terça-feira, 13 de junho de 2023

Pensamento do Dia

 


Desde quando, cara-pálida?

O fato de a Câmara ter votado um marco temporal para a demarcação das terras indígenas não me surpreendeu. As ideias de Bolsonaro de que os povos originários devem se integrar à sociedade nacional têm muitos adeptos.

Já visitei algumas distantes aldeias ianomâmis com deputados e militares e ouvi muitos comentários sobre o desconforto em que vivem, seminus na floresta. Como seria bom para eles se tivessem nosso padrão de consumo, andassem de carro, vestissem terno e gravata.

É muito difícil entender outras culturas e religiões, aceitar um tipo de felicidade que não é a nossa. Mas a Constituição de 1988, num momento de lucidez, garantiu que os povos originários têm direito à sua cultura, à sua religião e também às suas terras.


Por trás do desejo de que os indígenas tenham conforto e dinheiro, existe também escondida a cobiça por suas riquezas e suas terras. Não é por acaso que organizações criminosas usando pobres garimpeiros invadem as terras ianomâmis, caiapós e mundurucus, para citar apenas algumas.

Os deputados mais antigos sabem bem que a Constituição garantiu as terras aos povos originários para fazer uma justiça histórica. Não há referência no texto ao marco temporal, limitando a demarcação apenas a terras já ocupadas por eles em 1988.

Havia uma reflexão sobre a formação do país, mas também uma lembrança recente da ditadura. Muitos povos foram deslocados durante o governo militar. A Constituição não foi escrita para reforçar injustiças, e sim, num determinado nível, para repará-las.

O absurdo projeto aprovado na Câmara abre espaço para povos que estivessem lutando na Justiça por suas terras. Mas não é fácil lutar na Justiça quando se vive na floresta, tão distante do mundo branco.

Mesmo aqui no Sudeste, os caiçaras de Trindade só conseguiram manter suas terras ameaçadas porque um advogado se solidarizou com eles e, gratuitamente, conduziu sua luta. Era o velho Sobral Pinto.

Muita gente ainda pensa que o problema dos povos indígenas é apenas deles e de alguns fazendeiros que querem tomar suas terras ou de garimpeiros que querem levar seu ouro. É um pouco mais do que isso. Segundo todas as pesquisas, as terras ocupadas por eles são as mais preservadas na floresta, apesar dos ataques criminosos.

A presença dos povos originários significa um passo importante na luta contra as mudanças climáticas. Apesar de eles serem os principais protagonistas nessa luta, o desfecho dela interessa a todo o planeta que luta contra o tempo para evitar um avanço irreversível no aquecimento global.

A esperança de que o STF mantenha a Constituição tal como foi pensada e escrita em 1988 é mais que razoável. Na verdade, os ministros que pediram vista são os dois indicados por Bolsonaro, que pensam como ele. Isso significa que previram sua derrota e querem apenas ganhar tempo.

Tempo, tempo, tempo. Estão enrolados nesse marco temporal e sabem que não se muda a Constituição no escurinho da Câmara, numa votação simples, como se estivessem decretando mais um feriado.

É bom acentuar que a simples demarcação das terras é insuficiente. As ianomâmis foram demarcadas no início da década dos 90 e até hoje são invadidas. Visitei Raposa Serra do Sol, em Roraima, depois da demarcação e senti que era preciso muito mais.

O atual governo criou um Ministério dos Povos Originários. É preciso que seja muito mais que uma simples marca. Nosso papel de potência ambiental no mundo combina defesa da floresta e florescimento de muitas culturas.

Na Conferência do Rio, em 1992, no fórum alternativo no Aterro do Flamengo, foi esta a grande decisão: a diversidade de culturas é tão importante para a sorte do planeta quanto a diversidade da natureza.

Lula parece não entender que relação com Congresso mudou

O Brasil não mudou seu modelo político. Ele continua a ser o presidencialismo de coalizão. O sistema é presidencialista e multipartidário. A federação contém distintos arranjos partidário-eleitorais. A relação entre o voto presidencial e o voto para deputados é tênue, dada a diferença entre os colégios eleitorais, nacional para os presidentes e estadual para parlamentares.

