quinta-feira, 1 de dezembro de 2022

O que os militares mais temem é a perda dos privilégios adquiridos

Assim como se normalizou Bolsonaro e os absurdos que ele cometeu até aqui, o país correrá perigo caso normalize também a insubordinação militar diante do fato de Lula ter sido eleito.

É isso o que acontece no momento. Se vai haver ou não uma escalada da insubordinação, ninguém pode afirmar com segurança. Só depois que Lula for diplomado e tomar posse.

Nunca os militares acolheram manifestantes que pedem um golpe. Nunca os comandantes ameaçaram pedir demissão por se opor ao presidente eleito. É de insubordinação que se trata.

O Alto Comando das Forças Armadas bolsonarizou-se. O atual presidente governa por delegação dos seus antigos pares, e se dependesse somente deles, teria sido reeleito.

O golpe de 64 foi dado sob o pretexto de defender a democracia ameaçada pelo comunismo. Suprimiu-se a democracia por 21 anos. O comunismo, hoje, não existe mais, salvo na China capitalista.

Se houvesse um novo golpe, qual seria o pretexto? Que a Previdência especial para os militares será suspensa? Que os mais de 6 mil militares empregados no governo perderão o emprego?

Alegações fisiológicas podem pesar, mas não ser admitidas publicamente. Como justificar um golpe? Por que os militares sempre foram de direita, e Lula e a sua turma de esquerda?

O Centrão, em acelerado processo de entendimento com o novo governo, é de esquerda? Geraldo Alckmin, o vice-presidente, é de esquerda? Simone Tebet (MDB) é? Foram todos abduzidos?

Sem falar do presidente americano Joe Biden, que se não vier à posse de Lula estará pronto para recebê-lo antes disso na Casa Branca, como fez em 2002 o então presidente George Bush.

A revolta dos militares com a eleição de Lula alimenta-se do medo de perder os privilégios adquiridos. De volta ao poder sem disparar tiros, imaginaram ali permanecer por um longo tempo.

Lula e seu ministro da Defesa, José Múcio Monteiro Filho, terão uma parada indigesta pela frente, é verdade. Mas não lhes faltam habilidade e experiência para vencê-la. São bons negociadores.

A revolta dos militares com a eleição de Lula alimenta-se do medo de perder os privilégios adquiridos. De volta ao poder sem disparar tiros, imaginaram ali permanecer por um longo tempo.

Lula e seu ministro da Defesa, José Múcio Monteiro Filho, terão uma parada indigesta pela frente, é verdade. Mas não lhes faltam habilidade e experiência para vencê-la. São bons negociadores.

Pensamento do Dia

 


Uma rima para patriotas

Em Pernambuco, um patriota abraçou-se a um caminhão para impedir que ele furasse um bloqueio na estrada e rodou crucificado ao para-brisa por quilômetros em alta velocidade. No Paraná, patriotas de mãos dadas cantaram o Hino Nacional para um pneu entronizado no meio da rua –o pneu ouviu o hino em respeitoso silêncio. No Rio Grande do Sul, outra multidão de patriotas piscou seus celulares para o céu, tentando supostamente chamar a atenção de E.Ts. para que venham impedir a posse de Lula.

Já para uma patriota talvez também gaúcha, não há motivo para desespero. No dia 1º de janeiro, Brasília será palco de uma metempsicose: a alma de Bolsonaro transmigrará para o corpo de Lula no ato de posse e Bolsonaro continuará governando, só que no corpo do inimigo. A vidente não explicou o que será do corpo de Bolsonaro, subitamente oco, ou se a alma de Lula, despejada e sem teto, se mudará para o dele.


Enquanto isso, alheios ao Além, mais patriotas fazem penosas vigílias diante de quartéis pelo país, aguentando frio, chuva, água pelas canelas, sem ter onde sentar, passando a esfiha e pizza fria, dormindo ao relento e aliviando-se em banheiros químicos ou no mato –tudo isso para que as Forças Armadas saiam do conforto e cumpram sua obrigação de salvar o país com uma intervenção federal, digo golpe.

Por sorte, nem todo mundo aderiu à insânia. Políticos, empresários, agros, pastores, partidos e até militares, que se faziam de bolsonaristas hidrófobos, já estão conversando com o novo governo. Eduardo Bolsonaro, filho 03, foi flagrado vibrando na torcida brasileira no Qatar, indiferente ao desespero dos patriotas. E, pelo sumiço, prostração e silêncio de quase um mês, nem Bolsonaro, abandonado pelas redes digitais, quer saber mais de Bolsonaro.

O bolsonarismo está se tornando uma seita em extinção e seus últimos fiéis são patriotas sujeitos a uma rima óbvia.

