domingo, 30 de novembro de 2025

Pensamento do Dia

 


Quem lê tanta notícia?

“O Sol na banca de revista, 
me encha de alegria e preguiça, 
quem lê tanta noticia? “

Pois é, assim falava Caetano Veloso em Alegria, alegria. As bancas de revista que hoje viraram mercadinhos exibiam não só revistas como jornais cheios de notícias. E as pessoas se juntavam na frente para ler enquanto esperavam o bonde. Nostalgias à parte, eram outros tempos. É certo também que o povo lia mais as manchetes, muitas vezes escandalosas e exageradas. Quem tinha dinheiro para comprar jornal? O povão comprava quando dava jornais que faziam o sangue escorrer. Mas a banca cheia de gente era festa. Muitas fotos ilustram esse hábito brasileiro que se perdeu. Aliás, as coisas coletivas se perderam e quando o povo se junta, o que é raro, é para manifestar algum desejo muito forte.


Isso hoje em dia está sendo feito nas redes sociais. Depois que inventaram o celular e com ele as big- techs, a vida mudou. As pessoas andam com o celular diante dos olhos como se a tela substituísse a realidade. Um pouco elas já fazem isso. A realidade pode ser moldada ao bel prazer do comunicador. A mentira está aí para isso. Levar a população a pensar de um jeito que favoreça aquele pensamento, usando mentiras ou verdades.

Todo mundo tem um celular. O último censo feito mostrava que havia mais celular do que gente no Brasil. Em todo lugar todo mundo está diante de um celular. Na rua caminhando, na bicicleta trabalhando, na academia malhando, todos usam o celular e é sempre muito mais para ver alguma coisa do que para se comunicar. A solidão de outros tempos se foi. Hoje você tem “amigos” virtuais e pode ficar sabendo da vida de todos sem precisar ler um jornal. Claro que isso trouxe uma sensação de democratização da comunicação. Ao mesmo tempo um perigo de que aquelas mentiras que falamos possam se difundir e mudar a realidade como até já vimos acontecer.

Um estudo e uma regulamentação são importantes e fundamentais. Esse acesso ao que todos dizem é importante, mas ao mesmo tempo uma ideia de liberdade de expressão precisa de regras. Primeiro que uns comunicam mais do que outros, tem mais verba e atropelam o processo. Depois é preciso que se diga que qualquer associação precisa de regulamentação. Casamento precisa, futebol precisa, enfim, seguindo as regras, ou os limites, tudo é possível. Sua liberdade vai até onde começa a do seu vizinho, já dizia aquele azulejo velho da casa demolida.

É certo também que o povo fica vendo foto, lendo fofoca, jogando e trocando mensagens na maioria dos casos. Mas também é alvo da informação mal intencionada. Essa precisa ser pensada, não sei como, mas a imagem do povo na frente da banca não me sai da cabeça. Todo mundo podia ler tudo o que era permitido expor ali. A ideia de liberdade de expressão americana, por exemplo, é uma ilusão. É feita para os brancos, ricos e na maioria, protestantes. Os negros, os pobres, os grupos segregados não chegam nem perto. Aí reside o problema. O celular reproduz a sociedade que vivemos e tenta mantê-la viva. Se conseguirmos mudar a sociedade, torná-la mais justa talvez consigamos mudar também os celulares. Quem sabe? Vale a pena tentar. Tenho que parar. Meu celular apitou.

Toda saga vivida por Jair Bolsonaro é um manual de estupidez na vida política

Acompanho a saga de Jair Bolsonaro com fascínio quase filosófico: o que leva um homem a agir, de forma tão consistente, contra seus próprios interesses?

A pergunta surgiu durante o seu governo, continuou com sua reação à pandemia , aprofundou-se com a tentativa de golpe — e encontra agora um desfecho teatral com a prisão preventiva depois de tentar arrancar a tornozeleira eletrônica.

