terça-feira, 5 de maio de 2020

Autoritarismo animal



Cala a boca. Eu não te perguntei nada
Jair Bolsonaro, na porta do Alvorada,  aos jornalistas

O Bolsa Família do Jair

Se não fosse natimorto, o liberalismo bolsonarista — este oximoro perfeito — estaria morrendo em praça pública. Natimorto porque, afora a propaganda influente, nunca foram conciliáveis o fenômeno reacionário bolsonarista, com seu ímpeto permanente para o choque, para a imprevisibilidade e, pois, para a instabilidade, e um programa de reformas liberais do Estado, como aquele vendido por Paulo Guedes, que pressupõe que o solo sobre o qual se obrará seja firme e que haja algum horizonte de constância para a empreitada.

Nada disso jamais houve — jamais haverá — sob um governo de Jair Bolsonaro, a fábrica de crises ele próprio. A usina de conflitos eleita para governar um país em depressão política profunda, onde grassa a insegurança jurídica — e onde só um gringo louco e desinformado, com muito dinheiro para queimar, investiria. Esse tipo exótico que simplesmente... inexiste. Mas que, garante-se, logo estará despejando bilhões aqui.

Houve, no entanto, quem se enganasse. (Ou se deixasse enganar.) Houve também quem enganasse.Para esses foi preciso que a peste sobre nós se abatesse; a chaga inclemente que precipita a imposição da verdade, que estabelece nova convenção social sobre o papel do Estado e que oferece a Bolsonaro, que é Dilma em matéria econômica, a chance de ser Bolsonaro antes de o imaginado — o que se livra do natimorto como se o ofertasse, tal qual vivo fosse, ao sacrifício da morte em praça pública.


Morre em praça pública o juízo daquele que, ante o baixar da praga, supôs que o presidente pudesse se aprumar para liderar algo que não a aplicação radical de seus propósitos. A pandemia é janela de oportunidades. E o homem é Brasil Grande. Ustra nos costumes; Tarcísio na economia.

Recomponho a imagem a que tenho recorrido: Bolsonaro como um girassol publicitário cujo norte se orienta pelo calor — pelo pulso — das redes. Retomo, assim, a reflexão iniciada na coluna da semana passada. Sobre o presidente estar trocando de pele, deixando pelo caminho — ainda antes da metade do mandato — a carcaça narrativa, de matriz eleitoral e existência precária, que o trouxe até aqui; o lavajatismo encarnado em Sergio Moro, por exemplo, já foi. Mais irá.

Um movimento, consciente, que resulta em perda de apoio e que não seria jogado sem a perspectiva bolsonarista de controlar o prejuízo e reequilibrar o tabuleiro por meio de conquista territorial em outro chão. É o que parece estar em curso. Um movimento que, tomando risco, identifica e mede ensejo, e que só ocorre porque fiado na troca de base social. Vai-se parte do esteio na classe média; talvez algo do alicerce na elite. Vem — para balancear — o arrimo nas classes populares.

As últimas pesquisas todas — que, de resto, apontam que a demanda da sociedade se moveu para a quase unanimidade de que o Estado deva sustentar artificialmente a economia — indicam que a aposta do presidente pode estar correta. Mesmo perdendo suporte a partir das crises que desaguariam nas quedas de Mandetta e Moro, mantém-se com popularidade estável e em patamar competitivo. Troca de pele — e o faz enquanto muda também de solo onde funda futuro. É essa a projeção que torna o guedismo descartável.

Quando a peste se lastreou entre nós, Bolsonaro fez seu jogo — um jogo de ganha-ganha. Covarde, lance de sociopata, mas eficaz. Aquele, esculpido na forja populista, que opunha saúde pública e saúde econômica — estando ele ao lado da economia popular. Eis o fundamento falacioso da narrativa bolsonarista— expresso pelo próprio presidente — quando diante do impacto assassino da Covid-19: o de que, independentemente das medidas restritivas decretadas pelos governadores, as mortes viriam, que as ações seriam, portanto, inócuas para a preservação de vidas, mas decisivas para agravar o flagelo da economia, o desemprego, a pobreza.

