segunda-feira, 30 de março de 2020

Pensamento do Dia


Para Trump, 200 mil mortes nos EUA são vitória. Perto do "Mito", vira Kant

A exemplo de Jair Bolsonaro, Donald Trump não dava muita bola para esse tal coronavírus. Fazia piadinhas, ironias, sugeria que isso era uma perturbação a seu governo oriunda dos democratas, que estariam tentando politizar a questão. Até que recebeu o alerta. Milhões poderiam morrer nos EUA. E ele mudou de prosa. Hoje, em todo o universo, o único negacionista é mesmo Jair Bolsonaro. Neste domingo, Trump prorrogou a quarentena até 30 de abril. Mas essa não foi a notícia mais importante — ou horripilante — do dia por lá.

No cenário mais pessimista, previa-se que a Covid-19 poderia matar até 2,2 milhões de americanos. Agora, o presidente considera que, se a doença matar 100 mil ou mesmo 200 mil, isso já será uma vitória.


“É tudo histeria e conspiração!!!” (Stuttgarter Zeitung)
Não se trata de delírio. Anthony Fauci, diretor do Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas, estima que haverá mais de 100 mil mortes nos EUA em razão da Covid-19. Informa a Folha: "Desde 2010, gripes matam entre 12 mil e 61 mil americanos por ano, de acordo com os Centros de Controle e Prevenção de Doenças dos EUA (CDC, na sigla em inglês)." Aqui no Brasil, alguns cafajestes leriam assim esses números: "Estão vendo, isso é normal..."

Ocorre que as, digamos, gripes tradicionais continuarão a fazer seus cadáveres. Mas notem que a Covid-19, na estimativa mais modesta, faria em 2020 quase o dobro de vítimas do que fizeram as outras em seu pior ano.

Como se vê, não é verdade que Bolsonaro não tenha ideias próprias e se limite a ser um capacho do presidente americano. Quando o assunto é morticínio em massa, ele tem a sua própria concepção de mundo. E faz Trump parecer um verdadeiro Kant.
Reinaldo Azevedo

Presidente acima de todos, e de tudo

É impressionante um líder colocar em risco a vida dos seus cidadãos
Steven Levitsky, autor de "Como as democracias morrem"

O clown sem graça

Ó meu ódio, ódio majestoso,
Meu ódio santo e puro e benfazejo
Cruz e Souza, "Ódio Sagrado"
.

Numa visão superficial, parece que na esquerda sobram os quadradões e na direita deitam e rolam os “de boa”. O presidente, quer dizer, me desculpem pela violação de um cargo tão sagrado, me corrijo: o presindecente apregoa por aí que o vírus made in China é bichinho bobo e que temer um inimigo miúdo desses é pura histeria. Ele se parece com amigos inconsequentes que sempre tivemos. A esquerda, nessa metáfora, é o tiozão preocupado, o que acha que nove da noite é hora avançada para moços e moças estarem pelas ruas. No caso do enfrentamento ao vírus, é melhor se trancar em casa e esperar o pior passar. Nunca fomos tão tiozões e tiazonas. Viva a caretice, que enfim encontra serventia.

Noves fora o vírus e tudo que ele nos faz enfrentar — seu contágio, de um lado, nosso caráter humano, de outro —, o fato é que, diante desse desgoverno eleito, nossos dias são dedicados a assombros, sustos e depressões. Pelo menos os meus têm sido assim. Penso que, por sorte, tenho a literatura, essa ilusão que nos fortalece ao oferecer uma realidade paralela. Quem não usufrui da arte (como “produtor” ou “consumidor”) passa um perrengue maior. Leiam! Ouçam música! Visitem virtualmente os museus! Dancem sozinhos em seus quartos!


Não estou contra este governo agora que virou modinha ser contra — modinha é esta expressão. O atual ocupante da presidência entrou no meu raio de observação quando, em seu voto no impeachment da Dilma, fez loas a um desqualificado torturador. Naquele instante, achei que o senhor deveria ter saído preso da sessão. Não saiu, o que prova que nosso acordo em torno da Anistia deixou um monte de cicatrizes e, peço desculpas pela próxima palavra, empoderou os que, a serviço do Estado, torturaram e mataram.

O sujeito em foco neste texto tem dado mostras claras de que não tem preparo nenhum, muito menos para governar. Alguns dizem que está de olho na reeleição, ouso discordar, os políticos estão sempre de olho na reeleição. Para mim, ele governa respondendo a interesses escusos, especula-se que das milícias. Soma-se a isso sua personagem popularesca. Apegado à imagem de machão e de homem do povo, ecoa impropérios, incentiva a violência, em particular contra as mulheres. A palavra incivilidade cai como uma luva sobre o desgovernante do país.

