segunda-feira, 11 de maio de 2020

Enfim uma 'descoberta'

Não é mais necessário insistir no fato de que o Governo Federal utiliza referências do nazismo. Quem tinha dúvidas já não as têm. Se segue no barco, compactua, pelo menos em parte, com esse ideário
Instituto Brasil-Israel sobre citação nazista usada em propaganda do governo

Responsabilidade militar

O presidente Bolsonaro, ao assumir, manteve uma política de confronto incessante com seus adversários, como se todo aquele que a ele se opusesse fosse um inimigo a ser abatido. Progressivamente, à maneira de Tânatos, o deus da morte na mitologia grega (editorial do Estado de 25/4), ou a pulsão de morte segundo Freud, fez a destruição reger as relações políticas. Amigos e inimigos passaram a caracterizar suas posições, ambos constituindo uma definição volúvel segundo as circunstâncias.

De inimigos objetivos da campanha (Lula e o PT) passou o mandatário para os políticos em geral, para o “sistema”, para os velhos amigos tornados inimigos, como generais do mais alto prestígio, e, enfim, as próprias instituições democráticas, como o Supremo Tribunal e o Legislativo. O resultado foi o isolamento presidencial, recluso em sua própria família, recorrendo, em manifestação recente, a um suposto apoio das Forças Armadas ao seu governo.

Ora, as Forças Armadas devem obediência exclusivamente à Constituição e à defesa nacional. Constituem uma instituição de Estado, não estão a serviço de nenhum governo. Note-se que desde a redemocratização do País, também por elas liderada, juntamente com os adversários de então, como o MDB, e aliados, como o novo PFL, foram o sustentáculo deste mais longo período de democracia no Brasil.

Se observarmos mais atentamente a composição militar do governo, constataremos que as Forças Armadas não constituem um bloco único, há oriundos do Exército, da Marinha e da Aeronáutica, sendo esta última a mais afastada do governo, enquanto o primeiro é o mais próximo, com a segunda ocupando posição intermediária. Mais particularmente, generais do Palácio do Planalto são militares que fizeram parte de sua “turma”. Isso significa também que a sua “turma” não é necessariamente a de outras turmas do Exército, muito menos da Marinha e da Aeronáutica.


Note-se que, aos olhos da sociedade, os militares são responsáveis pelo atual governo e seus fiadores, ela não faz a distinção entre militares da ativa e da reserva, com destaque para o Exército. Isso significa, politicamente, que sua responsabilidade é ainda maior. Seria tentado a dizer que, para além dos fanáticos militantes das redes sociais, eles constituem sua única base de sustentação. Se houvesse uma mudança de posição, o presidente Bolsonaro não teria condições de permanecer no poder.

As redes sociais são influenciadas e tuteladas pelo dito gabinete do ódio, extensão do clã familiar, em cujas mãos parece estar o destino do País. São da estrita confiança presidencial, participam das decisões. A anomalia é gritante! Estamos aqui totalmente afastados do exercício republicano do poder.

Pior ainda, o clã presidencial tem dado mostras de que manda no governo e no Palácio do Planalto. Não apenas indica ministros, como os controla, decide até quando devem ou não ficar. Generais que o confrontaram foram banidos do governo, após indignos ataques nas redes sociais. Estamos numa situação que diria patológica: os filhos do presidente atacando ou, mesmo, mandando em generais! Os descontentes que se retirem voluntariamente ou serão obrigados a sair.

Atualmente, o País enfrenta uma crise epidêmica, uma crise econômica e uma crise política. A primeira, potencializada pela conduta presidencial, dando exemplo do que não deveria ser feito, em desprezo pelo bom senso e pela ciência. Governadores atuam responsavelmente no sem-rumo da liderança presidencial. A situação da economia já não era boa antes da epidemia, com as reformas avançando muito lentamente, pela ausência de diálogo com o Legislativo. E, agora, a crise política, conduzida “exemplarmente” pelo presidente e seu clã! Em apenas duas semanas dois ministros foram “renunciados”, Mandetta, por fazer um trabalho muito bom no combate ao coronavírus, seguindo diretrizes científicas e da OMS; e Moro, por não concordar com as ingerências presidenciais na Polícia Federal. Muita luz ofusca o presidente.