Por "curiosidade", justificou ele.

A vigília convocada pelo filho é apenas mais uma prova de que genética não perdoa.

Alguns dirão que essa tendência antecede a política e já vem dos quartéis —o que talvez autorize a piada "de soldado a soldador" que anda circulando por aí.

Mas o assunto é sério: como explicar a estupidez na política?

O tema raramente recebe a devida atenção. Hannah Arendt, em análise célebre, afirmou que Adolf Eichmann representava a "incapacidade de pensar" que define a "banalidade do mal". Eichmann seria estúpido — e sua estupidez foi instrumentalizada no Holocausto.


Erro evidente: Eichmann pensava, sim. Era um nazista convicto, até "sofisticado" —digamos assim—, como se soube mais tarde pelas gravações de áudio.

Sua maldade não era banal.

Robert Musil, outro autor de língua alemã, tentou ir um pouco mais longe. Há dois tipos de estupidez, disse ele na conferência de 1937. O primeiro é uma limitação intelectual natural, inocente, sem maldade —o "bobo da aldeia", em sua versão literária clássica.

O segundo tipo é mais perigoso: o ato de deformar o pensamento por orgulho, vaidade ou cegueira moral. O sujeito sabe pensar, mas não quer pensar. Essa forma de estupidez não é cognitiva, mas moral. É um vício de caráter.

Não creio que Bolsonaro se encaixe perfeitamente em qualquer uma dessas categorias. A estupidez de suas ações não nasce da inocência; mas a deformação deliberada do pensamento exige um tipo de inteligência que ele também não possui.

O que há ali é aquela rigidez mental que a historiadora Barbara Tuchman dissecou no clássico "A Marcha da Insensatez", do original "The March of Folly". A própria palavra "folly" já sugere essa rigidez, irmã gêmea da loucura.

Nas palavras de Tuchman, a história foi pródiga em momentos de estupidez: eles surgem quando governantes seguem políticas que, longe de beneficiá-los, aceleram sua própria ruína.

Curiosamente, Tuchman concorda com Carlo Cipolla, para quem o sujeito estúpido é aquele que prejudica os outros e a si próprio, sem obter benefício algum.

Mas há critérios para que a estupidez seja propriamente política, avisa Tuchman. Primeiro, a conduta tem de ser reconhecida como estúpida em seu próprio tempo, não apenas retrospectivamente.

Segundo, deve haver uma alternativa viável e mais sensata —a estupidez só é estupidez quando age sem necessidade.

Por fim, o governante estúpido apresenta o que Tuchman chama de "wooden-headedness" —algo como "cabeça oca", que talvez traduzíssemos melhor como "cabeça blindada": o governante estúpido só consegue interpretar a realidade a partir de noções pré-concebidas e fixas, ignorando ou rejeitando qualquer evidência contrária. É como se proclamasse, orgulhoso: "Nenhum fato me vai derrotar!".

Na obra de Tuchman, os exemplos de cabeças blindadas se sucedem: os troianos com o cavalo de madeira; o comportamento de Roma antes da revolta protestante; a obstinação de Jorge 3º ao tentar submeter as colônias britânicas a impostos; e, já no século 20, a aventura suicida dos submarinos alemães contra a Marinha americana ou o ataque japonês a Pearl Harbor — dois atos que, ironicamente, trouxeram os Estados Unidos para guerras que arrasaram seus autores.

Em todos esses casos, havia alertas; havia alternativas; mas os fatos não demoveram as cabeças blindadas.

Guardadas as proporções de escala e importância, a conduta de Bolsonaro é quase um manual de estupidez política.

Na pandemia, teria sido possível mais competência e empatia —mas o homem "não era coveiro".

No golpe, havia sempre a opção de simplesmente não o cogitar —e, quem sabe, aguardar na oposição outra eleição, já que a derrota de 2022 foi por margem mínima. Mas isso implicaria admitir que o PT venceu o pleito, uma heresia para os bolsonaristas.