Aquele discurso de Bolsonaro — o do governante aflito sobretudo com a situação das famílias mais pobres — foi percebido como de genuína preocupação com a subsistência dos que não tinham gordura para permanecer em casa sem passar fome. Isso foi captado como compondo anova popularidade do presidente. E então, para fortalecer essa posição, vieram as medidas de auxílio econômico emergencial; com o que o Bolsonaro viu nascer — alicerçado na licença para abrir o cofre — o Bolsa Família do Jair.

Gostou. Tomará gosto por gastar. De modo que não me surpreenderá que, tendo surgido em caráter provisório, essa ajuda excepcional — recebida pelos beneficiados como uma ajuda de Bolsonaro — torne-se permanente, engolfando a antiga base do Bolsa Família e ampliando o corpo de assistência do Estado aos pobres.

É espantosa — um país à parte — a quantidade das milhões de pessoas que inexistiam formalmente e que de repente vão mapeadas pelo governo de turno. Desses milhões, quantos milhões poderão sernovos milhões de títulos de eleitor? Já pensou?

Nova base social é isso.

'No início foi a eleição'

Em 8 de maio de 1945, encerrava-se um dos capítulos mais sombrios da história alemã. A data ficou conhecida como o Dia da Libertação do Nazismo. Neste ano, diversos eventos foram programados para comemorar o aniversário de 75 anos do fim da Segunda Guerra Mundial, mas as celebrações acabaram sendo atropeladas pela pandemia de covid-19.

Em Berlim, o principal evento seria uma grande exposição ao ar livre em diversos pontos históricos da cidade. Para marcar a importância da data, o governo da capital alemã decretou ainda feriado no dia 8 de maio deste ano. Assim, todos teriam a possibilidade de participar das comemorações.

Da mesma maneira que as cerimônias dos 75 anos de libertação de campos de concentração em meados de abril foram canceladas e transportadas para plataformas digitais devido às medidas de isolamento social impostas no país, Berlim também transferiu a exposição para a internet.

Ao longo desta semana, estão sendo lançados podcasts, vídeos com depoimentos de testemunhas históricas e um aplicativo de realidade aumentada sobre os momentos que marcam essa data. O principal destaque do projeto é uma exposição virtual que debate diversos temas, entre eles o caminho de uma democracia para uma ditadura, os crimes nazistas, a dimensão europeia da guerra e a libertação da Alemanha.

Quatro lugares históricos estão em foco na exposição: o Reichstag, o Portão de Brandemburgo, a Alexanderplatz e o campo de concentração de Sachsenhausen.

Para chamar a atenção para a exposição e marcar a data, o governo de Berlim lançou uma campanha com cartazes espalhados por diversos pontos da cidade. Manchetes como "no início foi a eleição", "você quer o que você vota?" e "uma eleição e seu resultado" são confrontadas com imagens da cidade destruída no fim da Segunda Guerra Mundial.

Batalha em Berlim precedeu fim da guerra com morte destruição nas ruas
Visando ressaltar que eleições democráticas abriram o caminho para a ditadura de extrema direita do regime nazista no país, a campanha, segundo o site do projeto, também pretende lembrar "que é responsabilidade de todos evitar que a história se repita".

Com o crescimento do apoio a populistas de direita na Alemanha, que constantemente banalizam os horrores nazistas, e o avanço da extrema direita em todo o mundo, relembrar a história e manter viva essa memória se faz mais importante do que nunca.

"O perigo da extrema direita existe. Agora também vemos teorias da conspiração buscando transformar determinados grupos em bodes expiratórios para a pandemia", afirmou o secretário de Cultura de Berlim, Klaus Lederer, durante a coletiva de imprensa virtual sobre a exposição.

Aos jornalistas, Lederer ressaltou que, por isso, essa data deve ser usada para recordar o que pode acontecer quando extremistas chegam ao poder e também sobre como esse extremismo é alimentado.

Em relação às comemorações há um aspecto positivo do impacto da pandemia: a exposição, inicialmente local, migrou para o mundo digital e, desta forma, está acessível a um público muito maior. Qualquer um, em qualquer parte do mundo, poderá visitar esse museu virtual e conhecer um pouco mais dessa história.

