segunda-feira, 22 de março de 2021

Pensamento do Dia

 


Medo de ser preso faz Bolsonaro perseguir seus críticos

O Brasil vive a catástrofe que os epidemiologistas previram no começo do ano passado. Não há mais vagas em UTIs. O equipamento necessário para intubações deve acabar em poucos dias em várias cidades. Já há pacientes sendo intubados com anestésico diluído.

Só 7,3% da população brasileira recebeu alguma dose de alguma vacina. Só 2,6% recebeu as duas doses. O número de mortos já beira os 3.000 por dia, e nesta semana cruzaremos a marca de 300 mil mortos. É muito mais do que a Aids matou no Brasil desde que surgiu.

Segundo reportagem da CNN Brasil, o governo Bolsonaro cancelou a compra de "kits intubação" em agosto do ano passado. Em setembro, recusou a oferta de vacinas da Pfizer. Durante esse tempo todo, fez guerra ao isolamento social, o que só torna o isolamento mais necessário e mais economicamente custoso cada vez que precisa ser reimplementado.

Até um sujeito alienado em sua bolha como Jair Bolsonaro sabe que isso tudo é culpa dele. Mesmo Bolsonaro sabe que, se as instituições funcionarem, ele será preso.


Bolsonaro está com medo.

Por isso, enquanto o departamento de camuflagem do Exército tenta desenvolver uma calça marrom que permita ao presidente da República voltar a andar nas ruas, Bolsonaro promove assédio judicial contra quem denuncia seus crimes.

O ex-reitor da Universidade Federal de Pelotas Pedro Hallal foi formalmente censurado por criticar Bolsonaro. O youtuber Felipe Neto foi investigado por ter chamado Bolsonaro, responsável direto pela morte de dezenas de milhares de brasileiros, de genocida. O ministro da Justiça, André Mendonça, determinou abertura de inquérito contra um professor do Tocantins que gastou R$ 2.000 para confeccionar um outdoor contra Bolsonaro comparando-o desfavoravelmente a um "pequi roído".

Na última sexta-feira, o ex-governador Ciro Gomes tornou-se alvo de inquérito da Polícia Federal assinado pelo próprio Bolsonaro; Ciro chamou Bolsonaro, cujo envolvimento nas "rachadinhas" familiares é indiscutível, de "ladrão".

É sempre bom lembrar, foi o aparelhamento da Polícia Federal por Bolsonaro que causou a renúncia do ex-ministro Sergio Moro.

A grande maioria desses inquéritos e processos não vai gerar condenações. São flagrantemente ilegais. Mas o objetivo dos bolsonaristas não é ganhar; é dar trabalho a seus críticos, fazê-los correr atrás de advogado, responder intimação, e assim desestimular que outras pessoas os critiquem. Os bolsonaristas sabem que, se um brasileiro falar sobre eles sem medo e/ou de graça, será para criticá-los.

Como resultado da ofensiva bolsonarista, o Supremo Tribunal Federal deve reunir-se em breve para finalmente decidir o que vale e o que não vale (tecnicamente, o que será ou não será recepcionado na Constituição) na Lei de Segurança Nacional. O Brasil precisa de uma LSN que proteja a democracia contra movimentos autoritários, mas que não interfira no sagrado direito dos brasileiros xingarem seus políticos.

É uma boa iniciativa, mas pergunto: até quando as instituições brasileiras vão jogar na defesa contra Jair Bolsonaro? Vocês acham que, se impedirem seu último crime, ele não vai cometer novos? Deu certo da última vez? Quantas vidas teriam sido salvas se ele tivesse sido punido na primeira?

Engrossa o caldo dos que querem ver Bolsonaro pelas costas

Qual o sonho de consumo do brasileiro ameaçado pelo vírus que bate à sua porta? Se for inevitável contraí-lo, quer uma vaga de UTI no melhor hospital que existir, medicamentos em profusão, cilindros de oxigênio à farta e uma equipe de sábios doutores e de experientes enfermeiros que cuidem dele em tempo integral.

A isso a pandemia nos reduziu. A isso que nos reduziu um presidente da República genocida por natureza que parece ter forte compulsão pela morte, sabe-se lá por quê. Freud explica, certamente. Assunto para estimular discussões intermináveis entre psicanalistas das mais diversas escolas.

Seria o caso também de eles se debruçar, junto com sociólogos, antropólogos e historiadores, sobre o comportamento até aqui indiferente ou resignado da maioria dos brasileiros diante do número de mortos pela doença que em breve superará a marca dos 300 mil. Por que procedemos assim? O que nos move?