E, na comédia da tornozeleira, a suposta tentativa de fuga jamais compensaria o risco. Cumprir a pena —ou parte dela— teria trazido mais vantagens que desvantagens; mas aprender com o caso de Lula seria outra heresia.

Que os seguidores de Bolsonaro discordem dessas premissas não surpreende. No fim das contas, eles seguem o "mito" por alguma razão.

Aznar, o oráculo

Podemos dormir descansados, o aquecimento global não existe, é um invento malicioso dos ecologistas na linha estratégica da sua “ideologia em deriva totalitária”, consoante a definiu o implacável observador da política planetária e dos fenómenos do universo que é José María Aznar. Não saberíamos como viver sem este homem. Não importa que qualquer dia comecem a nascer flores no Árctico, não importa que os glaciares da Patagónia se reduzam de cada vez que alguém suspira fazendo aumentar a temperatura ambiente uma milionésima de grau, não importa que a Gronelândia tenha perdido uma parte importante do seu território, não importa a seca, não importam as inundações que tudo arrasam e tantas vidas levam consigo, não importa a igualização cada vez mais evidente das estações do ano, nada disto importa se o emérito sábio José María vem negar a existência do aquecimento global, baseando-se nas peregrinas páginas de um livro do presidente checo Vaclav Klaus que o próprio Aznar, em uma bonita atitude de solidariedade científica e institucional, apresentará em breve. Já o estamos a ouvir. No entanto, uma dúvida muito séria nos atormenta e que é altura de expender à consideração do leitor. Onde estará a origem, o manancial, a fonte desta sistemática atitude negacionista? Terá resultado de um ovo dialéctico deposto por Aznar no útero do Partido Popular quando foi seu amo e senhor? Quando Rajoy, com aquela composta seriedade que o caracteriza, nos informou de que um seu primo catedrático, parece que de física, lhe havia dito que isso do aquecimento climático era uma treta, tão ousada afirmação foi apenas o fruto de uma imaginação celta sobreaquecida que não havia sabido compreender o que lhe estava a ser explicado, ou, para tornar ao ovo dialéctico, é isso uma doutrina, uma regra, um princípio exarado em letra pequena na cartilha do Partido Popular, caso em que, se Rajoy teria sido somente o repetidor infeliz da palavra do primo catedrático, já o oráculo em que o seu ex-chefe se transformou não quis perder a oportunidade de marcar uma vez mais a pauta ao gentio ignaro?

Não me resta muito mais espaço, mas talvez ainda caiba nele um breve apelo ao senso comum. Sendo certo que o planeta em que vivemos já passou por seis ou sete eras glaciais, não estaremos nós no limiar de outra dessas eras? Não será que a coincidência entre tal possibilidade e as contínuas acções operadas pelo ser humano contra o meio ambiente se parece muito àqueles casos, tão comuns, em que uma doença esconde outra doença? Pensem nisto, por favor. Na próxima era glacial, ou nesta que já está principiando, o gelo cobrirá Paris. Tranquilizemo-nos, não será para amanhã. Mas temos, pelo menos, um dever para hoje: não ajudemos a era glacial que aí vem. E, recordem, Aznar é um mero episódio. Não se assustem.
José Saramago, "O caderno"

A Filosofia não está à venda no mercado de algoritmos

Hoje, 20 de novembro de 2025 — Dia Mundial da Filosofia —, o mundo corre mais depressa do que a pergunta. Enquanto os servidores ardem em previsões e os ecrãs nos vendem respostas prontas a consumo instantâneo, ainda há quem se atreva a perguntar: O que é isto de ser? Por que sofremos? O que nos torna humanos?

Essas perguntas, antigas como o fogo e tão incómodas quanto a verdade, não cabem em prompts. Não se comprimem em linhas de código. E é por isso que a filosofia, mesmo em tempos de Inteligência Artificial, não morre — antes persiste, como um suspiro silencioso no meio do ruído.