Daí a quase impossibilidade de que o presidente eleito consiga maioria com o seu partido no Congresso, um dos elementos que tornam o presidencialismo de coalizão inevitável. Ao contrário do que ocorre nos Estados Unidos, no Brasil o presidente não governa sem maioria na Câmara e no Senado. Logo, precisa formar uma coalizão de partidos que lhe garanta condições de governar.

Todavia, o fato de um partido ser favorito na disputa presidencial influencia fortemente sua estratégia para as eleições parlamentares. Embora a relação seja muito mediada, um partido "presidencial" tende a ser muito competitivo nas eleições parlamentares, mas não a ponto de fazer a maioria.

O PSDB cresceu nas vitórias de FHC. O PT ganhou presença parlamentar robusta nas eleições de Lula. Ficou com a maior bancada em 2010, quando Dilma ganhou seu primeiro mandato. Manteve esta posição em 2014, embora perdendo cadeiras. O PSL inchou na onda Bolsonaro. Os partidos presidenciais estiveram entre as três maiores bancadas na Câmara durante os mandatos dos governantes que elegeram.

O modelo entrou em crise em razão de mudanças estruturais e comportamentais na política brasileira. A ruptura eleitoral de 2018 desestruturou o padrão que formou governo e oposição, de 1994 a 2014, e equilibrava o processo político.

Esse padrão se assenta em dois eixos partidários-eleitorais. Um eixo é bipartidário, no qual se disputa a Presidência da República. O outro é multipartidário, em que os partidos competem por cadeiras no Congresso, com o objetivo de maximizar seu ativo parlamentar para ingressar na coalizão governista, dependendo de quem seja eleito para o Planalto.

Demais candidatos a presidente, quando chegaram a ser competitivos, não conseguiram ultrapassar os 20% dos votos.

O eixo bipartidário, de vocação presidencial, se rompeu com o estilhaçamento do PSDB pela onda Bolsonaro. O espaço vazio deixado pelo ocaso dos tucanos complica bastante as relações governo-oposição. Não está claro que legenda o substituirá na disputa nacional com o PT. Se esse eixo não se refizer, as eleições presidenciais podem se tornar mais voláteis, com impacto negativo na formação das bancadas, na estabilidade política e na governabilidade.


A ruptura eleitoral também deixou o eixo multipartidário instável. Os partidos estão na fase de desalinhamento de um possível processo de realinhamento. Isso muda a correlação de forças no sistema.

O realinhamento partidário acompanha as mudanças no processo eleitoral. A proibição de coligações proporcionais e a cláusula de desempenho mais exigente reduziram a fragmentação partidária. Ela havia atingido seu ápice em 2018, quando o índice de partidos efetivos, medida tradicional de fragmentação, chegou a 17,4 para a Câmara. Em 2022, caiu para 9,2, retornando ao patamar de 2006.

É provável que a fragmentação caia ainda mais. Não por acaso todos os partidos estão fazendo campanha na TV para aumentar sua filiação e capilaridade.

A queda, contudo, não foi acompanhada pelo crescimento dos partidos mais competitivos, que perdem cadeiras desde 2010. As siglas relevantes estão com números medianos, da ordem de 35-40 deputados. Somente o PL, com 99 cadeiras, e o PT, com 68, têm bancadas relativamente robustas.

A redução do tamanho médio das bancadas, de 2014 a 2022, fez com que o MDB, antigo PMDB, perdesse a efetividade como partido-âncora da coalizão encabeçada pelo PT nos dois primeiros governos Lula, ajudando a ampliar as alianças petistas de agora ao centro.

Os partidos-âncoras servem como nódulos de atração no espaço "ideológico" da coalizão. Fernando Henrique teve o PFL como âncora de centro de sua base. Alcançava maioria de quase 70% do Congresso apenas com o PSDB, PFL e MDB.