Por outro lado, essa talvez seria a última efeméride na qual poderíamos vivenciar pessoalmente os relatos de testemunhas desse período, e isso, para mim, é uma das maiores perdas dessa mudança.

A exposição está disponível, em alemão e inglês, até 2 de setembro aqui.
Clarissa Neher

Bolsonaro perde, de novo

Foi um longo fim de semana para Jair Bolsonaro. Imerso na realidade paralela, à distância do país devastado por um vírus que já abateu mais de sete mil vidas, entreteve-se no seu jogo predileto: envolver as Forças Armadas na sua campanha para reeleição em 2022. É raro caso de governante empenhado num pandemônio político em plena pandemia.

No sábado, no Palácio da Alvorada, extravasou sua ira com a suposta conspiração para impedi-lo de governar. Citou Sergio Moro, João Doria, Congresso, STF e governadores. Lula e PT estão fora da sua agenda. Bolsonaro, agora, racha a centro direita. Briga com o governador paulista, a quem vê como adversário eleitoral.

No domingo ensolarado comandou nova manifestação, financiada por empresários amigos, em produção esmerada com faixas de apelo à “intervenção militar com Bolsonaro”. A claque, outra vez, pedia aos generais um golpe em favor do ex-capitão, afastado do Exército por indisciplina, há quase quatro décadas.

O cenário verde-amarelo ficou relevante porque pesquisas mostram supremacia da imprensa sobre as redes sociais em credibilidade — efeito da pandemia. “Acabou a paciência”, disse. “As Forças Armadas também estão ao nosso lado... Chegamos no limite.”


Varou a madrugada de ontem com o plano de declarar desobediência ao Supremo. Renomearia Alexandre Ramagem para o comando da Polícia Federal. A indicação havia sido suspensa pelo STF, por conflito de interesses — é amigo de Bolsonaro, cujos filhos estão sob investigação federal. Aceitou deixar Ramagem indicar seu vice na Abin, Rolando de Souza.

Resignou-se, ainda, a manter o general Edson Pujol no comando do Exército. Queria trocá-lo por Luiz Eduardo Ramos, um general da ativa no Planalto. Provocaria uma cisão, alertaram, acelerando a erosão já perceptível no respaldo militar ao seu governo. Também se conformou com a nota da Defesa lembrando o papel constitucional das Forças Armadas. Foi a segunda em 15 dias.

Bolsonaro perdeu, de novo. Mas quem o viu nas últimas 72 horas acha que o presidente-candidato vai continuar apostando no arriscado jogo de atração dos quartéis à política.

Presidente: 'Brasil não para'


Bolsonaro sempre de braço dado à ditadura

Jair Bolsonaro recebeu na manhã desta segunda-feira, no seu gabinete no Palácio do Planalto, o coronel da reserva do Exército, Sebastião Curió Rodrigues de Moura, de 81 anos, " Major Curió", um dos chefes da repressão à Guerrilha do Araguaia, nos anos 70, durante a ditadura militar. O encontro durou 25 minutos, entre as 10h20 e as 10h45, mas só foi incluído na agenda oficial do presidente às 21h22, depois de ser revelado pela coluna de Rubens Valente, do UOL, e após questionamentos da imprensa.
Em entrevistas públicas e em depoimentos à Justiça, Curió já disse que o Exército teria executado 41 guerrilheiros (tradução: termo pejorativo dado a brasileiros contrários à ditadura que optaram pela luta armada contra o regime militar) no Araguaia. Ao jornal "O Estado de S. Paulo", em 2009, Curió abriu uma mala cheia de papeis em que anotava, supostamente, detalhes de diversas dessas mortes. Os 41 militantes de esquerda teriam sido mortos, segundo ele, fora do campo de combate, quando não ofereciam risco aos militares.
"Curió", foi acompanhado de mais quatro pessoas, entre eles seu filho, Sebastião Curió Júnior e Leonardo Rodrigues de Jesus, o Léo Índio, primo dos três filhos mais velhos de Bolsonaro e assessor do senador Chico Rodrigues (DEM-RR). 