Necessidades são únicas


De que serve discutir as ideologias? Se todas se demonstram, também todas se opõem, e semelhantes discussões fazem duvidar da salvação do homem. Ainda que o homem, por todo o lado, à nossa volta, revele as mesmas necessidades.
Antoine de Saint-Exupéry, "Terra dos Homens"

O que mudou nos meus 30 anos como correspondente no Brasil

Quando cheguei ao Brasil com minha credencial de jornalista de economia, há exatos 30 anos, em novembro de 1992, o país era outro. O espírito de otimismo da jovem democracia havia se perdido há muito tempo no caos econômico.

Meu primeiro texto foi sobre o impeachment de Collor. Política e economicamente, o Brasil estava amplamente isolado do mundo. Com uma política monetária e financeira caótica. Com empresas dirigidas como negócios de família provincianos.

Após meses de idas e vindas, consegui uma entrevista com o diretor da Petrobras. Tive a impressão de caminhar por horas a fio por corredores escuros da futurista sede de concreto da empresa. Hordas de funcionários viam televisão ou conversavam com secretárias e servidores de café de fraque. O diretor não estava. Ninguém sabia dele. Mais tarde, meu suposto entrevistado viria a ser uma figura-chave nas investigações da Lava Jato.

A inflação era tão alta que, quando circulamos com centenas de milhares e milhões de cruzeiros, meu sogro alemão se lembrou do período da República de Weimar (1918-33). No centro de São Paulo, trocamos algumas notas de dólar por gordos maços de dinheiro e os escondemos em sacolas de compras. As transferências de uma conta para outro banco eram penalizadas com altas taxas.

Quase todos os bens de consumo duráveis eram caros e ruins. Paguei 3 mil dólares por uma linha telefônica – meus editores-chefes em Düsseldorf pensaram que eu estava passando a perna neles. Carros custavam uma fortuna.

Durante minhas primeiras entrevistas com bancos de investimento, fiquei surpreso por sempre conseguir falar pessoalmente com seus presidentes. Eles estavam entusiasmados por finalmente um jornalista estrangeiro especializado em economia se interessar novamente por títulos e ações brasileiras.

Então, o Plano Real mudou tudo abruptamente: o Brasil foi reconectado ao mundo. A inflação caiu, investidores chegaram, setores inteiros como telecomunicações e mineração foram privatizados. Isso também lançou as bases para empresas de sucesso como a fabricante de aeronaves Embraer.


Quando o Brasil finalmente se tornou a estrela dos mercados emergentes nos anos 2000, nada parecia atrapalhar sua ascensão a potência global. O Brasil, o quinto maior país do mundo, estava a ponto de se tornar também a quinta maior economia. Entre 2005 e 2008, dezenas de empresas entraram na Bolsa e passaram a valer bilhões de dólares de um dia para o outro. Companhias como Ambev, Vale, Itaú e Petrobras deram a volta ao mundo comprando empresas. Empresas brasileiras nunca haviam tido tamanha presença no cenário internacional.

Não apenas o Brasil se tornou um fornecedor de alimentos e matérias-primas para o mundo, como também milhões de brasileiros ascenderam à classe média. Eles podiam pagar por coisas com as quais nunca haviam sonhado: seguros, viagens internacionais, um curso universitário.

Centenas de delegações comerciais e políticas da Alemanha viajaram ao país e se maravilharam com o Pão de Açúcar. Mas isso não durou muito: entrevistei Eike Batista, Norberto Odebrecht e alguns outros empresários que pouco tempo depois estariam sentados sobre as ruínas de seus próprios impérios.
Década perdida

Os anos 2010, com o impeachment de Dilma, os governos Temer e Bolsonaro foram uma década perdida.

A economia brasileira se tornou mais moderna, sem dúvida. O Brasil também conseguiu expandir sua participação como fornecedor mundial de alimentos.

No entanto, quando ando hoje pelo centro de São Paulo, a sensação infelizmente é melancólica. Porque voltou a ser como era no final de 1992: assim como antes, no início da noite as ruas se enchem de moradores que ajeitam as caixas de papelão sobre as quais dormem. Muitos dos bares e restaurantes em torno da Bovespa estão fechados. Entre a Praça da República e a Sala São Paulo, usuários de crack dominam bairros inteiros. Com lixeiras em chamas e moradias ocupadas, as ruas lembram cenários de uma guerra civil.

Agora estou curioso para ver como será a próxima década.

O inadiável retorno aos quarteis

A doutrina do exército como o grande mudo foi introduzida no Brasil pela Missão Militar francesa, comandada pelo então general Maurice Gamelin. A missão chegou ao Brasil em 1920 para promover a modernização e profissionalização das Forças Armadas. Entendia o seu chefe que os militares deveriam se dedicar exclusivamente às suas funções profissionais e via na introdução da política nos quarteis um fator de corrosão e de quebra da hierarquia e disciplina. Compartilhada pelo marechal Cândido Rondon, a ideia de Gamelin não prosperou e o Brasil viveu um longo ciclo de intervenção militar na vida política nacional, muitos deles traumáticos e de longa duração, como foi o caso dos 21 anos de regime militar.