Ainda mais isolado, o presidente redobra a aposta no ataque: o Supremo torna-se o novo inimigo, após as contundentes acusações do ex-ministro da Justiça, símbolo da Lava Jato e da luta contra a corrupção. Ele recorre a alguns políticos do Centrão, os mesmos que ontem atacava como representantes do “toma lá dá cá”, na tentativa de evitar o impeachment. Destrói, assim, a sua própria narrativa!

A situação é crítica. Uma alternativa seria o presidente “converter-se”, isto é, afastar o seu clã dos assuntos governamentais, destituir ministros ideológicos, combater o coronavírus ao lado da ciência, usar o diálogo e a moderação. Outra, os militares mais diretamente engajados retirarem o seu apoio, com as Forças Armadas deixando claro que não pactuam com a polarização atual. Exerceriam a responsabilidade que lhes cabe, dada a sua participação. Ou o impeachment como solução última.

A pior saída seria nada acontecer: um governo incapaz de seguir com o seu programa de reformas e o presidente, um “pato manco”, no meio da algazarra de seus filhos.

Bolsonaro perde bonde do corona

Confesso que não fiquei tão perplexo com a ida de Bolsonaro ao STF levando um grupo de empresários. Acredito que, tanto quanto eu, ele não esperava nenhuma solução para o problema que levantava: a volta às atividades econômicas.

O objetivo de Bolsonaro era mostrar que estava trabalhando pela economia. Para isso, levou uma equipe de TV e transmitiu o encontro ao vivo, para surpresa do próprio STF. Um golpe de propaganda, nada mais. Interessante como Bolsonaro consegue perder os bondes nessa luta contra o coronavírus.

Perdeu o primeiro, quando se isolou, negando a importância da pandemia, criticando o trabalho de governadores e prefeitos. Uma nova oportunidade de liderança e alinhamento se abriria para ele, no processo de volta às atividades. Compete ao presidente unir governadores e prefeitos em torno de um detalhado plano de retomada.

Dois dias antes de Bolsonaro ir ao Congresso, Angela Merkel reuniu as lideranças regionais para definir e modular um plano de volta.

Esses planos são complexos. Não adianta pedir ao Tofolli, porque ele não tem. Implicam a definição dos dados necessários, como número de casos, disponibilidade de hospitais, capacidade de testar.

Implicam também um redesenho das escolas, das fábricas, dos escritórios. Na Alemanha, técnicos foram às escolas para redefinir o espaço, inclusive determinar o novo lugar dos professores na sala.

Em alguns países, houve escalonamento de turmas escolares; em algumas regiões, normas para restaurantes ao ar livre.

Normas para o funcionamento de teatros e casas de espetáculo também estão sendo trabalhadas nos detalhes. Os intervalos, por exemplo, serão suprimidos para evitar aglomeração. O próprio futebol na Alemanha volta no dia 16, mas com portões fechados, sem plateia.


Bolsonaro até o momento apenas falou contra o isolamento. Foi incapaz de apresentar um plano, mesmo um pobre esboço, como Trump.

Essa pressa acaba se estendendo a outros setores. O governador de Brasília queria que a final do campeonato carioca fosse jogada no Estádio Mané Garrincha mesmo com um hospital de campanha instalado ali.

Não sei a que atribuir esta loucura. Nós temos uma singularidade cultural, que é a improvisação. É inegável que ela tem qualidades, no compositor que escreve seus versos num botequim, nos profissionais que driblam a falta de recursos para alcançar um certo resultado.

Na formulação de uma política nacional e solidária contra o coronavírus, é preciso liderança e capacidade de planejamento. Bolsonaro trabalha por espasmos, acorda pensando na briga nossa de cada dia, a quem vai combater e orientar sua galera a chamar de lixo.

O ministro da Saúde tem dito que o Brasil é um país diverso. Todos concordam. Mas é precisamente por ser diverso que necessita de um plano com modulações.

Basta olhar no mapa para ver quantas cidades brasileiras não tiveram casos de contaminação. Até elas precisam ser orientadas a rastrear com rigor caso apareça alguém contaminado por lá.

Na verdade, é um projeto que se enquadra nessa expressão muito usada de nova normalidade. Os Estados Unidos viveram algo parecido de longe com isso, depois do atentado de 11 de setembro.

As circunstâncias agora são diferentes. O redesenho da sociedade não se faz diante de inimigos humanos, mas ameaças biológicas que podem nos dizimar. A etapa final do planejamento seria concluída com a existência de uma vacina, acessível a toda a população.