Bolsonaro, que tantas vezes desafiou a morte como paraquedista do Exército antes de ser afastado de lá, acusado de conduta antiética, é movido pela falta de compaixão e pelo firme propósito de tirar vantagem de tudo, até de um banho nas águas frias do rio Jordão. Ele, acima de tudo! Os filhos, acima de todos!


Só muda quando o desespero toma conta de sua alma. Sempre que se vê acuado, apela às Forças Armadas e finge contar com o seu apoio para governar e, em situação extrema, ir além – se der, via adoção de medidas capazes de instalar no país um regime autoritário. Seu compromisso com a democracia é zero.

Se não a sabota mais do que já faz é porque lhe falta respaldo. Nas eleições de 2018, ele de fato foi o candidato dos militares, preocupados em impedir um eventual retorno da esquerda ao poder. Nas eleições de 2022, tudo indica que continuará sendo. Mas se for derrotado, lhe baterão continência à saída, tchau, e só.

Por formação, militar é de direita, aprecia armas, trata os subordinados aos berros e cobra obediência. Mas muitos nos escalões superiores são estudiosos e bons analistas. Sabem ler o mundo e o país. Sabem que a supressão da democracia faria do Brasil um pária internacional. E isso eles não querem.

Pária já é. A nova cepa brasileira do vírus aterroriza os governos da região. Peru e Colômbia proibiram voos do Brasil. O Uruguai mandou mais doses de vacinas para a fronteira com o Rio Grande do Sul. Quem vai do Brasil para o Chile fica em quarentena. Os argentinos impuseram restrições à entrada de brasileiros.

Insensível ao que se passa ao redor, Bolsonaro usa os militares como espantalho doméstico, e eles se deixam usar, encantados, como estão, com a volta ao poder, desta vez pelo voto. Não ligam quando o presidente fala em seu nome como fez, ontem, outra vez. É coisa de político, desculpam. Bolsonaro proclamou:

“Pode ter certeza, o nosso exército é verde-oliva e vocês também. Contem com as Forças Armadas pela democracia e pela liberdade. Estão esticando a corda, faço qualquer coisa pelo meu povo. Esse qualquer coisa é o que está na nossa Constituição, nossa democracia e nosso direito de ir e vir.”

E ao concluir uma das peças mais demagógicas do seu pobre repertório, prometeu: “Enquanto for vivo, enquanto for presidente, porque só Deus me tira daqui, eu estarei com vocês”. Estará para quê? Para associar-se ao vírus e dar passagem à morte? Para destruir a Amazônia? Para pôr a educação ao rés-do-chão?

Engrossa o caldo dos que à esquerda e à direita querem ver Bolsonaro pelas costas, se possível antes do fim do mandato. Já foi melhor negócio para o Centrão apoiá-lo em troca de benefícios. A companhia dele começa a tornar-se tóxica. Um deputado federal pernambucano, bolsonarista convicto, disse a este blog:

– Poderemos ir com ele até a porta do cemitério, mas não entraremos.

A chance histórica do STF contra um 'corpo insepulto'

O ex-ministro da Justiça Miguel Reale Jr. e outros seis juristas encaminharam a Gilmar Mendes um memorando sobre os artigos 22 e 26 da Lei de Segurança Nacional (LSN), que data da época do regime militar e, de uns tempos democráticos para cá, passou a ser invocada para solapar o direito da liberdade de expressão por gente que adora liberdade desde que no sapato alheio. Para se ter ideia, de acordo com um levantamento feito pelo Estadão, houve um aumento de 285% no número de inquéritos feitos com base na LSN apenas no dois primeiros anos de desgoverno de Jair Bolsonaro, na comparação com o mesmo período dos mandatos dos dois presidentes antecedentes, aqueles cuja chapa não foi cassada por excesso de provas. Entre 2015 e 2016, foram abertas 20 investigações; entre 2019 e 2020, 77 inquéritos. É um espanto, ainda mais quando se verifica que a maior ameaça à segurança nacional é justamente o sociopata protegido pela LSN.

Gilmar Mendes recebeu o documento porque é relator de uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, protocolada no Supremo Tribunal Federal pelo PSB, que questiona a constitucionalidade de onze artigos da LSN. Os autores do memorando concentram-se nos dois já citados. Os dispositivos são mesmo uma estrovenga digna de uma república das bananas. O artigo 22 prevê que é atentar contra segurança nacional: “Fazer, em público, propaganda: I – de processos violentos ou ilegais para alteração da ordem política ou social; II – de discriminação racial, de luta pela violência entre as classes sociais, de perseguição religiosa; III – de guerra; IV – de qualquer dos crimes previstos nesta Lei. Pena: detenção, de 1 a 4 anos”. Já o artigo 26 prevê como crime contra a segurança nacional: “Caluniar ou difamar o Presidente da República, o do Senado Federal, o da Câmara dos Deputados ou o do Supremo Tribunal Federal, imputando-lhes fato definido como crime ou fato ofensivo à reputação. Pena: reclusão, de 1 a 4 anos”.