Depois o PFL renomeou-se Democratas e, em colapso, fundiu-se com o PSL, virando União Brasil, que não reúne as condições mínimas de liderança e composição para atuar como âncora de centro numa coalizão.

No início dos anos 2000, Lula formava maioria com seis partidos. O PT era o âncora à esquerda, e o MDB, ao centro. No governo Dilma, o MDB continuou como âncora ao centro da coalizão, mas foi se deslocando para fora e para a direita, até o rompimento, em 2016, e o impeachment.

Com essas mudanças estruturais, a governabilidade ficou mais penosa e mais dependente do desempenho macroeconômico do governo. Neste terceiro mandato de Lula, já se vê que o MDB não tem mais a mesma musculatura política para ter eficácia como âncora. Dividido, não consegue equilibrar a coalizão, abrindo seu escopo para partidos ao centro —e a coalizão, assim, tende a pesar para a esquerda, perdendo apoio.

Afora isso, o Legislativo ficou mais poderoso. Outro conjunto de mudanças estruturais alteraram as relações do Executivo com o Congresso. As restrições à edição e reedição de medidas provisórias, assim como o prazo para perda de validade, reduziram o poder de decreto do presidente.

A pressão do prazo sobre o governante para que ceda ao Legislativo é maior do que o incentivo aos parlamentares para que votem as MPs. Foi o que vimos na votação que definiu a nova composição de ministérios.

A faixa impositiva das emendas parlamentares ao Orçamento tem aumentado, diminuindo a margem de manobra presidencial no manejo da coalizão. O orçamento secreto, uma deformação das emendas de relator que tinham objetivo meramente contábil, criou a demanda dos parlamentares por liberações mais discricionárias e ágeis de recursos orçamentários. A estrutura de preferências dos parlamentares na busca de recursos e cargos mudou e ficou mais exigente.

Nesse cenário, partidos medianos e pequenos, para melhorar o acesso a recursos de poder distribuídos proporcionalmente ao tamanho das bancadas, uniram-se em grandes blocos. A eles se juntam as federações, formadas como alternativa às coligações proibidas nas eleições proporcionais.

Blocos e federações são, tecnicamente, coalizões. Se um bloco ou federação passa a fazer parte da coalizão de governo, a chamada "base do governo", surgem coalizões dentro de coalizões. Aumentam a heterogeneidade e a complexidade do manejo da base, assim como as diferenças na hora de votar.

Os blocos partidários diferem das frentes temáticas, como a Frente da Agropecuária. As frentes são capazes de votar unidas nos projetos que afetam diretamente os interesses ligados a seu tema. No mais, tendem a dispersar o voto. Já os blocos têm maior dificuldade para encontrar temas de interesse comum e costumam se dividir internamente com maior frequência.

Outra consequência das transformações é o aumento do poder do presidente da Câmara e, em menor escala, do presidente do Senado. A articulação entre o presidente da República e os presidentes das Casas do Congresso passou a fazer parte necessária do instrumental da governança. As lideranças no Congresso dizem ao presidente que ele precisa ter uma base mais sólida. Não é tarefa fácil no contexto atual —e talvez nem seja factível.

As coalizões se tornaram muito líquidas com as mudanças, o que exige mais do governo, tanto sob a forma de mais cargos e verbas, quanto em moedas simbólicas, que os políticos definem como "prestigiar". Por exemplo, dar demonstrações de apreço e criar a imagem de que o parlamentar tem influência junto ao Planalto.

Isso reforça a relação do parlamentar com os cabos eleitorais. Para o Planalto, é preciso conversar muito, mostrar comprometimento com prioridades bem definidas e abrir espaço para compromissos nos demais campos.

Também aumentou o número de parlamentares com pautas antagônicas às do governo. O centrão e a extrema direita têm muitos representantes de grileiros, garimpeiros e madeireiros, por exemplo. Outros estão ligados a empreiteiras com interesses em hidrelétricas, linhões e rodovias que podem condenar a Amazônia ao colapso ecossistêmico. Em suma, coalizões líquidas representam mais pressão e mais risco para os governos.