Amadorismo político não é virtude

Macron, Boris Johnson, Conte: líderes de diferentes colorações ideológicas, todos viram sua popularidade subir na pandemia. Nenhum deles foi particularmente genial: apenas compareceram à chamada da responsabilidade, o que naturalmente fez com que a população se unisse ao redor de seu chamado ao esforço coletivo pelo bem comum.

Jair Bolsonaro fugiu. Não só não foi capaz de implementar nenhuma resposta sua à epidemia como ainda escarneceu de quem tomava esse papel.

Numa franca admissão da própria inutilidade, quando informado que passáramos de 5.000 mortos, respondeu apenas: "E daí? Lamento, quer que eu faça o quê?".

Ele realmente acredita em fazer "isolamento vertical" e aplicar hidroxicloroquina universalmente? Tinha a faca e o queijo na mão para brigar por essas soluções, mas preferiu se ausentar e reclamar. Para completar, criou novas crises por conta própria, como a que culminou na saída de Sergio Moro.

Isso não é problema de ser esquerda ou direita: é de falta de capacidade política. Embora tenha longa carreira, Bolsonaro sempre foi um político inábil e inexpressivo, característica que carrega na Presidência.

Isso o torna um líder fraco, incapaz de criar consensos e capitanear o barco.

Em cima desse vazio, novas lideranças crescem e batem cabeça com ele. Para cada fracasso ou pedra no caminho, há um culpado: o Congresso, o STF, a imprensa, o ministro traidor, as pessoas que torceram contra. Uma hora as desculpas não enganam mais.

O contraste entre os dois ministros da Saúde na pandemia é ilustrativo. Mandetta, além de médico, é político. Quando a epidemia bateu em sua porta, não fez nada excepcional: desenhou um plano de combate (o isolamento social), alinhou-se com outros ministros e governadores e se comunicou com firmeza e tranquilidade com a população.

Teich é médico também, e suas diretrizes não diferem de Mandetta: manter o isolamento social. Mas não é político. Na hora de comunicar, vemos um ministro inseguro e vacilante. Em videoconferência com senadores, perguntado sobre o pico da doença, respondeu que "não sei e ninguém sabe". Disse ainda que "está literalmente navegando às cegas". Não é o tipo de discurso que inspire confiança! Por isso, desde a saída de Mandetta, o Ministério da Saúde sumiu.

Essa carência de habilidade política é natural num país que aprendeu a demonizá-la; em que "político profissional" é termo de insulto, e em que, portanto, o amadorismo é tido por virtude.

Com alguma justificativa --afinal, práticas inaceitáveis foram normalizadas no cotidiano da política-- e com uma boa dose de exagero, o Brasil deu um voto de confiança à negação da política. Não quis melhorá-la, mas destruí-la. Parte da culpa aí foi da imprensa e dos formadores de opinião. Nos anos loucos da Lava Jato e do impeachment, "a classe política" foi alçada à vilã nacional e aqueles que a combatiam eram santos.

O resultado está aí: um vácuo nocivo ocupa o poder e apresenta como única resposta à sua incapacidade o flerte com o autogolpe e a ditadura.

Já disse antes e repito que retirar Bolsonaro por seus crimes de responsabilidade --como manda a lei-- é o único jeito de recuperar alguma estabilidade no Brasil e nos retirar da rota golpista. Mesmo que isso aconteça, contudo, o desafio maior continuará posto: sermos capazes de escolher bons representantes. Optar pela boa política --aquela que entrega resultados e contempla a todos-- em vez do canto da sereia autoritária, que serve apenas ao ditadorzinho da vez.
Joel Pinheiro da Fonseca

Mata os velhos

Esse tipo de discurso já existia antes da pandemia: os velhos são considerados inúteis, desnecessários e invisíveis. Mas agora está mais evidente. Políticos, empresários e até o presidente da República já vieram a público dar declarações 'velhofóbicas'.

Homens e mulheres mais velhos, que já experimentam uma espécie de 'morte simbólica', ficam desesperados ao constatar que são considerados um peso para a sociedade
Mirian Goldenberg, professora titular do Departamento de Antropologia Cultural da Universidade Federal do Rio de Janeiro

Bolsonaro conspira à luz do dia

Jair Bolsonaro conspira à luz do dia. No domingo, o presidente usou mais um símbolo nacional como palanque para o golpismo. Na rampa do Planalto, confraternizou com extremistas que atacavam a democracia e agrediam jornalistas no exercício da profissão.

