Quem hoje no Brasil minimiza essas mesmas táticas autoritárias do presidente Jair Bolsonaro e de seus seguidores mais fanáticos, poderá despertar amanhã em um país algemado e um regime ditatorial.
Daí a responsabilidade daqueles que não dão importância às ameaças de Bolsonaro às instituições, alegando que são apenas bravatas e ameaças puramente verbais. Ou os que defendem que as instituições continuam fortes o suficiente para deter esses arroubos ditatoriais que se multiplicam a cada dia. Ameaças que, apoiadas por esse exército que vai sendo criado de seguidores mais fanáticos, começam a se materializar em violência física, como acabamos de ver contra agentes da saúde e jornalistas.
O momento é mais grave ainda porque o Brasil, e também o restante do mundo, atravessa a crise de uma pandemia que ameaça não só semear a morte pelo país, como também a quebra de toda a economia e a chegada de uma pobreza que é um terreno fértil para os anseios dos novos aprendizes de ditadores.
Bastaria um passar de olhos pelo início do fascismo mussoliniano para constatar as semelhanças com o momento em que vive o Brasil, onde as instituições se veem cada vez mais sitiadas e ameaçadas, e se começa a sentir gritos de guerra civil.
Como hoje o ex-capitão Bolsonaro, também na época Mussolini, presidente do Conselho de Ministros [primeiro-ministro], começou a lembrar ao Parlamento que, se quisesse, poderia prescindir dele e governar por decreto. Disse aos congressistas que ele poderia “fazer deste plenário surdo e cinza um acampamento de soldados”. E acrescentou, lembrando que estava começando a contar com seu exército de voluntários violentos, os fascios: "Eu poderia fechar este Parlamento e construir um Governo exclusivamente fascista. Eu poderia, mas não quis, pelo menos neste momento”.
Hoje sabemos que não eram simples ameaças vazias e retóricas do Duce, que acabou se tornando um dos ditadores mais perigosos da história e levou a Itália não só à bancarrota econômica, mas também à guerra e ao obscurantismo. E isso com a bênção de boa parte dos intelectuais da época e da mesma Igreja diante da qual Mussolini, que era ateu confesso, acabou ajoelhando-se.
Aqueles que hoje insistem que Bolsonaro é apenas um desequilibrado que vocifera sem convicção do que diz e que nunca arrastaria o país para uma aventura mussoliniana, deveriam recordar algumas afirmações feitas por ele antes ainda de vencer as eleições.
De acordo com artigo da Folha de S.Paulo em 3 de junho de 2018, Bolsonaro em 1999 chegou a defender um novo golpe militar. Segundo o então deputado, não havia solução para o Brasil “por meio do voto popular”. Mais ainda, em entrevista ao programa Câmera Aberta, questionado pelo entrevistador se fecharia o Congresso Nacional se um dia fosse presidente da República, ele respondeu: "Não há menor dúvida, daria golpe no mesmo dia! Não funciona! E tenho certeza de que pelo menos 90% da população ia fazer festa, ia bater palma, porque não funciona”.
Bolsonaro foi ainda mais longe. Na mesma entrevista, declarou que não acreditava que existisse uma solução para o Brasil por meio da democracia e defendeu a morte de “30.000”, incluindo civis e o então presidente Fernando Henrique Cardoso. O hoje presidente disse que “através do voto você não vai mudar nada nesse país, nada, absolutamente nada! Só vai mudar, infelizmente, no dia em que partir para uma guerra civil aqui dentro, e fazendo o trabalho que o regime militar não fez. Matando uns 30.000, começando pelo FHC, não deixar ele pra fora não, matando! Se vai morrer alguns inocentes, tudo bem, tudo quanto é guerra morre inocente.”
Bolsonaro sonhava, então, com uma ditadura de verdade, pois, para ele, a do Brasil havia sido pequena. Nem havia chegado a ser uma de fato, e ele sentia desgosto por não ter havido mais mortos na época, já que, segundo ele, não valia a pena torturar pessoas, teria sido melhor matá-las.
É importante recordar hoje essas declarações arrepiantes de Bolsonaro anos atrás, agora que está com o poder em suas mãos e que de novo volta a ameaçar fechar o Congresso e meios de comunicação.