Esse ciclo foi interrompido pela transição democrática de 1985, possibilitando ao país viver o maior período da sua história republicana sem golpes ou quarteladas. Nem mesmo a morte de Tancredo Neves desviou os militares da rota de se manter nos quarteis e a posse de José Sarney ocorreu na mais absoluta tranquilidade. Isso foi possível graças à liderança do general Leônidas Pires Gonçalves, o avalista da posse do vice-presidente eleito junto com Tancredo.


O retorno organizado dos militares aos quarteis fez bem às Forças Armadas, tornando-as uma das instituições mais respeitadas pelos brasileiros. O paradigma inaugurado em 1985 começou a ser quebrado com a assunção do general Eduardo Villas Boas, tendo como pano de fundo insatisfações dos militares com o relatório da Comissão da Verdade, durante o governo Dilma Roussef. Coincidentemente, ou não, desenvolve-se a partir desse episódio a aproximação do então deputado Jair Bolsonaro com militares de alta patente.

Os quatro anos do governo Bolsonaro foram anos de ativismo político dos militares, com a hipertrofia de sua presença no governo em funções estranhas à sua vocação e ao seu papel constitucional. Houve resistência ao aparelhamento das Forças Armadas e o ex-comandante do Exército Edson Pujol é um exemplo de militares que entendem a instituição a qual pertencem como de Estado e não de governo. Por isso mesmo foi demitido, assim como o então ministro da Defesa, general Fernando Azevedo.

Desde a derrota eleitoral de Bolsonaro, as Forças Armadas têm sido submetidas a uma situação de estresse e de anormalidade. Não é natural sua cadeia de comando divulgar quatro notas oficiais sobre as eleições e o quadro político. Bolsonaristas insatisfeitos com o pronunciamento das urnas pregam o golpe em frente aos quarteis. Com o incentivo de Jair Bolsonaro, seu partido, o PL, dá munição aos manifestantes ao ingressar no TSE com uma contestação parcial às urnas eletrônicas.

O Brasil vive a mais longa e a mais agônica transição, desde a redemocratização do país. Quanto mais se aproxima a posse do novo presidente, mais estridente e mais radical são os atos em frente a quarteis, chegando-se ao ponto de se pregar a convocação de colecionadores, atiradores desportivos e caçadores a se insurgirem, de armas nas mãos à diplomação do presidente eleito, no dia de sua posse.

Mais grave: 221 oficiais de reserva, entre eles brigadeiros e almirantes e generais, fazem um manifesto pedindo aos comandantes militares que intervenham contra o resultados das urnas. A cadeia de comando parece estar de mãos amarradas e se vê na contingência de fazer ouvido de mercador à pregação feita sob suas barbas, como é o caso deste manifesto de oficiais de alta patente da reserva.

Mas entre a postura condescendente e o apoio, há uma distância. Segundo reportagem da CNN Brasil, a cadeia de comando começa a perceber os efeitos corrosivos na tropa, pois os atos em frente aos quarteis “estariam gerando problemas de segurança e discussões internas dentro das corporações, uma vez, que segundo fonte que participou do encontro (dos três comandantes das FFAA com Bolsonaro), militares inconformados com o resultado das urnas estariam fomentando protestos com a participação de parentes e amigos.

É a “Lei Gamelin” se manifestando mais uma vez. Quando a política entra por uma porta nos quarteis, a disciplina e a hierarquia saem pela outra. Assim, até para a preservação de seus valores, o segundo retorno dos militares aos quarteis é inadiável. Só desta forma é que poderão se dedicar exclusivamente às suas funções constitucionais. O restabelecimento do primado do poder civil é condição necessária para que isto aconteça e se materializa pela escolha de um novo ministro da Defesa que não venha do mundo castrense.

Quanto maior a demora de Lula em anunciar o nome do futuro ministro da Defesa, maior será a instabilidade desse período de transição entre governos.

O vácuo é extremamente perigoso em área tão sensível. O presidente eleito parece ter entendido isso. Queimou a etapa de formar um grupo de transição da defesa ao anunciar que na próxima semana divulgará os três comandantes militares de seu governo.

A tendência é a observância do critério da antiguidade, tão caro às Forças Armadas. No pacote virá também o anúncio do novo ministro da Defesa, muito provavelmente o ex-presidente do TCU José Múcio Monteiro, um conservador com trânsito em todos os campos políticos. Da esquerda até Bolsonaro, que o queria como ministro de seu governo.

Espera-se que o espírito conciliador de José Múcio e a indicação dos novos comandantes das três armas contribuirão para que a passagem do bastão na cadeia de comando venha a ser o primeiro passo para o impostergável retorno dos militares aos quartéis.

Só assim o exército voltará a ser o grande mudo, como defendia o marechal Cândido Rondon.