Irritado com decisões do Supremo, o capitão vociferou: “Não vamos admitir mais interferência. Deixar bem claro isso aí. Acabou a paciência”. No mesmo tom, ele prosseguiu: “Chegamos no limite, não tem mais conversa”. Só faltou mandar o cabo e o soldado cercarem o tribunal do outro lado da praça.


A ameaça do uso da força é cada vez mais explícita nas falas presidenciais. Diante de sua minoria barulhenta, Bolsonaro disse que as Forças Armadas “estão do nosso lado”. Os militares sabiam quem ele era quando embarcaram sorridentes no novo governo. Agora são arrastados para o centro de uma turbulência política prestes a virar crise institucional.

Em nota, o ministro da Defesa afirmou que as Forças “estarão sempre ao lado da lei, da ordem, da democracia e da liberdade”. O esclarecimento seria desnecessário se o país vivesse tempos normais. A tensão tende a se agravar nos próximos dias, à medida que avançam as investigações sobre o clã presidencial.

Bolsonaro tem pressa. Ontem ele nomeou o novo diretor da Polícia Federal, que assume com a missão de proteger pai e filhos. A operação incluiu edição extra do Diário Oficial e posse relâmpago a portas fechadas. Cenas de um governo acuado, que vê na radicalização a única saída para se segurar no poder.

***
Grandes artistas têm o dom de resumir o espírito do tempo. Em artigo no GLOBO, Aldir Blanc narrou uma conversa com seu velho parceiro:

“Recebi um telefonema do João Bosco. Triste, João falou sobre o ódio alucinado que grassa no país: ‘Clamam por sangue, querem enforcar, pedem a volta da ditadura, só um lado é preso. E há um ódio em tudo’. Sinto a mesma coisa”.

Poderia ter sido ontem, mas foi em 2015.

Crise nos emergentes, o ângulo cego da pandemia do coronavírus

São tantos os recordes deixados por essa crise relâmpago que, talvez, deveríamos pensar em parar no meio do caminho, tomar distância e olhar em perspectiva as estatísticas ― todas pavorosas ― que o dia a dia nos deixa. Até agora, as que continuam caindo, já não a conta-gotas e sim em avalanche, deixam uma enxurrada de más notícias impossíveis de se imaginar meses atrás. Os confinamentos levarão a economia global ao seu pior ano desde o crash de 1929, esse que só conhecemos através do cinema e dos livros de história econômica. A dívida pública baterá máximos históricos em boa parte do Ocidente e o emprego, a variável macro mais estreitamente ligada à economia real, reverterá boa parte dos ganhos registrados nos últimos anos, quando o golpe da crise financeira de 2008-2009 começava a ficar para trás na memória.

Há, entretanto, um ângulo cego que torna esta crise diferente das anteriores: o bloco de países em via de desenvolvimento, que não parou de ganhar peso no coquetel da economia mundial, fechará em 2020 seu primeiro exercício no negativo desde que existem dados. O que nenhuma das crises estritamente emergentes do último meio século conseguiu será feito por um minúsculo vírus de 0,000125 milímetros. Os números do Fundo Monetário Internacional (FMI) vão até quatro décadas atrás e o pior registro havia sido um crescimento de 1,2% de 1983. Nos dados do Banco Mundial, que vão até o começo dos anos sessenta, o pior exercício fechou com um aumento do PIB de 0,7% que hoje soa a anseios de tempos melhores: neste ano as nações em vias de desenvolvimento sofrerão um retrocesso de 1%, o que oferece uma imagem sem precedentes, com os países da OCDE e os de renda média e baixa sob o manto da recessão e a economia mundial à deriva.