Mas, no entanto, a existência de uma pandemia como essa abriu os olhos de muita gente para a possibilidade de outras. Algumas delas podem ser favorecidas pelo desmatamento.

Tive a oportunidade de sentir isso quando cobri a volta da febre amarela. Aparentemente, a destruição de algumas áreas de mata acabou expondo os trabalhadores agrícolas e algumas populações rurais.

Estamos trabalhando com algo muito sério para o futuro das crianças. Se não houver uma transformação cultural que nos faça pensar coletivamente e nos convença da necessidade de planos cientificamente adequados, vamos ser uma presa fácil.

Nos anos de política, lamentava que o Brasil era um país onde o principio de prevenção não pegou. Não esperava um governo que, além de imprevidente, desprezasse a ciência. Tudo do que o coronavírus gosta.

Lerdeza fatal

Mário Henrique Simonsen ensinou que o sistema social menos imperfeito é o que sabe corrigir mais rápido seus erros. Chamava a atenção para um aspecto novo no mundo, lá nos anos 1970: não mais o grande a engolir o pequeno, mas o veloz a devorar o lerdo.

A pandemia escancara como viemos perdendo tempo pelos anos afora e mantendo esta desigualdade escandalosa. Nas reformas estruturais, por exemplo. Sempre adiadas e combatidas por corporativismos que impedem seu alcance na redistribuição de oportunidades. A eleitoral e a tributária empacaram. As que foram aprovadas, tímidas, sofreram com espertalhões garantidores de privilégios e enxertadores de jabutis.


Podíamos ter distribuído a prosperidade quando crescíamos. Agora a urgência do vírus exibe o abismo social acintoso. É inaceitável manter isenção fiscal para igrejas e empresários selecionados. Hipersalários para superfuncionários. Ou tolerar a inadimplência de ocupantes de imóveis da União (que chega a quase um bilhão de reais).

Somos o país dos cartórios mas o número de gente invisível e mal documentada se revela assustador. Sem comprovar o voto obrigatório, o CPF emperra. Como evitar fraude e ao mesmo tempo distribuir o auxílio emergencial que, num esforço incrível, se tenta fazer chegar a quem precisa? Como ser eficaz?

Engenheiros, cientistas e técnicos criam equipamentos e aplicativos para salvar vidas, em tempo recorde. Mas o governo nega recursos, combate a ciência e as universidades.

Evidencia-se que nossa democracia não desenvolveu mecanismos ágeis para correção célere de condutas predatórias de presidente. Sem freios, ele desafia recomendações sanitárias, agride a imprensa, incentiva desmatamento e invasão de terras indígenas. Tenta confundir militantes e milicianos com militares, constrangendo estes. Mas vamos empurrando o limite com a barriga. Fica para consertar depois. Será irreparável, se o mal estiver feito. Seguimos devagar, quase parando. Só a pandemia acelera e nos adverte que inércia pode ser fatal.

Imagem do Dia


O ano do Estado da morte

Os mortos de 2020 não são os da ditadura, enfiados em valas desconhecidas e assassinados por torturadores ocultos em registros escondidos ou destruídos. Os de hoje têm cara, identidade e local identificado. Também seus algozes - no momento livres, leves e soltos brincando com o sofrimento nacional - são por demais conhecidos para tentarem se eximir da mortandade.

Os corpos não serão jogados no colo apenas de um desvairado, que instituíram como salvador da pátria, para expurgar a corrupção, reorganizar a economia e redemocratizar o existente Estado Democrático.

Muitos, bem mais do que se pensa, também serão responsabilizados pelo ano da peste brasileira. Há os que protagonizaram a tragédia e seus coadjuvantes por todo o Executivo e mesmo grande parte do Legislativo e Judiciário. Não estão limpas as mãos na saúde, na cultura, na agricultura, nos direitos humanos (argh!), na economia, na educação, nas instituições de Estado, em todos os gabinetes que se tornaram de ódio. Nem as fardas sairão incólumes, sujas com a terra de cemitério. Sejam os que gargalham sobre caixões, ou silenciam coniventes, serão os mortos-vivos que perambularão pela história marcando com sal suas descendências.

Poderá não existir um julgamento de Nuremberg, mas no futuro nenhum taifeiro vai jogar as ossadas para debaixo do tapete. As fotos estarão lá e as valas comuns receberão monumentos de homenagem aos traídos pelos tais patriotas.

