de gritar com um jornalista, mandar ele calar a boca, em frente a uma plateia menos cega e tansa do que a das manhãs do Alvorada.

Um veículo e outro poderiam não topar o pool. Azar, seriam a minoria e reduzir o dano é muito mais importante. O pool seria com os que concordam que não dá mais para aturar as ofensas presidenciais diárias. Quem quisesse continuar dando palanque ao homem, que continuasse. Ajudaria também a deixar mais claro como cada um desses veículos se situa no cenário nacional.


2) Onde anda a oposição a Bolsonaro? Está certo, nem todo mundo é tão estúpido a ponto de se aglomerar durante uma pandemia, como fazem os apoiadores radicais do presidente, mas quase não se veem protestos (fora os panelaços) contra Bolsonaro. Manifestação como a dos enfermeiros, separados por distância regulamentar, como manda o figurino, devem ser repetidas? Talvez, mas o que não se pode negar é que hoje as ruas têm um só dono.

E a entrada do Palácio da Alvorada, que é um espaço público, também só tem um dono. Ou dois. São os adoradores da ditadura e alguns religiosos espertos que vão lá porque sabem que sua excelência vai ajoelhar e rezar com eles, e o resultado do vídeo que produzirão causará tremendo impacto na comunidade. Onde estão os bravos militantes que foram às ruas para defender o mandato da ex-presidente Dilma Rousseff? Onde anda a turma das jornadas de 2013?

Se opositores forem ao Alvorada haverá confronto? Pode ser, mas é o que já ocorre. Ou vocês dariam outro nome ao que se viu quando radicais atacaram enfermeiras e jornalistas? E pode-se fazer como na Esplanada dos Ministérios durante o processo do impeachment de Dilma, separando-se os lados. Do lado direito do portão, apoiadores. Do lado esquerdo, opositores. Ou ao presidente só se deve prestar loas?
3) A polícia precisa identificar e a Justiça processar os que carregam faixas com dizeres contra o Supremo Tribunal Federal e o Congresso Nacional ou a favor de uma intervenção militar e do AI-5. A liberdade de expressão permite que as pessoas digam o que bem entendem, mas sobre o que dizem e defendem serão sempre responsabilizadas. E atacar a Constituição é crime.

Vou dar um exemplo mais claro. Posso até chamar o 01 de ladrão em razão das rachadinhas que ele e o Queiroz operaram nos salários dos servidores do seu gabinete na Alerj, mas não vou porque o caso dele ainda está em andamento. Se o chamasse de ladrão, estaria exercendo meu direito de liberdade de expressão, mas ele poderia me processar por injúria e difamação porque não foi condenado. Sobre a liberdade de expressão repousa a responsabilidade.

E a resposta, afinal, estará sempre com a Justiça.

P.S.: Aliás, falando nisso, por que o presidente da Câmara, deputado Rodrigo Maia (DEM-RJ), ainda não acolheu nenhum dos muitos pedidos de impeachment que recebeu? Não é por falta de crimes de responsabilidade cometidos por Bolsonaro. Ele já somam quase uma dúzia.