“Nós nos centramos nos países ricos, mas deveríamos nos preocupar, até mais, com os emergentes”, frisa Ana Revenga, do think tank Brookings, que vê “otimistas demais” as previsões econômicas publicadas até agora sobre o bloco. “A desaceleração econômica na China [líder de fato do bloco] é algo muito novo e tanto a América Latina como aqueles que estão mais integrados à economia global são os que mais irão sofrer. Há pouco em que se agarrar nesse momento”. Em plena tempestade global, as economias avançadas têm mais razões do que nunca para se preocupar por esse vendaval que atinge o casco de países emergentes que superaram há tempos a barreira de 50% do PIB global. “Ao contrário da crise de dez anos atrás, que a China aproveitou como plataforma para sair ao exterior, agora estamos em um salve-se quem puder. Mas é cego, porque ou saímos todos [da crise] ou caímos todos”, alerta Lourdes Casanova, chefa do Instituto de Mercados Emergentes da Universidade Cornell. “O contágio econômico de segunda rodada às economias avançadas pode ser por via dos emergentes”.

Uma vez que sofre uma sacudida e meia por década, o bloco emergente nunca soube realmente o que é viver sem pressão. Nos anos oitenta foi a crise da dívida latino-americana. No meio dos noventa, quando seus membros começavam a ter acesso aos mercados internacionais, chegou o tequilazo [a forte crise econômica mexicana de 1994, que abalou o cone sul]. E, logo depois, a onda financeira dos tigres asiáticos. Em 2008 conseguiram sair quase incólumes: a explosão da mãe de todas as recessões no Ocidente, a Grande Recessão, só os atingiu de raspão graças ao sustento de matérias-primas que voavam alto. Mas dessa vez... “isso é diferente”, como escreveu recentemente a economista Carmen Reinhart. “Estão sob um choque múltiplo, e o mais preocupante: que coincida no mesmo momento tanto o golpe interno como o externo, uma vez que ambos são envergadura histórica”, diz Enrique Mendoza, diretor do Penn Institute for Economic Research e professor da Universidade da Pennsylvania.

Primeiro sinal, quantitativo: o estouro do mercado de capitais. Como sempre, chega de uma forma desordenada, com uma norma não escrita, mas que se cumpre à risca crise após crise. A primeira coisa que os grandes fundos de investimento fazem ―antes até de pensar em onde irão investir novamente― é recolher as velas nos países vistos considerados de maior risco: os emergentes, que são, por sua vez, os que mais precisam de investimentos e créditos para crescer. Esperando os dados de abril ―e já adiantando: não serão muito melhores―, em março saíram mais de 50 bilhões de dólares (274 bilhões de reais) das Bolsas emergentes e 31 bilhões (170 bilhões de reais) dos mercados de dívida, de acordo com os dados do Instituto de Finanças Internacionais, a patronal mundial do setor financeiro.

Segundo sinal, qualitativo: Bill Rhodes, um dos banqueiros que vivenciou mais de perto o plano Brady, de reestruturação da dívida de países emergente ―mais especificamente, da latino-americana― no final dos anos noventa, já alertou de que essa crise no mundo emergente é a pior que seus olhos viram: “Será difícil”. E o terceiro sinal, também qualitativo: a Fidelity, uma das maiores gestoras de ativos do planeta, das que realmente movimentam os mercados, alertou sobre o que está por vir nas economias em desenvolvimento. “Estou realmente preocupada por esses mercados”, disse nessa semana a chefa de estratégia global do conglomerado, Anna Stupnytska. A regra é um “protejam-se” total. Mas são tantos os canais de contágio possíveis de golpe, que se proteger hoje não é mais do que uma ilusão.

Nada escapa do incêndio. A começar pelos países manufatureiros ―asiáticos e o México, principalmente―, por sua dependência das economias avançadas ―Europa e EUA―, que são o destino natural de suas exportações, e por sua ligação com as cadeias globais de valor para as quais uma pandemia global é pura dinamite. Os dependentes do caminho das matérias-primas e do petróleo ―especialmente a América do Sul, mas não só ela―, porque o menor apetite da indústria e consumidores finais provocou um severo corte sobre volumes e preços. Os turísticos ―a Tailândia, ilhas do Caribe e um bom número de destinos africanos―, porque viram reduzidas a zero uma fonte de renda e divisas essencial para sua manutenção. E os dependentes das remessas de dinheiro ―sudeste e leste asiático, América Central e, novamente, o México (dessa vez os golpes atingem o país norte-americano por todos os lados)― porque o desabamento dos mercados de trabalho no Ocidente exaurirão a capacidade dos imigrantes de enviar dinheiro aos seus: de acordo com os cálculos do Banco Mundial, a queda nesse título ―que já é a principal fonte de divisa aos emergentes em seu conjunto― se aproximará de 20% anual.