Naquela ocasião o deputado Bolsonaro foi acusado de atacar os valores democráticos, mas o então procurador-geral da República, Geraldo Brindeiro, deu parecer favorável ao arquivamento de suas declarações, alegando que, como deputado, gozava de imunidade parlamentar. Voltaremos hoje a acreditar que suas ameaças, sendo agora presidente, são simples retórica amparada na liberdade de expressão que ele abomina e combate?
Não é possível analisar ameaças ao Congresso, ao Supremo Tribunal Federal e aos meios de comunicação sem levar em conta os antecedentes políticos do presidente. Já está claro que a cada dia ele dá mais um passo em seu projeto autoritário.
Querer minimizar as ideias de Bolsonaro contra as liberdades democráticas ou atribuí-las a um puro exercício de linguagem, como fez dias atrás o presidente do Supremo, José Antonio Dias Toffoli, é mais do que uma imprudência, é uma grave irresponsabilidade. Afirmar, como fez o magistrado comentando com entusiasmo a bravata pública e as ameaças às liberdades do Presidente, que “talvez a maneira de ele falar não seja a mais correta ou adequada. Pode ser que a forma prejudique o conteúdo”, é um eufemismo grave que parece querer ignorar o momento delicado e talvez sem volta atrás que a democracia está sofrendo neste país.
Esses eufemismos pronunciados pelo presidente da mais alta corte indicam que as forças democráticas responsáveis por vigiar e defender os valores intocáveis das liberdades ainda não entenderam o que aconteceu em todos os movimentos da história que acabaram em opressão e na negação dos valores do Estado moderno, e que produziram jorros de sangue inocentes. Todos eles começaram ameaçando a fazer o que acabaria se tornando realidade.
Os eufemismos são válidos quando se trata de aliviar a dor ou o horror, mas quando as liberdades são ameaçadas, quando os diferentes são ofendidos e atacados, quando se dá luz verde à violência dos grupos mais exaltados do ódio, é preciso ter a coragem de chamar as coisas por seu verdadeiro nome.
Não é forma, mas conteúdo quando Bolsonaro, diante da dor das mortes que o coronavírus está causando, exclama com cinismo: “E daí?” Não se trata de um problema de linguagem. Quando exalta a tortura, debocha de outros povos e ameaça com rupturas institucionais, suas palavras, dados os seus antecedentes já desde jovem, não podem ser tratadas como um mero exercício lexical.
Como escreveu Miriam Leitão em sua coluna de O Globo, as ameaças do presidente são “explícitas. Não cabem mais silêncios”. Neste momento, tentar minimizar as ameaças às liberdades por parte de Bolsonaro significa ser seu cúmplice.
Por tudo isso, a responsabilidade máxima pelo que poderá ser o futuro do Brasil, ante as ameaças que suas conquistas democráticas, que foram orgulho do mundo, estão sofrendo dia após dia, recai neste momento nas instituições que, segundo a Constituição, têm o direito e o dever de conter essa loucura de nostalgias fascistas.
E como já afirmei em outro artigo, isso tem que ser já, porque amanhã pode ser tarde demais. E então de nada adiantará chorar. E não se iludam, quem pagaria o maior preço seriam os mais desvalidos, os duplamente perdedores, como em todos os fascismos e nazismos que hoje estão tentando ressuscitar com sua carga de dor e sangue.
É isso o que os responsáveis de hoje, os que deveriam ser os guardiões da democracia, querem para o Brasil, que já sonhou com dias mais luminosos?
Fez bem o ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva, ao declarar que as Forças Armadas estão comprometidas “com a democracia" e que “as Forças Armadas estarão sempre ao lado da lei, da ordem, da democracia e da liberdade". Agora será preciso ver, de modo concreto, se as Forças Armadas, que estão massivamente no Governo Bolsonaro, lhe permitirão seguir em frente em seus ataques à democracia, sem tomar decisões concretas, já que estamos nos acostumando demais a constatar que as palavras não bastam quando a realidade se vai impondo cada dia mais ameaçadora e sombria.
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