Lula parece ainda não ter entendido a natureza da frente democrática que o elegeu. Ela não se limita às forças que subiram em seu palanque. A frente se estende aos partidos que estão na sua coalizão no Congresso.

O governo conta com maioria nominal de cerca de 280 deputados, mas isso é uma miragem. O tamanho real da coalizão de Lula, a que lhe é fiel, está perto de 150 deputados. O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), tem insistido neste ponto, em declarações públicas e em suas conversas com Lula.

Nos partidos que já compunham seus governos anteriores, a correlação de forças internas mudou. Há lideranças novas com tanta ou mais influência do que aquelas com as quais Lula conviveu no passado.

O colégio de líderes ficou muito poderoso. A agenda de Lula terá que ser compacta, algumas prioridades que consiga negociar, além dos poucos projetos que Arthur Lira considera "de interesse do Brasil".

O ministério não reflete, nem representa, a frente que se dispôs a apoiá-lo. Lula não parece ter entendido a maior complexidade do cenário atual, em relação aos anos de seus dois primeiros mandatos. O Brasil e o mundo mudaram muito, e os problemas globais e nacionais aumentaram e se tornaram mais difíceis de resolver.

A continuidade de coalizões líquidas e disputas presidenciais voláteis, sem um eixo partidário sólido, pode comprometer a governabilidade. Se estivermos em transição para uma nova configuração do sistema partidário, esta pode ser uma crise conjuntural.

Quando o novo sistema se estabilizar, os partidos tendem a ficar mais fortes, a fragmentação cairá mais, as bancadas aumentarão de peso. O realinhamento partidário e a recomposição do eixo de disputa presidencial produziriam novo equilíbrio dinâmico, reduzindo os riscos para a governabilidade, no médio prazo.

Estudo português explora relação entre redes sociais e solidão

Quanto mais tempo as pessoas passam ligadas a redes online, como o Facebook, o TikTok, o Reddit e o YouTube, mais sós se sentem – mesmo que mantenham relações sociais satisfatórias fora da Internet e interajam com várias pessoas. Esta é uma das conclusões do estudo Solidão e as Redes Sociais, conduzido em Portugal pelo Instituto Universitário de Ciências Psicológicas, Sociais e da Vida (ISPA) e pelo Observatório Social da Fundação La Caixa.

A missão: perceber a prevalência de sentimentos de solidão num mundo “apinhado” em que se torna cada vez mais fácil contactar com outras pessoas através da esfera digital. Sem acompanhamento, a solidão torna-se um “factor de risco para distúrbios mentais, doenças físicas e mortalidade precoce”, realçam os investigadores.

"Os utilizadores de redes sociais não estão mais protegidos de sentimentos de solidão e, inclusivamente, até estão mais em risco de se sentirem sós, principalmente se a utilização for muito frequente e compulsiva”, explica ao PÚBLICO o investigador Rui Miguel Costa, que é um dos autores do trabalho do Centro de Investigação William James, no ISPA. "É válido dizer que, em média, as pessoas que utilizam as redes sociais estão mais sós."


Os resultados baseiam-se em inquéritos online respondidos por cinco mil participantes portugueses. A amostra final inclui uma proporção de participantes semelhante à população portuguesa em termos de sexo, idade e área de residência. Apenas 218 (4,4%) das pessoas inquiridas não utilizavam algum tipo de rede social.

O nível de solidão foi avaliado com base na Escala de Solidão da Universidade de Los Angeles (UCLA – Loneliness Scale), desenvolvida nos anos 1990 para avaliar a frequência com que uma pessoa se sente “desligada” de outros com base em 20 questões, como “Com que frequência se sente excluído?” ou “Com que frequência se sente parte de um grupo de amigos?”

Além das tradicionais redes, como o Facebook ou o Instagram, os investigadores consideraram plataformas de trabalho, como o Linkedin, fóruns online como o Reddit, sites de partilha de vídeos e canais de mensagens.