Nunca se matou tanto no país sob a desorganização governamental e a orientação inconsequente de um ex-capitão, como o ex-cabo austríaco Adolf Hitler quase dizimou a Alemanha. Ainda nunca na história deste país toda a população sofreu tanto de desemprego, fome e miséria, em meio a estrondosa ganância de privilegiados funcionários de Estado. Entra para a história 2020 como o ano em que o Brasil matou o Brasil.
Luiz Gadelha

O retorno da ‘Aischrópolis’, a cidade feia, e sua democracia agonizante


Corriam os anos do Século de Ouro de Atenas, entre 461 e 429 a.C., quando Péricles, arconte eleito pela Assembleia do Povo (Ekklesía), fez prosperar na polis a arte, a filosofia, a literatura e, especialmente, a política, como “a arte de discernir”. Era a época da chamada Callípolis ateniense, a “cidade bela”, regida pela beleza (kallos), a razão (logos), a justiça (díke) e a democracia (demos, povo – krátos, governo).

Péricles se preocupava não só em proteger Atenas de futuras invasões bárbaras, como também em promover o florescimento civil, artístico e intelectual da polis. Por isso, encomendou a seu amigo Fídias a construção dos principais monumentos e obras arquitetônicas, como o Partenon, os Propileus e as estátuas de Atena, senhora da cidade. Nesse então, Anaximandro e Sócrates se encarregavam da paideía (educação) no ginásio, enquanto que no théatron, Ésquilo, Sófocles, Eurípides e Aristófanes refletiam a vida do demos na tragédia e na comédia. Esses espaços cívicos constituíam o acesso ao conhecimento dos politēs (cidadãos ou homens livres) nesta democracia primordial. Contudo, era fundamentalmente no teatro, e durante as Grandes Dionisíacas, que não só os homens livres tinham o direito de participar, mas também os metecos (estrangeiros), as mulheres e os escravos. Era ali onde se exercia a verdadeira democracia, em que todos podiam se sentir parte da isonomia, que procuraram em seus inícios Sólon e Clístenes, graças ao fato de que o Estado custeava os ingressos para quem não podia pagar, garantindo assim que todos pudessem ter acesso a essa necessária e rica cultura intelectual.

No entanto, para realizar essas obras, Atenas cobrava onerosos impostos de seus aliados da Liga de Delos, que pagavam para evitar um eventual ataque inimigo. Foi assim que começou, em meados do século V a. C., uma moléstia nas colônias pelo alto custo de sua proteção. Isso provocou, em 431 a. C., a ruptura da liga e o rompimento com Esparta, começando assim a Guerra do Peloponeso, que durou até 404 a. C.

Esparta via com maus olhos a política de “direitos iguais” que Péricles promovia em Atenas, pois seu sistema de governo era o oposto, uma severa oligarquia na qual poucos tinham direitos. Mas a polis espartana temia, sobretudo, sucumbir ante o poderio dessa Callípolis democrática, porque algumas colônias da Liga do Peloponeso também começavam a se sublevar, pretendendo se unir a Atenas. O rei de Esparta, Arquidamo, pressionou por todas as vias os atenienses até que entraram em guerra, pois não podia permitir que a arrogante Atenas tomasse o controle da Hélade.

Péricles, sabendo os riscos que corria, aceitou a guerra com a convicção de que Atenas “devia ser a escola da Grécia” (Tucídides, II: 41), convencendo com essas palavras a Ekklesía, apesar do eclipse solar que aterrorizou os habitantes da Ática em agosto de 431 a. C. O arconte teve que aproveitar seus conhecimentos astronômicos –ensinados por Anaximandro– para convencer os atenienses de que o fenômeno não era presságio de desgraça e que a polis seguia sendo a favorita do Olimpo.

A intenção de Péricles não era fazer uma estratégia ofensiva, mas defensiva: atacaria só se fosse atacado. Para isso, transferiu todos os habitantes rurais da Ática para a cidade amuralhada para protegê-los do ataque terrestre dos espartanos, mas não se preocupou em lhes dar um teto onde viver na polis. Estes, amontoados nas ruas e nos templos, sofreram em pouco tempo as inclemências de uma epidemia sem igual, que pôs em xeque a poderosa Callípolis, transformando-a na feia e espantosa Aischrópolis (de aischrótes, feiúra, e polis, cidade-estado).