Miguel Reale Jr. e os outros seis juristas preconizam que, do artigo 22 da LSN, “devem ser excluídos os casos em que a realização de propaganda venha desacompanhada de um resultado de perigo consubstanciado no abalo real do funcionamento das instituições do Estado de Direito, de modo a que se dificulte ou inviabilize o exercício das atribuições ou competências que lhes são constitucionalmente assinaladas”.
Notícias relacionadas:

Quanto ao artigo 26 da LSN, os autores do memorando afirmam que o “esse tipo penal, que confere especial proteção à honra de determinados agentes públicos encontra-se em descompasso com a Constituição e com a moderna jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e de outros Tribunais internacionais”. Mais: o artigo “simplesmente inverte a relação de primazia do institucional sobre o pessoal em um duplo sentido: ao confundir, em primeiro lugar, o ocupante da Presidência de um dos Poderes com a Presidência, e, em segundo lugar, ao confundir a Presidência com a instituição em si”. Os juristas argumentam que a preocupação expressa pelo artigo não é com o funcionamento das instituições, mas com a “honorabilidade” da Presidência ou de quem as exerce. “Essa dimensão individual, contudo, já vem atendida pela lei penal. A proteção dos indivíduos que, transitoriamente, representam o Estado deve, assim, restringir-se às proibições penais comuns já existentes, sobretudo aos crimes contra a honra previstos no Código Penal, que já prevê tutela especial da honra do Presidente da República e de funcionários públicos, em razão de suas funções”, afirmam os autores do parecer.

O documento encaminhado a Gilmar Mendes é uma peça tão bonita quanto necessária. Ela classifica o artigo 26″, do qual tem se valido Jair Bolsonaro e André Mendonça, como “um corpo estranho, um morto insepulto” e que o artigo 1º da LSN, ao prever os crimes que lesam ou expõem a perigo de lesão “a pessoa dos chefes dos Poderes da União”, é “símbolo de um insistente culto à personalidade”. E acrescentam: “O direito à liberdade de expressão apresenta-se, a rigor, com ainda mais robustez no contexto de críticas, mesmo ofensivas, contra agentes detentores do poder político, sobretudo se realizadas na arena pública, na discussão objetiva de assuntos de interesse comum”.

Na conclusão, Miguel Reale Jr., Adriano Teixeira, Alaor Leite, Alexandre Wunderlich, Maurício de Oliveira Campos Jr., Oscar Vilhena Vieira e Theodomiro Dias Neto dizem “Nesta ADPF 799 — antes que a primeira Lei de Segurança Nacional se converta em nonagenária — temos a chance histórica de assistir ao espetáculo republicano do triunfo do institucional sobre o pessoal, iluminado pela consagração do direito fundamental à liberdade de expressão”.

Como profissional que tem na liberdade de expressão o seu ganha-pão, agradeço aos autores desse memorando magnífico, em nome também de todos aqueles que estão ameaçados pelo Presidente da República, parlamentares e ministros dos tribunais superiores, que usam de excrescências legais para intimidar e calar vozes discordantes. Sempre lembrando que o nosso direito de falar implica o direito dos outros de ouvir, e este também é inalienável.

Sangue transborda para os palácios

Não sei mais quantas mortes ainda serão necessárias para esse convencimento. O Parlamento está anestesiado. Os congressistas perderam a capacidade de se indignar, não sei se o volume de emenda é tão substancial a ponto de acharem normal haver tantas mortes
Júnior Bozzella,(PSL-SP) que recolhe assinaturas para instalar uma CPI da Covid na Câmara

Turno da madrugada

Chove sobre os buracos mal tapados da avenida a essa hora vazia (são quatro da madrugada), chove sobre os postes como uma chuva prateada que metralha o ar de brilho, e eu me pergunto quantos têm atravessado a noite em claro, por insônia ou por assombro ou por vigília, quantos perdidos por um fio se sustentando, e ainda sorrindo entre o gentil e o delirante, e agora a chuva engrossa, se enviesa com o vento, enverga os galhos das árvores velhas da avenida, chove toda a escuridão do céu nessa chibata d’água que chamamos bátega, e eu me pergunto quantos dos que estão dormindo amanhã acordarão descansados, e quantas mais serão as baixas, e quanto tempo de apneia até subir de volta à tona, quanto tempo sem governo nos guiando uns aos outros, e quanto do nosso falso cotidiano não é já uma prévia de partida, quanto do nosso olá não é só melancolia, agora passa um carro solitário na avenida, levantando a água do asfalto num chiado longo que começa a abrir o dia, e como é que discordamos da toada deprimente, como que ainda desafinamos da realidade corrente, como esse súbito azul limpo sobre as nossas cabeças, que loucura de beleza, que prazeres de Pompeia, que amor triste de Hiroshima ainda nos faz vivos por dentro?, contra essa vida sonâmbula, contra esse fim dos tempos todo tempo, que Rilke na mochila, que canção, que carinho, que olhos na medalha ainda nos dão ganas de viver?, e agora passa o primeiro ônibus da manhã, num chacoalhar de máquina oca, vai acordando uma cidade fantasmagórica, a chuva de há pouco já é quase mentira, e eu só me pergunto quais palavras estão quentes, quais os nomes do desejo que ainda vibram, qual sonho ativo, qual ave livre de medo, qual fé ferrenha, qual passo aéreo, qual alegria.