“Todas têm em comum porem em contacto um grupo de pessoas que assim podem comunicar entre si. São precisamente algumas características desta comunicação que poderão levar à solidão”, justifica Rui Miguel Costa. “Mais do que uma rede social em particular, são as características da utilização que podem levar à solidão”, continua o especialista. “Por exemplo, muita exposição a conteúdos que levam a pessoa a sentir-se inferior, ou então uma grande ânsia de ter uma atenção por parte de outros nas redes sociais que nunca chega.”
O cérebro humano evoluiu para sentir conexão social quando os outros estão fisicamente presentesRui Miguel Costa - ISPA

As próprias características da comunicação online, como a falta de contacto físico, também são relevantes. “O cérebro humano evoluiu para sentir conexão social quando os outros estão fisicamente presentes; por isso a comunicação via ecrãs nunca preencherá totalmente a nossa necessidade de afiliação”, teoriza o investigador do ISPA. “Um grupo só pode ajudar na sobrevivência dos seus membros se estes estiverem fisicamente presentes. Tal como o medo evoluiu para nos afastar do perigo, a solidão evoluiu para nos motivar a estar junto de outros”, continua Rui Miguel Costa. “Com a comunicação por ecrãs, o sinal de alarme da solidão continua a tocar.”

As conclusões do estudo do ISPA não são ímpares – há anos que vários investigadores tentam explorar a relação entre redes sociais e a solidão. Uma revisão de literatura de 2021, com base em 52 estudos sobre o tema, publicada na revista académica Computer in Human Behaviour Reports, nota que um maior uso das redes sociais está associado a sentimentos de ansiedade social e a solidão. Um pequeno estudo de 2018 da Universidade da Pensilvânia, nos EUA, nota mesmo que estudantes que reduziram o uso de redes sociais (como o Facebook, Instagram e Snapchat) para 30 minutos diários apresentaram uma redução nos sintomas de isolamento e depressão.

“Há alguma investigação que mostra que reduzir o uso das redes sociais leva a melhorias do estado de humor, mas ainda é pouca; é necessária mais, incluindo em Portugal, onde ainda não foi realizado nenhum estudo deste género”, reflecte o investigador Rui Miguel Costa. No futuro, a equipa espera perceber que outros sentimentos negativos estão associados às redes sociais e o que os desencadeia. “São necessários estudos que nos permitam clarificar mais em detalhe quais os mecanismos que fazem com que as redes sociais possam levar à solidão e porque é que podem fazê-lo mesmo em pessoas que relatam que têm relações pessoais satisfatórias.”

Educação é um negócio da China

O professor Luiz Gustavo Nússio, ex-diretor da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz da Universidade de São Paulo (Esalq-USP) e titular do departamento de Zootecnia há quase três décadas, surpreendeu-se certo dia quando, ao entrar em um táxi em Pequim, o motorista, ao observá-lo atentamente, perguntou-lhe: “O senhor é professor?” Nússio estava de terno e gravata.

Naquele dia, ele sentiu na pele o que já havia apreendido após a mudança para o país asiático, onde vive há nove meses: o profundo respeito que os chineses nutrem pelos profissionais da educação, em especial, professores universitários. No Brasil, ao entrar em um táxi ou carro de aplicativo trajando terno e gravata, o motorista provavelmente perguntaria se ele era advogado, executivo de empresas ou político.

“A China revelou-se para mim e para minha família uma sociedade muito educada, são acolhedores, gentis”, disse Nússio em conversa com a coluna. “Estamos aprendendo sinais importantes da cultura chinesa: um deles é o respeito ao professor universitário”.

Segundo o professor, que é engenheiro agrônomo de formação, esse respeito às vezes soa excessivo, mas está relacionado com princípios que a China segue, como o de que “uma pessoa sábia tem valor na sociedade”.


O professor é uma figura tão respeitada na China, que Mao Tsé-Tung, líder da revolução chinesa e fundador da República Popular da China, declarou ao jornalista americano Edgar Snow, em 1965, que passara a deplorar o culto à personalidade. Disse que todos os títulos concedidos à sua pessoa deveriam ser erradicados, mas gostaria de conservar apenas um: o título de “professor”.