Embora Atenas ganhasse as primeiras escaramuças da guerra, ao começar o verão de 430 a. C., teve de batalhar em uma guerra muito mais cruenta, com um inimigo invisível e imprevisível, do qual só se sabia que provinha da Etiópia. “Chegou a Atenas de um modo inesperado e atacou primeiro os habitantes do Pireu. De repente as pessoas padeciam de febres intensas, (...) depois sobrevinham espirros e tosse, para logo atacar o estômago. (...) Exteriormente, o corpo não resultava nem muito quente nem muito frio (...), com uma erupção de pequenas pústulas e chagas. No entanto, os doentes sentiam uma queimação, que não aguentavam vestir túnicas leves, (...) só podiam andar nus e com vontade de mergulhar em água fria, não só pelo excesso de calor, mas também pela sede insaciável que sentiam. (...) O mais terrível do mal em seu conjunto era o desânimo quando se adoecia ―pois entregues ao desespero se abandonavam muito mais, sem vontade de melhorar― e o fato de que ao se contagiar por cuidar uns dos outros, morriam como rebanhos”, descreveu Tucídides fala, no Livro II de A História da Guerra do Peloponeso, sobre a epidemon nosema (epi, sobre, demon, povo e nosema, doença).

Com seu relato histórico, Tucídides visa possibilitar um maior conhecimento sobre esse contágio no futuro, por isso é minucioso em suas observações médicas tanto a respeito dos infectados como dos sobreviventes, pois ele mesmo resistiu à doença. Assinala que os que morriam em maior número eram os médicos, que, por desconhecer o tipo de mal, não dispunham de meios para curar nem os outros nem a si mesmos, e assim a epidemia se propagou como o fogo ateado nos campos pelos espartanos. E sem que as orações nos santuários pudessem salvá-los tampouco. Ao contrário, ao se aglomerar nos templos, muitos dos suplicantes morriam, ficando seus corpos ali caídos. Foi então que os atenienses mais antigos lembraram da profecia que advertia: “Virá a guerra dos dórios e a peste com ela.” (II: 54) Francisco Romero Cruz, tradutor de Tucídides, menciona como hipóteses muito discutidas para a epidemia ateniense uma variante do tifo ou até mesmo o sarampo, por causa das pústulas nos doentes. Mas estudos recentes se inclinam pela hipótese de febre tifoide.

A imagem da doença, aponta Tucídides, é mais impressionante do que é possível narrar, e o mais inusitado é que nem as aves de rapina se aproximavam dos cadáveres espalhados por toda parte em Atenas e em seus arredores, tanto que naquele ano os espartanos suspenderam os ataques para não se contagiarem. “Junto com a epidemia, o que mais angustiou [os atenienses] foi a concentração das pessoas do campo na cidade (…), houve um estrago que não respeitava regras, pois os cadáveres se empilhavam uns sobre os outros, e os moribundos se arrastavam pelas ruas e em volta de todas as fontes pela ânsia da água. (…) Os homens, sem saber o que fazer, tenderam a abandonar por igual o sagrado e o humano. Todo o ritual de que se serviam antes para os funerais ficou alterado e enterravam como podiam", descreve (II: 52).

Já não havia vestígio da Callípolis de Atena, daquela cidade bela que tinha abrigado os valores que os atenienses mais respeitavam: o bem, a verdade e a justiça. Com a chegada da epidemia, a polis se transformou no mais espantoso para o homem grego, a Aischrópolis, a cidade feia e obscena, onde o espírito se corrompe, a maldade e a falsidade correm soltas pelas ruas, e os vícios e excessos abrem os portões da polis para a temida Hybris, a senhora do mal da Idade de Ferro que, para Hesíodo, incitava nos homens a arrogância, a ambição, a ignorância e a injustiça. Assim narra Tucídides como os atenienses iam perdendo a honra e a virtude, pois já não respeitavam os deuses nem as leis: “Ninguém estava disposto a se esforçar pelo que parecia belo ante a incerteza de se pereceria antes de lográ-lo.” (II: 53)

O descontrole e a desmesura se espalharam ainda mais pela cidade quando o strategos Péricles morreu, com seus filhos, devido à epidemia em 429 a. C. A partir desse ano, a Assembleia do Povo foi vítima dos demagogos (de demos, povo, e ago, conduzir) ―que, corrompendo a ideia fundamental de que na vida política (politéia) deve primar o interesse pela maioria, ou seja, pelo público, viram na compra e venda do voto a possibilidade de enriquecer e satisfazer seus interesses privados. “Vereis que tudo é vendido junto no mesmo lugar em Atenas: Figos, testemunhas para atender a convocações, cachos de uvas, nabos, (...) fornecedores de provas, rosas, nêsperas, sopas, (...) processos legais... Máquinas de demarcação, íris, lâmpadas, clepsidras, leis, denúncias...”, descreveu o o estado da Aischrópolis ateniense o poeta Eubolo.