Pensemos: a IA aprende padrões, reproduz estilos, sintetiza dados, mas ignora a angústia ética de Espinosa, a ironia trágica de Sócrates, a esperança utópica de Bloch. Ela pode imitar uma reflexão, mas não sentir a dúvida que a torna viva. Porque filosofar não é apenas raciocinar — é existir com inquietação. É recusar que a vida se reduza a um menu de opções predeterminadas.


Por isso, neste dia, façamos um gesto de resistência silenciosa: apaguemos momentaneamente o mundo digital e abramos um livro de Montaigne, de Arendt, de Alain — ou simplesmente sentemo-nos, como Diógenes ao sol, a contemplar o absurdo da pressa coletiva.

A filosofia não tem utilidade prática. Mas tem tudo a ver com o que nos mantém vivos: o desejo de compreender, de escolher, de duvidar — e, acima de tudo, de não nos deixarmos programar sem consciência.

E talvez aí, só aí, resida a sua vitória contra o artificialismo: porque, por mais que a inteligência se torne artificial, o espanto — esse — será sempre humano.

Mas será que ainda perguntamos? Ou já nos habituámos a delegar o pensamento? Vemos jovens que dominam interfaces, mas não dominam os seus impulsos; adultos que acumulam seguidores, mas não sabem dialogar com a própria consciência. Em nome da eficiência, sacrificámos o tempo da maturação ética. Em nome da neutralidade técnica, esquecemos que toda a tecnologia carrega escolhas morais — e que, muitas vezes, as mais perigosas são aquelas tomadas por quem se julga isento de responsabilidade.

A filosofia, nesse contexto, não é um luxo erudito, mas uma vacina contra a banalidade do mal, aquela que Hannah Arendt tão bem descreveu: o mal que surge quando os homens deixam de pensar. Se aceitamos que algoritmos decidam quem merece crédito, quem é suspeito, quem é “relevante” nas redes, sem questionar os critérios por trás dessas decisões, estamos a entregar o nosso futuro a lógicas opacas — e, pior, indiscutíveis. A filosofia ensina a duvidar, a desmontar discursos, a exigir transparência. É, por isso, uma prática de liberdade.

E se queremos que as crianças de hoje se tornem adultos capazes de discernir entre o justo e o conveniente, entre o sensato e o viral, então a filosofia não pode ser um acessório do ensino secundário — deve estar desde o 1.º ciclo, não como disciplina rígida, mas como atitude: como arte de escutar, de argumentar, de imaginar mundos melhores. Uma criança que aprende a formular “porquês” com profundidade, que discute o que é justo numa fila para o lanche, que reflete sobre o que é ser amigo, está a treinar a sua humanidade. E essa é a única competência que nenhuma IA conseguirá usurpar.

Paulo Freire lembrava-nos que ninguém educa ninguém, ninguém se educa sozinho, os homens educam-se entre si, mediatizados pelo mundo. A filosofia, entendida como diálogo crítico com o mundo, é o coração dessa educação libertadora. E não há liberdade sem pensamento próprio, nem pensamento próprio sem tempo, silêncio e coragem — valores que hoje parecem em risco de extinção.

Por isso, neste Dia Mundial da Filosofia, não celebremos apenas os grandes pensadores do passado, mas defendamos o direito de todas as crianças — e de todos os cidadãos — a pensar, a duvidar, a errar e a recomeçar com lucidez. Porque um país que descura a filosofia nas escolas não está apenas a poupar papel ou horários — está a entregar o seu futuro a quem já decidiu por nós. E isso, filosoficamente, é inaceitável.