É fato que durante a Revolução Cultural na China, nos anos de 1960, sob a liderança de Mao, o governo fechou universidades, exilou professores e queimou livros. Mas essa página foi virada, e a realidade atual deveria inspirar o Brasil, que vivencia o outro extremo na educação.

Na semana passada, brasileiros assistiram perplexos às cenas em que um adolescente de 13 anos matou a facadas uma professora da escola estadual Thomazia Montoro, em São Paulo.

Não foi um caso isolado. Um levantamento de pesquisadores da Unicamp e da Unesp mostrou que a média de ataques a escolas que era a cada dois anos, passou a ser mensal.

Num ambiente de violência que se agravou com a pandemia, a maioria das escolas públicas agoniza com estrutura deficiente, salários humilhantes e ausência de assistência psicológica. Nesses locais, alunos de famílias vulneráveis tendem a reproduzir o clima de agressividade que vivenciam em casa.

Espera-se que nesse momento de estreitamento dos laços do Brasil com a China, mais do que acordos comerciais, um saudável intercâmbio também viabilize mais troca de experiências na área de educação. Não apenas em conteúdo, mas no aspecto cultural, na valorização dos professores.

Luiz Gustavo Nússio coordena uma “joint college” entre a Esalq-USP e a China Agricultural University - duas das cinco melhores escolas de agronomia do mundo. Trata-se de uma pós-graduação em nível de mestrado, de dupla titulação, onde os alunos brasileiros e chineses recebem aulas em inglês de professores das duas nacionalidades. São duas linhas de pesquisa: agronomia e melhoramento de plantas, e administração pública ligada à agricultura.

O êxito da parceria entre a USP e a escola de agricultura chinesa levou o governo chinês, principal financiador do programa, a expandi-lo, de modo que as duas linhas de pesquisa devem se transformar em quatro a partir de 2024.

Num cenário de intensificação dos negócios na área de agricultura e pecuária entre Brasil e China, Nússio aponta a oportunidade e a estratégia do programa entre a instituição brasileira e a chinesa: “esse programa busca treinar pessoas para um ambiente qualificado no futuro, fazendo com que as negociações entre Brasil e China, especialmente na área de agricultura, possam ser melhoradas com a chegada de um pessoal que tem treinamento qualificado para esse ambiente”.

Em paralelo, outro projeto em funcionamento em Pequim reúne a Coppe - Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-Graduação e Pesquisa de Engenharia, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e a Universidade de Tsinghua, que mantêm o China-Brazil Center na capital chinesa.

Na semana passada, o acordo de cooperação entre as duas instituições, em vigor desde 2010, foi renovado pela quarta vez. Trata-se deu um acordo de cooperação científica e tecnológica, que envolve áreas como transferência de tecnologia, mudança climática, cidades inteligentes, mobilidade, entre outros. O enfoque para os próximos quatro anos é preservação de florestas, clima, bioenergia e bioeconomia.

Dois projetos se destacam: a criação de uma escola internacional para capacitação de profissionais na área de mudanças climáticas. E o desenvolvimento da cadeia do bambu, lembrando que o Brasil possui uma das maiores florestas dessa planta do mundo.

Nússio explica que o convênio entre USP e a escola de agricultura chinesa também implica a troca cultural. “A China e o Brasil se importam que o aluno seja qualificado tecnicamente em alto nível, mas querem que ele também consiga entender a outra cultura, e isso seja um facilitador, uma espécie de linguagem universal”, observou. Segundo Nússio, compreendendo a cultura, a gente tem facilidade de entender uma série de valores do outro lado”.

Em suma, Brasil e China têm uma pauta de acordos comerciais que talvez seja a mais profícua do mundo. Mas do ponto de vista de integração cultural, científica e acadêmica, ainda fazem pouco juntos. “A distância geográfica é um problema, mas quando brasileiros e chineses se conhecem, paulatinamente, vão entendendo que são países amigos e têm muito em comum”, concluiu o professor.