Mariana Ianelli

Imagem do Brasil (lá fora)

 


Para dizer nunca mais

Tanto falamos numa frente para combater Bolsonaro, centro, centro-direita, centro-esquerda, empurra para lá, empurra um pouco para cá, tentamos encher com nossos desejos e preconceitos o ônibus que nos levaria para longe dessa grotesca versão de governo.

Olhando o cotidiano, observo que essa frente até mais ampla e generosa do que projetamos acabou se formando em torno do tema crucial: a rejeição ao papel de Bolsonaro na pandemia.

Mesmo os presidentes do Senado e da Câmara, eleitos com o apoio de Bolsonaro, tentam se distanciar dele quando o tema é a Covid-19.

De certa maneira, a maioria compreendeu Bolsonaro: 56% dos entrevistados na pesquisa do Datafolha o consideram incapaz para dirigir o país.

Isso pode ser uma boa notícia para as eleições. Mas seria um erro monumental pensar em eleições quando temos diante de nós um caminho complexo e tortuoso como o combate à pandemia.

O líder do governo disse, no auge dos recordes letais da pandemia no Brasil, que a situação do país é “até confortável”. É uma declaração estapafúrdia, que os fatos esmagam. Noto, entretanto, que mencionou na mesma fala a existência da oposição a Bolsonaro.

Ocorreu-me pensar que o líder considera que a oposição verbal a Bolsonaro é também algo que está dentro da zona de conforto.

A existência de uma pandemia devastadora e de uma frente ampla contra Bolsonaro pede mais que uma oposição verbal. Ele se incomoda quando o chamam de “genocida” ou mesmo de “pequi roído”.

Certamente, vai se incomodar mais quando essa frente ampla multiplicar suas ações em todos os níveis do combate à pandemia.

Quando escrevi que os governadores e a sociedade deveriam avançar no caso das vacinas, alguns acharam que não havia salvação fora do poder federal. Felizmente, a realidade mostrou que é possível agir. Governadores do Nordeste conseguiram fechar negócio para comprar 37 milhões de doses da Sputnik V. Na verdade, a realidade já mostrara antes disso que foi a iniciativa de São Paulo que garantiu afinal a maior parte das vacinas que imunizam neste momento cerca de 5% da população.

Ficou evidente também que o governo não tem o monopólio das relações externas. Na verdade, seria um absurdo colocá-las nas mãos de um chanceler extremista como Ernesto Araújo.

O caminho diplomático não se resume a comprar vacinas. Os governadores tentam convencer a OMS da urgência da remessa da compra de três milhões de doses, já efetuada junto ao Covax, consórcio que busca democratizar a venda de vacinas.

Lula propôs que Biden se encontre com outros líderes mundiais e discuta esse ponto central das vacinas no mundo. Aliás, Biden já participou de um encontro para garantir vacinas a alguns países asiáticos.

Os Estados Unidos têm 30 milhões de doses da vacina de Oxford estocadas em Ohio. Ela ainda não foi aprovada pelas autoridades sanitárias de lá. Parte será doada ao México.

A vacina de Oxford seria útil aqui. Poderíamos comprá-la, se for o caso, ou mesmo pagar com as doses que a Fiocruz produzirá no segundo semestre. Essas manobras diplomáticas não são simples. Mas os governadores poderiam tentar.

Tudo o que fizermos agora, seja no nível diplomático, seja no da própria sociedade, é um ato dessa frente ampla que se formou não apenas contra a Covid-19, mas contra seu principal aliado objetivo: Jair Bolsonaro.

Não importa o que aconteça lá na frente. Quando tivermos eleições, certamente a frente ampla terá amadurecido não só a ponto de ajustar as contas com Bolsonaro na Justiça, mas também para redefini-lo como o adversário comum.