Como combater um golpe dessa magnitude? Enquanto vários países da Ásia emergente lançaram planos fiscais ambiciosos, o bloco latino-americano ―com algumas exceções, como o Peru e o Chile, também os países que têm mais margem― optou por uma aproximação mais tímida. “É o momento da ação”, diz o número dois do Banco Mundial, Axel van Trotsenburg. “Os órgãos multilaterais e os Governos não podem especular. Sabemos que a crise é profunda, muito profunda, mas não podemos perder tempo falando sobre quanto: é preciso agir de maneira rápida, maciça e decisiva”. O chefe de operações do órgão reconhece que a margem de ação dos emergentes é menor ―“não têm a infraestrutura dos países da OCDE e não podem colocar sobre a mesa planos de estímulo do tamanho dos feitos pelos EUA e Europa”―, mas alerta quanto ao risco de um grande aumento da pobreza e da pobreza extrema.
As políticas ―sanitárias, econômicas e sociais― que se aplicarem hoje determinarão o amanhã
Ainda que o buraco da informalidade faça dos mercados de trabalho emergentes algo parecido a um queijo de Gruyère, as redes de proteção social desses países estão mais desenvolvidas do que em crises anteriores. “Mas estão planejadas contra a pobreza, e essa crise atingirá especialmente um grupo que está desprotegido: a classe média-baixa”, diz Revenga, do Brookings. “É preciso mudar o enfoque e ampliar o conceito de rede de proteção social. Talvez saiamos com uma visão mais ampla e mais heterodoxa, com programas de renda básica nos países que possam tê-los: custam caro, mas ajudam muito”.

Com menos músculo do que as economias avançadas para colocar em andamento planos de choque, a resposta dos emergentes se parece mais à oferecida pela Europa na Grande Crise de 2008 que a feita hoje pelo Velho Continente: mais monetária do que fiscal; menos contundente do que as circunstâncias exigem. Os cortes no preço de dinheiro se generalizaram, do Brasil à África do Sul, das Filipinas à Rússia; também as injeções de liquidez por parte dos bancos centrais. Mas tudo é muito incerto com um horizonte a curto e médio prazo tão carregado de nuvens. “As condições creditícias continuam se deteriorando”, avisou nessa semana a Standard & Poor’s. E as avaliadoras, como mostra a história mais recente, são especialistas em ratificar após a oportunidade passar o que os mercados descontaram antes. É a rubrica de que, por fim, as coisas ficaram feias.
Maior custo de financiamento

A pressão dos mercados é o elemento determinante na equação. O rumor sobre potenciais calotes se estendeu muito mais além dos suspeitos habituais, e países que até agora tinham sua dívida externa sob controle podem começar a sofrer para devolver o emprestado: o aumento do custo puro de financiamento ―sair hoje ao mercado financeiro com o rótulo de emergente é muito mais difícil (caro) do que há um par de meses― se soma à forte desvalorização de muitas moedas do bloco, o que por sua vez aumenta o custo de devolução da ―ainda grande― dívida referenciada em moedas fortes (dólar, euro, iene).

Uma centena de nações já bateu na porta do FMI à procura de algum tipo de ajuda financeira, de facilidades de liquidez (Colômbia) a linhas de crédito para fazer frente à emergência sanitária (Irã). “Os emergentes estão entre a cruz e a espada. Precisarão queimar reservas e acho que pensar que não ocorrerão defaults [calotes] é muito otimista”, diz Mendoza, da Universidade da Pennsylvania. Crítico com as medidas tomadas até agora pelo Fundo Monetário e o Banco Mundial ―“foram escassas”―, acha que no pior cenário ―já não tão distante― “será preciso um plano liderado pelo G7 e a China, como credores, que postergue os pagamentos e dê um certo alívio” ao bloco.