Atenas ia sendo destruída não só pela Guerra do Peloponeso e pela epidemia, mas também pela ação dos aduladores e demagogos que arruinaram a política com seus abusos e manipulações. Ante esse panorama desolador, Aristófanes escreveu, em 414 a. C., a comédia As Aves, como protesto pelos abusos cometidos pelos atenienses, que insistiam em lutar contra os espartanos, e como desejo utópico de construir seu próprio mundo ideal. Para Aristófanes, os atenienses tinham se transformado em comerciantes do dinheiro e do engano, “vivendo pendurados na burocracia, à custa dos impostos que os cidadãos pagavam”, inventando empregos inúteis que terminaram por saturar a polis, como o “mercador de decretos”, que trabalhava na Assembleia vendendo “leis novas por preços bem baratinhos”, ou vendendo “os mesmos decretos que eram impostos às colônias de Atenas”. Ou como o sicofanta (sykophanta), o “delator profissional”, a figura mais repudiada por Aristófanes no livro: “Sou um sicofanta (...). Recebo dinheiro pra acusar as pessoas... Trabalho muito e preciso ter asas. Assim poderei delatar mais rápido. (...) Sou um sicofanta que trabalha pro bem público! Fiscalizo as cidades e denuncio estrangeiros.”

Aristófanes é lapidar ao concluir que Atenas tinha se convertido em uma “árvore de mentiras e violências”, em uma cidade nas trevas, cujos habitantes acabaram sucumbindo ao “lado escuro da vida humana”.

A democracia de Atenas, que Sólon, Clístenes e Péricles ajudaram a criar, terminou em ruínas ante uma oligarquia corrupta, ignorante e despótica, que começou a desacreditar deliberadamente a outrora florescente “cultura das ideias”. Dessa forma, a manipulável Assembleia do Povo condenou ao ostracismo o arquiteto e escultor Fídias, o filósofo Anaxágoras e o sofista Protágoras, acusando-os de ímpios, mas sua decisão mais brutal foi sentenciar Sócrates à morte por considerá-lo uma ameaça à polis, acusando-o de não acreditar nos deuses e de corromper os jovens com seus ensinamentos, já que para o filósofo sua missão era ajudar a dar à luz o conhecimento, tal como sua mãe que era parteira (maieutike). A morte de Sócrates, em 399 a. C., marcou o perigeu dessa Aischrópolis doente, que terminou subjugada, juntamente com Esparta, em 338 a. C. por Felipe II da Macedônia.

A história, como pensava Tucídides, serve não só para examinar o que ocorreu em um momento determinado, como também para que a humanidade extraia lições dos episódios do passado. A filosofia serve para compreender que não estamos dissociados da natureza, que somos parte dela formando um todo; a literatura, para examinar onde falhamos como humanidade e como podemos corrigir o rumo; e a política, para saber escolher com discernimento os mais capacitados para governar a vida pública.

Contudo, 2.450 anos depois daquela epidemia, a humanidade, nem com toda a tecnologia e todo o conhecimento alcançados, pôde evitar que se repetisse a história de Atenas, e enfrenta novamente uma epidemia em que, além de lutar contra um vírus imprevisível, tem de combater a hybris, a arrogância e ignorância, dos que hoje governam alguns demos. Mostrando o pouco que se importam com o bem da maioria e pondo em perigo mais uma vez a democracia, pois muitos desses líderes demagogos corromperam seus eleitores com manipulações de todo tipo para chegar ao poder por meio do voto inconsciente, seja criando fake news e inimigos imaginários, exacerbando os discursos de ódio e o fanatismo religioso ou ―devido à própria ignorância― vilipendiando a ciência, a arte e o conhecimento.