A realidade nos trouxe uma tragédia que pode nos custar meio milhão de mortos. Mas, depois dela, saberemos dizer: nunca mais. 
Fernando Gabeira

Democracia como vacina política e as cloroquinas de ocasião

Dedico a coluna de hoje ao Dr. Severino Elias, médico com profundo sentido de missão, que nos deixou ontem, depois de semanas de luta pessoal contra a Covid. Essa foi, porém, apenas a sua batalha final. Antes desse desfecho, chorado por quem perdeu o amigo e a referência profissional, houve um ano de dedicação e bravura cotidianas para não abandonar seus pacientes, apesar dos mais de 70 anos de idade e quase 50 de serviços prestados. Dele é possível dizer, sem exagero, que doou sua vida a uma vocação. Eis a razão desta homenagem, que me vale, também, de estímulo para escrever o que segue.

Peço perdão a Cabral (o João) por passar agora da evocação de uma morte e vida severina, alegórico exemplar do seu poema imortal da humanidade brasileira, para uma alusão à mais abjeta negação de qualquer humanidade. Incluo, a contragosto, entre as reflexões de hoje, as mais recentes agressões psicopáticas do presidente da República à dor infinita do povo que ele deveria defender. Evocar seus ares debochados com as vítimas da falta de ar e o seu incentivo perverso a saques e outras violências incalculáveis é um introito necessário ao argumento que aqui procurarei desenvolver.

O desespero de incontáveis pessoas está fazendo com que se disponham a pagar qualquer preço para que Bolsonaro seja tirado, o quanto antes, do lugar de poder que ele desonra. Compreensível desejo que não pode, contudo, nos distrair da hipótese de que um Putin militar esteja nos aguardando na esquina. O que o Dr. Marcelo Queiroga está prometendo fazer caso assuma mesmo o Ministério da Saúde pode dar ideia do que seria o resultado da substituição do presidente por seu vice, se feita de modo imprudente, sob pressão desse desespero, ou por sua manipulação. Seria cloroquina, nada mais.

Confirmam-se, no MS, sombrias conjecturas. O que era péssimo com o general Pazuello, ensaia piorar. Sua queda banal - que para muitos parecia ser cirurgia providencial, a ponto de se apostar fichas numa CPI de tempestividade e eficácia duvidosas - não diminuiu a premência da vigilância constante da fera, pela comunidade da saúde, imprensa e sociedade, assim como não provou ser medida mais eficaz do que o tratamento paliativo, tópico, atenuante, conservador, com que a atitude prudencial do Congresso e do sistema político de um modo geral, contém efeitos dos impulsos de morte emanados do palácio.

O médico que se quer impor ao ministério é mais perigoso do que o general destrambelhado. Ele pode destilar o veneno da dúvida na opinião técnica, dividi-la, isso resultar em maior desorientação ainda da população e essa desorientação, por sua vez, alimentar ainda mais aglomerações e outras atitudes de risco, às quais terão que corresponder atitudes mais duras de polícias estaduais. Tudo isso gera um altíssimo potencial de conflito político entre poderes e de confrontos de rua, inclusive físicos, entre pessoas. Em síntese, o caos social expresso em desordem. Essa é, ao fim e ao cabo, a meta que Bolsonaro persegue, enquanto finge preocupar-se apenas com as urnas. Resistamos ao autoengano: se urnas prometem, cada dia mais, ser um pesadelo para ele, não se deve esperar que marchará para elas como se fosse um líder democrático, porque ele é a antítese disso. É claro que precisamos estar cientes de que o subversivo fará tudo que estiver ao seu alcance para virar a mesa antes disso. E que quem comanda nossas instituições não pode vacilar um só dia na vigília para impedi-lo de tornar seus planos realidade.

Impedir não é, contudo, virar a mesa antes dele, permitindo que o impulso autocrático que ele encarna retorne ao jogo com força. O tratamento conservador, da democracia sem atalhos, continua sendo crucial para a saúde política e social desse paciente em estado crítico que é o nosso país, por mais enervante e angustiante que essa linha de conduta seja. Democracia é a vacina, tudo o mais, cloroquina.


Embora a queda de Pazuello sequer tenha sido consumada na prática, as primeiras pistas oferecidas pelo agente Queiroga, um projeto de Dr. No (personagem de romance de Ian Fleming, popularizado pelo cinema, ao fazê-lo antagonista de James Bond, o agente 007), permite também imaginar o que seria um pós-bolsonaro antecipado sob a batuta salvacionista do ex-general Mourão. Ou mesmo a investidura desse último, como quer a procuradoria do MPF junto ao TCU, na gestão do combate à pandemia. Nenhuma morte já marcada para ocorrer, por falta de remédios, oxigênio, ou leitos, deixaria de ocorrer. Mesmo se um anti-bolsonarista autêntico (que nem de longe é o perfil do ex-general em causa) chegasse ao MS, levaria semanas, talvez meses, para conseguir o que hoje falta para salvar vidas de novas dezenas, talvez centenas, de milhares de brasileiras e brasileiros marcados para morrer anonimamente.