Homens ocos indiferentes ao horror

Três meses atrás, no Festival de Veneza, a estreia mundial do filme “A voz de Hind Rajab” recebeu ovação histórica de 23 minutos. A diretora tunisiana desse longa híbrido acredita que ele consiga ser um dos favoritos ao Oscar de Melhor Filme Internacional em março de 2026. Ele reconstitui as últimas horas de vida da menina palestina Hind, de 6 anos, passadas dentro de um automóvel que acabara de ser perfurado por 335 disparos. O tio, a tia e três primos espremidos nos dois bancos do carro familiar foram morrendo a seu lado. E a menina, agora sozinha, aciona o número de emergência do Crescente Vermelho que toda criança ou adulto de Gaza sabe de cor. A voz infantil tem urgência adulta e é indelével:

— Estou com medo, por favor, venham.

O fato ocorreu em 29 de janeiro de 2024. Como se sabe hoje, ninguém veio —ou melhor, os dois socorristas que tentaram chegar até Hind de ambulância foram igualmente metralhados pelas Forças de Defesa de Israel (FDI). O conjunto de corpos em carcaças retorcidas ali ficou por 12 dias até ser recolhido.

Semanas atrás um novo documentário produzido pela Fundação Hind Rajab, em parceria com a Al Jazeera, trouxe revelações adicionais ao caso. Intitulado “Ma Khafiya Aatham” (A ponta do iceberg), ele desmonta a tentativa inicial de Israel de sustentar que não havia qualquer unidade militar das FDI nas redondezas do ocorrido. Uma investigação baseada em imagens de satélite e áudios daquele dia, empreendida pelo grupo de pesquisa multidisciplinar Forensic Architecture, da Universidade de Londres, identificou a presença de vários tanques Merkava na vizinhança do carro da família Rajab. Também transcorreram preciosas horas até o Crescente Vermelho receber autorização para deslocar seus dois socorristas à zona de confronto, e é nesse ínterim de horror que a voz da menina vai minguando.

Quando, finalmente, a ambulância se aproxima do carro esturricado, é ela que se torna alvo das FDI. O documentário identifica a brigada, o batalhão e os comandantes suspeitos de responsabilidade no caso. E forneceu ao Tribunal Penal Internacional de Haia os nomes, sobrenomes e patentes de 20 militares israelenses que associa ao crime.

Por que falar disso agora, com o dezembro festivo arrombando nossas portas? Porque toda hora é hora. A indignação sendo um estado emocional transitório, é quase impossível de sustentar ao longo dos anos. Desgasta em demasia, tanto física quanto emocionalmente, por isso acaba morrendo — mais cômodo nos acostumarmos ao que vemos. Cabe aqui pedaço de uma crônica escrita por Clarice Lispector para a findada revista Senhor em junho de 1962, sobre a morte do bandidão carioca Mineirinho, pela polícia carioca, com 13 tiros:

Esta é a lei. Mas há alguma coisa que, se me faz ouvir o primeiro e o segundo tiro com um alívio de segurança, no terceiro me deixa alerta, no quarto desassossego, o quinto e o sexto me cobrem de vergonha, o sétimo e o oitavo eu ouço com o coração batendo de horror, no nono e no décimo minha boca está trêmula, no décimo primeiro digo em espanto o nome de Deus, no décimo segundo chamo meu irmão. O décimo terceiro me assassina, porque eu sou o outro. Porque eu quero ser o outro.

A pergunta moral deixa de ser “quem era o morto?” e passa a ser “quem somos nós que aceitamos isso?”.

Como fim de ano também é ocasião para balanços de vida e listas de melhores ou piores, convidam-se interessados a (re)ler “Os homens ocos”, de T.S. Eliot, publicado exatamente cem anos atrás. Poema modernista que lida com o vazio espiritual e o desalento do Pós-Guerra de 1914-18, “Os homens ocos” de Eliot simbolizam uma sociedade paralisada pela inação, desprovida de espiritualidade e em declínio moral. Esses homens ocos mais se assemelham a espantalhos preenchidos com palha para aparentar humanidade. São vazios, falam aos sussurros, sem dialogar, e vivem numa paisagem árida, estéril, com medo da escuridão. São célebres os últimos versos da obra: This is the way the world ends /Not with a bang but a whimper (dependendo do tradutor, Assim acaba o mundo/não com um estrondo, mas com um gemido).