As analogias com a Aischrópolis ateniense estão à vista, já que desde o surgimento da atual emergência sanitária fomos testemunhas da infâmia de tais governantes ao negar a gravidade da pandemia e boicotar recomendações vitais como a de quarentena, menosprezando assim os próprios povos que os elegeram. Também vimos como, por ambição, foi atropelado o respeito à vida das pessoas, consideradas apenas como números, como estatísticas, que devem se sacrificar para manter a todo custo “a economia” que beneficia os oligos, os poucos que se favorecem com ela. E fomos testemunhas da miséria em que se encontram alguns demos, onde a convivência com os mortos é cotidiana, porque não há como sepultá-los, ficando abandonados em qualquer lugar. Portanto, permanecem vigentes as observações de Tucídides sobre a doença, que já naquela época evidenciavam que é preciso ignorar as ambiguidades e demências dos demagogos, que desinformam os habitantes e os expõem ao contagio, e evitar as aglomerações até que o surto acabe. Assim como os espartanos perceberam a seriedade do contagio em Atenas e suspenderam naquele ano a guerra, é necessário que os líderes de hoje enxerguem a gravidade da pandemia. Já é hora de abrir os olhos para a realidade e aceitar que o mundo não deve ser regido pela ideologia, e sim pelo bem comum.

Lutamos contra um vírus complexo que coloca à prova toda a humanidade, mas até mesmo este iós microscópico veio nos mostrar aquilo que ainda podemos mudar; veio para nos dar a oportunidade, como advertiu Hesíodo em Os Trabalhos e os Dias, de corrigir nossas ações, tomar consciência e compreender que para poder viver na Idade de Ouro devemos escolher o caminho de Díke, da justiça. Recuperando a humildade e a confiança e aprendendo a viver em harmonia não só com o próximo, mas também com o mundo em que habitamos; mundo que ainda pode se transformar, graças ao amor, à arte e ao saber, em uma autêntica Callípolis.
Paula Vera-Bustamante

É preciso reconstruir o que destruímos

Nossa época é essencialmente trágica, por isso nos recusamos a vê-la tragicamente. O cataclismo já aconteceu e nos encontramos em meio às ruínas, começando a construir novos pequenos habitats, a adquirir novas pequenas esperanças. É trabalho difícil: não temos mais pela frente um caminho aberto para o futuro, mas contornamos ou passamos por cima dos obstáculos. Precisamos viver, não importa quantos tenham sido os céus que desabaram
D.H. Lawrence,  “O amante de Lady Chatterley”

Cinco letras que odeiam

O escritor português Mário de Carvalho anotou no Facebook: "Deve ser da palavra escrita. Pouco acostumadas a escrever, as pessoas deixam-se levar pelo embalo. Tenho verificado que criaturas, na vida real (notem: vida real!) razoavelmente delicadas e cordatas, perdem as estribeiras aqui no FB. E é vê-las, para meu espanto, a irritar-se, a cotovelar e, pior, a chamar nomes às outras. E às vezes basta uma trivial e natural diferença de opinião ou de perspectiva".

Autor de mais de 30 livros, alguns publicados no Brasil, como o romance "Um Deus Passeando pela Brisa da Tarde", Carvalho conclui: "Os profissionais da escrita, 'et pour cause', são mais comedidos e controlados. O que me parece justo sugerir é que pensem duas (ou três) vezes antes de se saírem com uma formulação mais grosseira, ou com um insulto".


Nem sempre os profissionais são mais ajuizados ou corretos. Ficou famoso, na memória do jornalismo, um artigo de Paulo Francis: "Tônia sem peruca". Atuando como feroz crítico de teatro no fim dos anos 50, ele desancou Tônia Carrero, sugerindo que a atriz ascendera ao estrelado usando o sexo.

A reação não foi menos feroz: o diretor Adolfo Celi, então marido de Tônia, e o ator Paulo Autran trocaram sopapos e engalfinharam-se com Francis. Este, mais tarde, se arrependeu do que havia escrito ("o artigo é sórdido", "me portei como um idiota") e de não ter ouvido no calor da hora o conselho de Rubem Braga: "Deixa o texto dormir um dia na gaveta. Se amanhã você quiser publicá-lo, publica".

Hoje as pessoas não pensam um segundo (três vezes, como sugere Mário de Carvalho, seria uma eternidade) antes de responder nas redes sociais a qualquer comentário. Entre os bolsonaristas, o comum é o uso de apenas duas palavras como resposta-padrão: "Teu c...". Frase que consegue a façanha de ter uma letra a mais do que o "E daí?" presidencial.