É preciso ver que se torna cada dia mais difícil conter a revolta e a suposição de alívio que a ideia de Bolsonaro ser logo afastado produz. Nessas condições, a solução proposta ao TCU, se considerada, poderá produzir mesmo algum alívio, se for uma tentativa de, ao menos, impedir o prolongamento da atual tragédia seguindo semestre afora, que é a missão dada, pelo visto, ao ministro que consta estar prestes a assumir. Ficam, mesmo assim, dúvidas, que nada têm de laterais, sobre o que ou quem levaria Mourão - caso assumisse a gestão da pandemia e até cancelasse a virtual nomeação de Queiroga - a tirar os militares do Ministério da Saúde e sobre até onde iria o seu poder para tirar, de agências governamentais externas ao MS, outros agentes que poderiam ajudar Bolsonaro a minar uma suposta nova política sanitária para perpetrar a próxima etapa do seu plano macabro. Questões em aberto.

A partir dessas dúvidas, alguém poderá argumentar, com alguma razão, que esse paliativo não resolve, sendo preciso afastar Bolsonaro, não apenas da gestão da pandemia, como do próprio cargo que ocupa. Mas ainda que sigamos esse raciocínio aparentemente pragmático, respaldado pela intensidade da atual tragédia sanitária, é preciso indagar, de saída, em que bases poderia surgir, de fato, um novo governo e não apenas a troca do ex-capitão por um ex-general no comando do mesmo governo. Quem, nessa situação ditada pelo desespero, poderia exigir de Mourão o desmonte do atual governo e do dispositivo paramilitar que foi nele introduzido e, com isso, constituir um governo de transição? Mais provável seria que tomássemos o caminho da Rússia, mudando expectativas e regras, para manter a situação.

Com isso não quero dizer que alternativas intermediárias arriscadas devam ser preliminarmente afastadas, em qualquer hipótese. Algo que se considera provável não é sempre uma fatalidade, claro. A política democrática pode criar caminhos onde parece haver apenas muros e precipícios. Essa é a sua missão legítima, desde que se respeite a Constituição, a premissa que a legitima. Mas o que não se pode é ser afoito, ou ingênuo, diante dos perigos. Para evitar risco de Rússia, o melhor é aguentar as pontas até 2022, no limite máximo do possível. E correr o risco de que tentem invadir, antes, o nosso capitólio. Será custoso defendê-lo, mas igualmente preciso.

O desafio à resiliência democrática já era grande, antes da reentrada de Lula no primeiro plano da cena política. Agora, a situação torna-se ainda mais complexa e precisa ser analisada por ângulos diversos. De um lado, é óbvio que mais gente do topo, do establishment, seja civil ou militar, tende a ser tomada, como se fossem ultra-esquerdistas voluntariosos, por uma súbita e suspeitíssima pressa de livrar logo o país de Bolsonaro e entregá-lo a um guardião que atalhe o caminho até as urnas, não para calar a voz do demos soberano, mas para modular a sua fala. De outro lado, a visibilidade que ganhou, há dez dias, uma primeira alternativa pré-eleitoral concreta a Bolsonaro pode fortalecer e animar democratas de várias orientações políticas a persistirem na aposta na democracia, apesar das tentativas de bloqueio a essa reta visão que, por vezes, tornam sinuoso esse caminho.

No horizonte está, como é óbvio, uma eleição daqui a um ano e meio. Ainda bem que assim é. Ligada a esse horizonte, sem se prender exclusivamente a ele, é que pode prosperar uma política de unidade democrática. Com o cuidado de não se fazer dela um evangelho oco, desligado da realidade cotidiana das pessoas comuns. Tão importante quanto pregar unidade é deixar claro o que se quer dizer com ela.

Proclama-se a torto e a direito a necessidade de uma “frente única” contra Bolsonaro. Essa frente única não é e nunca foi provável, do ponto de vista eleitoral. O que se pode ter, ou melhor, o que temos tido é uma frente amplíssima em defesa da democracia contra as investidas golpistas e autocráticas do palácio e de suas cercanias espúrias, visíveis e invisíveis. E mais recentemente nota-se também a formação de uma frente política e social igualmente ampla, em prol de vacinas, de vacinação e do provimento, na contramão da desorientação deliberada que Bolsonaro dá ao governo federal, de mínimas condições de governabilidade e de amparo médico, hospitalar e social nesse instante crítico da pandemia.