A luz no final do túnel sanitário hoje se vê mais próxima. O ritmo de contágios se deteve em vários países da Europa e Ásia; assim como as internações em UTIs e mortes. O debate já gira em torno dos calendários para levantar pouco a pouco ―e muito a muito, como na Alemanha― as medidas de confinamento e não sobre o colapso hospitalar e a falta de preparação para uma pandemia. “Mas o mundo que veremos quando sairmos totalmente será bem diferente”, finaliza Kaushik Basu, presidente da International Economic Association. “Existirão vencedores e perdedores, e os países que não souberem lidar com a situação perderão espaço nos mercados internacionais”. Um aviso aos navegantes que ecoa especialmente no bloco emergente, onde a pandemia tem algumas semanas de defasagem. As políticas ―sanitárias, econômicas e sociais― que se aplicarem hoje determinarão o amanhã.

A falsa fé nos militares

Caros brasileiros,

ainda se lembram da Operação Rio? Com essa "operação", o então governador do Rio de Janeiro, Marcello Alencar, queria combater a violência nas favelas da cidade maravilhosa. Em outubro de 1994, mandou tanques e tropas do Exército brasileiro aos morros. Depois de sete meses, desistiu. A "operação" era cara demais e não foi capaz de diminuir o tráfico e a violência.

Desde então, me pergunto: de onde vêm a confiança e a fé inabalável de que as Forças Armadas podem colocar ordem na casa? Será que é um sinal de desespero?

Até hoje, as Forças Armadas se mantêm como a instituição em que a população brasileira mais confia. Segundo uma pesquisa do instituto Datafolha de julho de 2019, 42% dos entrevistados disseram confiar muito nos militares, 38% confiam um pouco, e 19% não confiam.

Desde o fim da ditadura militar, as Forças Armadas foram chamadas inúmeras vezes para "socorrer" o país: no combate ao crime organizado, na Copa, nas Olimpíadas, nas UPPs, para expulsar garimpeiros de reservas indígenas. E, agora, na crise do coronavírus: o prefeito do Rio, Marcelo Crivella, pediu "ajuda" dos militares a fim de reduzir a circulação de pessoas nas ruas.


Mas apesar de todos esses gritos de socorro, o crime organizado continua aterrorizando a população nas comunidades das grandes metrópoles. A invasão de garimpeiros em reservas indígenas progride, assim como a grilagem e o desmatamento ilegal na Floresta Amazônica. E, claro, as infecções por coronavírus não vão parar com o Exército nas ruas.

O balanço dos militares na história recente do Brasil não é dos melhores. Após 25 anos no poder, eles entregaram o país altamente endividado, com hiperinflação, educação pública falida e alto desemprego.

As "obras faraônicas" do "Brasil Grande", entre eles a rodovia Transamazônica, o projeto de celulose de Jari e as usinas nucleares de Angra, fizeram a dívida externa do país estourar, e custam caro ao Brasil até hoje. A "década perdida" foi uma herança pesada para a transição democrática.

Além da dívida econômica, também a repressão política e a violação de direitos humanos durante a ditadura deixaram a sociedade marcada, e as famílias das vítimas, traumatizadas. O trabalho da Comissão Nacional da Verdade não causou um grande debate nacional, os crimes contra direitos humanos não foram punidos, e as velhas narrativas sobre os militares e um suposto passado melhor continuam. O "milagre brasileiro" se sobrepõe à repressão política, ao inchaço do setor público e à corrupção.

As experiências mais recentes com operações militares também não foram muito promissoras. Ficou evidente que tropas e tanques podem até abafar crises e garantir uma certa ordem, mas não são capazes de solucionar problemas estruturais. Sem projeto político, visão estratégica e diálogo com a sociedade, esses problemas são empurrados para a frente e estouram na próxima ocasião com mais impacto ainda.

Parece que as Forças Armadas entenderam isso melhor do que o próprio presidente e seus seguidores, que participaram recentemente de protestos a favor da intervenção militar na frente do Quartel-General do Exército em Brasília.

Pode ser uma ironia do destino que um capitão reformado perca o apoio justamente dos militares que ele mesmo chamou para compor seu gabinete. E em vez de uma intervenção militar, os militares venham a intervir pela democracia. Nunca imaginei que um dia chegaria a esse tipo de raciocínio.