Sonhos impossíveis

O presidente Jair Bolsonaro não é mais apenas um trambolho em nossas vidas. Nesses meses de coronavírus, ele se tornou um pesadelo do qual está difícil acordar, ele não deixa. Assim que começamos a rir da desgraça que ele disse ou fez na semana passada, o presidente capricha na próxima besteira e não nos deixa esquecer a importância que ele tem, pelo que ele é, em nossas vidas. De minha parte, esbarro sempre nessa ideia de que ele foi eleito democraticamente, dentro das regras democráticas do país. Só nos resta, portanto, esperar pacientes e atentos pelos dois anos e meio que faltam para que ele complete seu mandato. A não ser que congressistas e juízes nos apareçam com motivos sérios e legais, para que ele sofra um impedimento. Mas não sei se um terceiro impeachment, em tão pouco espaço de tempo, fará bem ao país. Não sei.

Nunca vivi período político tão insuportável como este. Mesmo durante a ditadura militar, que durou 21 anos, nós sempre alimentamos alguma esperança e a fluida sensação, inventada talvez por necessidades psíquicas, de que o pior já tinha passado. E ainda havia, muito de vez em quando, inesperados sinais de que alguma coisa, afinal de contas, marchava em boa direção. Como foi, por exemplo, o tratamento dado ao cinema, durante o governo do general Ernesto Geisel, promovido pelo ministro Reis Velloso. Era como se o país estivesse ocupado por quem não devia; mas a nação estava lá, esperando que um dia a tomássemos nos braços.

Não acredito muito nessas classificações morais muito fechadas. Mas, às vezes, tenho quase certeza de que o presidente é um homem mau, que pratica a maldade social para compensar a consciência culpada da bananice com seus filhos, que podem quase tudo. Desde querer ser embaixador nos Estados Unidos, porque sabe fritar hambúrgueres; até nomear o diretor-geral da Polícia Federal. Como se PF fosse um acrônimo para Polícia da Família, da qual os Bolsonaro podem fazer gato e sapato.

Entre uma e outra gaiatice do mal, o presidente ainda promove ou apoia, no que julga ser seus domínios em Brasília, animadas domingueiras contra a Constituição, o Congresso e o Supremo Tribunal Federal, seus três inimigos jurados, exatamente os que o impedem de se soltar no Planalto, fazendo o que bem entender. Como ele não acredita no vírus (ou, quem sabe, já o pegou, está nos escondendo e pouco se lixando), a turma dele agora tem nova diversão endiabrada. Eles passam a noite em carreatas, na porta dos hospitais públicos, em buzinaço impiedoso, chamando os doentes infectados para sua campanha pelo fim do isolamento social.

Mesmo antes de a campanha eleitoral começar, Bolsonaro fazia o elogio sistemático de torturadores e escarnecia dos torturados. E nem se dava ao trabalho de nos dizer por que fazia isso, em nome de que religião, ideologia ou sistema político. O elogio à tortura era o elogio à tortura e pronto; não precisava de uma razão. Bolsonaro chegou a declarar que o Brasil só tomaria jeito depois de uma guerra civil, que matasse uns 30 mil. Talvez ele compense seus sonhos irrealizados com a visão dos “invisíveis”nas filas da Caixa. Ou que desconheça as necessidades deles, preferindo desfilar na Praça dos Três Poderes com empresários, para salvar a vida de suas contas bancárias.

Nos seus 28 anos de Câmara Federal, onde fez aprovar, nesse período, dois projetos seus, Bolsonaro pertenceu a nove diferentes partidos, vivendo a experiência profunda do baixo clero, aquele grupo de parlamentares que, no escurinho da Casa, topavam qualquer lance. Em 2005, um deles, Severino Cavalcanti, se elegeu presidente da Câmara em circunstâncias extraordinárias, uma reação de deputados, em crise com o Poder Executivo. A diferença é que os escândalos de que Severino fora acusado eram de muito baixa extração; como, por exemplo, a descoberta de que supostamente recebia propina do responsável pelo bar do Congresso, para onde levava seus camaradas de partido e de ideias. Não sei se o centrão terá essa mesma modéstia.

Em seu obituário sobre Aldir Blanc, Luiz Antonio Simas, um mestre, antropólogo especializado nas coisas do Brasil, nos explicou a diferença que faz entre Brasil e Brasilidade. “O Brasil”, escreveu, “é, vez por outra, como nos nossos dias, um empreendimento de ódio; a Brasilidade é um canto desesperado de amor e liberdade”. Confesso que não sei direito que rumo tomar nessa doidice que está sendo a vida pública brasileira de nossos dias. Mas sinto que estamos precisando muito de quem cante esse canto de que Simas nos fala.