Mas isso é uma coisa e a questão pré-eleitoral é outra. Não há como juntar as forças políticas democráticas, de direita, centro e esquerda em torno de uma única candidatura já no primeiro turno das eleições presidenciais. Se pensarmos bem, isso nem seria desejável, pois anteciparia o segundo turno para o primeiro sem que os eleitores pudessem captar o posicionamento atual de cada força política. Essa visão turva tenderia a reeditar o script de 2018 e o resultado dele, como sabemos, é o desastre que vivemos hoje. Lula e o PT podem até ser protagonistas no novo cenário, sem que isso signifique flertar com a tragédia. Flertar com a tragédia será, sim, repetir, não tanto os atores, mas aquele script. Entre a proliferação de candidaturas ao centro e à esquerda (como houve em 2018) e a antecipação de um segundo turno ainda durante o primeiro, um meio termo é desejável e possível.

Dois processos de agregação oposicionistas podem ocorrer, um na centro-direita, outro na centro-esquerda e ambos tenderem ao centro, com seus candidatos evitando, ao máximo, trocar farpas e assim prepararem terreno a uma aliança no segundo turno. A agregação da esquerda ao centro dificilmente se fará em torno de outro nome que não Lula e de outro partido que não o PT. Já a que pode ir da centro-direita ao centro é só incerteza se o critério for a intenção de voto, cuja medição, hoje, só pode refletir o recall de 2018. Se o critério for o capital político estimado como potencial de voto, a incerteza diminui e sobressai, como já comentei aqui na semana passada, o nome ex-ministro Luiz Mandetta.

A possibilidade de uma saída desse tormento por uma via democrática torna legitimo que se fale, sim, abertamente, de política, em plena pandemia. Sei que o preço em vidas para manter a democracia está sendo muito alto. Mas os países que conhecem o seu valor, pagam, porque sabem que ela, a democracia, é a única vacina disponível e que, fora dela, não há solução melhor e mais sustentável do que as lentas e penosas soluções que, através dela, a política pode construir. Essa convicção - sem a qual uma sociedade se torna escrava – é que impede elites políticas e sociedade civil de alienarem a condução do país a autocratas, cloroquinas que estão sempre de plantão. Saber recusar, no meio de uma tragédia social, esse barato que afinal sairá mais caro, é teste definitivo de maturidade democrática. A sociedade que passa por esse teste não só se livra do inimigo - ainda que tarde e chore muitas perdas severinas - como submete à justa punição, na devida hora, quem a ele se aliou na hora de batalhas decisivas.

Desavergonhados não faltam


Pode ter certeza, o nosso Exército é o verde oliva e são vocês também. Contem com as Forças Armadas pela democracia e pela liberdade. Estão esticando a corda
Jair Bolsonaro

Bolsonaro é tetra

Aos 22 anos, o caçula da família virou alvo de inquérito por suspeita de tráfico de influência. Ele tem usado o sobrenome para abrir portas em Brasília. Circula com empresários, recebe presentes e se reúne com autoridades fora da agenda oficial.

Em agosto passado, o Zero Quatro esteve com o secretário especial da Cultura, Mario Frias. O jovem disse ter tratado de interesses do setor de games. Dois meses depois, seu pai reduziu as alíquotas do IPI sobre jogos eletrônicos. Na contramão do aperto fiscal, a União abriu mão de arrecadar cerca de R$ 80 milhões até 2022.

Em novembro, Jair Renan levou empresários ao gabinete do ministro do Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho. O grupo queria apresentar um projeto de habitação popular a ser financiado pelo governo. A pasta informou que o Zero Quatro esteve no encontro “na qualidade de ouvinte”.


Ao que tudo indica, um ouvinte bem remunerado. Reportagem do GLOBO revelou que a empresa presenteou Jair Renan com um carro elétrico avaliado em R$ 90 mil. A firma ainda doou placas de granito para o escritório da Bolsonaro Jr. Eventos e Mídia, registrada em nome do caçula do presidente.

A troca de favores também marcou a inauguração do negócio de Jair Renan. A “Folha de S.Paulo” mostrou que a Astronauta Filmes registrou a festa sem cobrar pelo serviço. Em 2020, a produtora recebeu ao menos R$ 1,4 milhão dos cofres federais.

O advogado do clã, Frederick Wassef, nega qualquer irregularidade. No ano passado, ele negou ter escondido Fabrício Queiroz na sua chácara em Atibaia.

A abertura de inquérito na PF faz de Jair Renan o quarto filho do presidente sob investigação. Flávio Bolsonaro, o Zero Um, já foi denunciado por peculato, lavagem de dinheiro e organização criminosa. Carlos, o Zero Dois, é suspeito de reproduzir o esquema da rachadinha na Câmara Municipal. Eduardo, o Zero Três, é alvo de uma apuração preliminar da Procuradoria-Geral da República pela compra de imóveis com dinheiro vivo.