Melhor sair logo da escuridão e da indignação fácil. E encarar quem somos nós, que aceitamos o que vemos.
Dorrit Harazim

Direita precisa se perguntar: Valeu a pena perder tempo com o bolsonarismo?

Agora que Jair está em cana, opa, calma aí, não consigo abandonar esse começo de frase ainda não, me deixe saborear, agora que o Jair está em cana, rapaz, que gostinho de justiça e bolo da vovó que sinto após dizer isso em voz alta.

Vou ter que dizer de novo, agora que o Jair está em cana, olha só, se o golpe tivesse dado certo, eu teria sido assassinado no pau-de-arara.

Se está achando ruim, vá ler outra coluna, quero mais é dizer de novo, agora que Jair está em cana por ter tentando roubar o voto dos pobres e usar as armas da República para matar seus adversários.

Desculpa, foram anos ouvindo gente dizer sem rir que o charlatão do Guedes era competente, mas OK, parei, agora que o Jair está em cana por ter tentado roubar o voto dos pobres e usar as armas da República para matar seus adversários, Vacina! Vacina!


Vagabundo não conseguiu fazer o mínimo e comprar vacina!, enfim, agora que Jair está em cana por ter tentado roubar o voto dos pobres e usar as armas da República para matar seus adversários, a direita brasileira precisa se perguntar: valeu a pena perder tempo com o bolsonarismo?

Graças a Bolsonaro todo o trabalho de décadas que PSDB e PFL fizeram para livrar a direita da associação com a ditadura militar morreu.

Vocês não são mais só o movimento que deu um golpe décadas atrás. Vocês são o movimento que tentou um golpe outro dia desses e, já que estavam no embalo, ainda convocaram uma superpotência estrangeira para taxar os produtos brasileiros.

Graças a Bolsonaro a reputação de uma direita competente tecnicamente estabelecida pelos economistas tucanos morreu.

Vocês são o movimento que cometeu o ato de incompetência administrativa mais dramático da história republicana: o assassinato em massa de brasileiros por falta de vacinas na segunda onda da epidemia de Covid.

Eu ouço Tarcísio dizendo que o Brasil precisa de um novo CEO e penso, ô bonitão Ciêôu, vocês não compraram vacina. E mais: destruíram a reputação do Doria, que comprou vacina.

A ideia de que a direita era menos corrupta do que a esquerda sempre foi uma cascata muito sem-vergonha, mas, enfim, vocês conseguiram emplacá-la por alguns anos.

Pois bem: o bolsonarismo matou as investigações sobre corrupção, transformou Moro e Dallagnol em políticos do centrão particularmente desprezíveis e implementou o orçamento secreto, origem de boa parte das denúncias de corrupção dos últimos anos.

Leiam as últimas notícias sobre roubalheira: tem uns esquerdistas ali, mas é quase todo mundo de vocês.

O bolsonarismo atrapalhou um processo orgânico de crescimento de uma direita com enraizamento social, que prosperou durante as primeiras presidências petistas e teve como principal base as igrejas evangélicas.

Afinal é na oposição que se constrói movimento social, partido com ideologia, debates intelectuais, tudo isso. Com a esquerda também foi assim.

Com Jair, a direita brasileira voltou ao seu velho repertório de fazer política pegando um pedaço do Estado –os militares, no caso– para fazer mutreta.

Vocês apoiaram isso tudo em 2018 para impedir a eleição de Fernando Haddad, cujo maior ato de radicalismo até hoje foi obrigar os ricos a pagarem a mesma alíquota de Imposto de Renda das professoras primárias e dos policiais militares.

Valeu a pena?