Os quatro casos têm a marca do patriarca da família. Bolsonaro ensinou os filhos mais velhos a transformar a atividade parlamentar num negócio lucrativo. Em 28 anos na Câmara, ele também nomeou funcionários fantasmas e engordou o patrimônio com transações em espécie. No caso de Jair Renan, a lição foi pelo exemplo. O caçula ainda não entrou na política, mas já ganha dinheiro com o nome do pai.

Ação Direta de Irresponsabilidade

Ele nunca teve qualquer respeito pelo Congresso e demais esferas de poder, sempre fez pouco caso das instituições. (Des)governa pelas redes sociais, escorraçando qualquer um que dele ouse discordar. Agora, via uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) contra restrições para deter a circulação do coronavírus impostas pelos governadores do Distrito Federal, Bahia e Rio Grande do Sul, o presidente Jair Bolsonaro materializa em juridiquês a via direta que sempre desejou, sem ser atrapalhado por opositores e intermediários.

De quebra, tenta mais uma vez jogar nas costas de outros os custos e as consequências de sua irresponsabilidade.

As 24 páginas da Adin traduzem para a linguagem técnica e formal as bestices ditas sobre a pandemia quase todos os dias no cercadinho do Alvorada e nas lives semanais. Expõem seu absoluto descaso com a doença que já matou quase 300 mil brasileiros e a falsa rivalidade entre saúde e economia, além de impor a liberdade individual acima da responsabilidade coletiva.

Nos detalhes, a Adin esclarece pretensões que vão muito além da peça jurídica.


Além de se apresentar como defensor do povo diante da tirania de governadores e prefeitos - um papel e tanto para quem virou a encarnação do genocida -, Bolsonaro se indispõe abertamente com quase a totalidade dos governadores em favor dos 30% contrários às medidas de isolamento. É esse o público que ele quer manter cativo. Para ir às ruas em seu nome e defendê-lo das consequências nefastas da pandemia, das mortes em série, dos hospitais abarrotados, do desemprego e da fome.

A questão é matemática. Diante da escalada progressiva de mortes pelo coronavírus nos últimos 25 dias e da acelerada queda de popularidade e confiança, Bolsonaro teria duas saídas.

A primeira, uma inversão radical em sua biruta desvairada, ele usou por um par de dias. Passou a colocar máscara, parou de provocar aglomerações em eventos lucrativos para campanha e inúteis para o país. Demitiu o obediente e atrapalhado general do Ministério da Saúde. A outra era a de agradar a sua galera, o terço fiel, cerca de 15% fidelíssimos.

Entre os pássaros que voam e os que tem nas mãos, preferiu segurar os seus na gaiola.

Até porque Bolsonaro, cujo ídolo Donald Trump foi descartado nas urnas, sente o peso de ter sido um dos poucos líderes mundiais a negar taxativamente a pandemia e a ciência. E o único que mesmo depois das pilhas de mortos ainda não se converteu.

Está careca de saber que é difícil agora, e será ainda mais árduo durante a campanha de 2022, desdizer o que disse sobre vacinas - “falar fino”, “virar jacaré” - e a doença que banalizou - “gripezinha”, “e dai?”. Tudo registrado em vídeo, a um google de distância. Seus adversários não deixarão os eleitores esquecerem do “país de maricas” ou do “não sou coveiro”, e tantas outras agressões desumanas desferidas cotidianamente enquanto famílias e amigos choravam seus mortos.

Bolsonaro também sabe e a Advocacia-Geral da União está cansada de saber que as restrições impostas por governadores e prefeitos para tentar deter a contaminação nada têm a ver com estado de sítio. Ele tem repetido o termo propositalmente, para deixar o cheiro de golpe no ar.

O Brasil de Bolsonaro não tem 290 mil mortos, as UTIs não estão lotadas, não faltam profissionais de saúde nem medicamentos. O fechamento do comércio e a restrição da circulação de pessoas têm o único intuito de prejudicar o seu governo. “Todo local está morrendo gente (sic), aqui virou guerra contra o presidente”, defendeu-se diante de seus apoiadores.

Não, presidente. Nos locais com aumento de contágio, por menor que seja, os presidentes lideram o combate. Decretam distanciamento social ou fecham tudo, promovem o verdadeiro lockdown, que cidade brasileira alguma viu ainda. Imunizam seu povo. Não fazem comercial de remédios ineficazes nem propagam notícias falsas. Muito menos perdem tempo em guerrilhas contra governadores ou qualquer outro poder. Têm mais o que fazer.

Diante de tamanho descalabro, não se pode perder de vista um outro tipo de Adin, desta feita uma Ação Direta de Irresponsabilidade contra Bolsonaro, vulgo impeachment.
Mary Zaidan