Sua atuação no dia das manifestações a seu favor deu mostras de seu descontrole. Suspeito de ser portador do vírus que, indiferente a países ricos ou pobres, tem aterrorizado o mundo, o paspalhão foi à rua cumprimentar e tirar selfies com os fãs. Merecia, novamente, sair dali preso. Passa-se mais uma vez o pano, dada a conjuntura, com álcool em gel ou com a mistura de um litro de água sanitária em três litros de água comum.

O que parecia irresponsabilidade suficiente não parou aí; no dia 22 de março, em rede nacional, o senhor jogou a ciência e toda a experiência no enfrentamento da nova doença dos países estrangeiros no lixo. Um arroubo menos que juvenil decidido na antessala da presidência, no que é chamado de escritório do ódio.

No dia 18 de março, quando sairíamos às ruas pela educação (uma das áreas mais afetadas pela política ideológica que se diz sem ideologia), os protestos, em período de recolhimento, migraram para as janelas e varandas. O panelaço — símbolo da luta contra o governo Dilma — foi resgatado por quem não admite tamanhos descalabros. Claro que, agora, àqueles que nunca se convenceram de que o atual governo poderia ser bom juntaram-se os arrependidos. O devaneio do clown (sem graça) — ou o anticlown, como sugere minha irmã Teresa Cristina, revisora de meus textos — pelas ruas, quando poderia estar contaminado pelo vírus, foi um facho de luz sobre quem acreditou que, pior do que estava (no tempo do PT), não ficaria. Ficou, ficou muito.

O risco duplo para o país

Jair Bolsonaro é o pior presidente que poderíamos ter para nos guiar na travessia desta tempestade sem precedentes. Ele sempre foi menor do que a cadeira que ocupa, mas agora revela em cada ato, palavra e decisão que conspira contra a saúde da população. Não é uma questão de gostar ou não do governante. A análise objetiva leva à conclusão de que ele hoje é um obstáculo a que o país supere a turbulência, minimizando perdas humanas e econômicas.

Nas últimas semanas, foram sucessivos episódios completamente desviantes. Açulou manifestação contra o Congresso, foi cumprimentar manifestantes em época de pandemia e que carregavam faixas hostis a lideranças políticas, fez declarações bizarras e mal informadas sobre assunto da maior gravidade. Estimulou brasileiros a não seguirem a orientação das autoridades sanitárias e enquadrou o ministro da Saúde, Luiz Mandetta, que ficou no governo, depois de “adaptar” suas opiniões, para usar a expressão da ex-ministra Marina Silva. É o soldado que marcha errado no batalhão dos governantes mundiais. Todos os outros, com maior ou menor rapidez, entenderam que nenhum líder pode pôr em risco a vida dos seus concidadãos.


Bolsonaro não faz o que faz por incompreensão do problema e dos riscos. Ele não se importa com o perigo que estamos correndo. O centro de suas atenções está apenas nele próprio e nos seus filhos. Vê em cada sombra um adversário, em cada discordante, um traidor, em cada decisão de outra autoridade, uma conspiração contra o seu poder.

Além dessa mentalidade , o presidente Bolsonaro também está fazendo um cálculo político. Ele acha que depois que o coronavírus passar -“algumas mortes terão, mas acontece, paciência”, como disse em seu português claudicante - ficará o amargo gosto da crise econômica. E ele poderá jogar todo o peso dela sobre os seus adversários políticos. Bolsonaro só pensa em reeleição e é capaz de pôr a saúde dos brasileiros em risco para chegar lá com condição de renovar seu mandato.

Mas renovar o mandato para fazer o quê? Bolsonaro não governa, nunca se aprofunda nas decisões que serão tomadas, não tem o gosto de estudar as soluções para os problemas nacionais. Seu pensamento é como a sua fala: sincopado, non sequitur, rasteiro. Chances para se tornar uma pessoa mais capaz de entender o país que ele governa ele teve. Foi de uma das melhores escolas do Exército, passou 28 anos na Câmara, em que há excelentes técnicos sobre qualquer assunto que se queira entender. Não liderou, não foi respeitado, não relatou matéria importante. Passou o tempo parlamentar em agressões aos colegas e à história, em defesas corporativas, em miudezas.

Foi eleito para governar o Brasil e poderia ter entendido qual é o comportamento correto de uma pessoa pública, mas continuou com seu circo de horrores diário. A coleção dos absurdos que disse e fez é inesgotável. O país foi se acostumando a ter um presidente com maus modos. Foi se acostumando a se perguntar: qual foi a última de Bolsonaro? Várias vezes ele atravessou linhas intransponíveis na democracia. Ele e seus filhos. Um filho, vereador do Rio, senta-se na mesa com ministros e dá ordens no Planalto, para citar um exemplo. Outro filho, deputado, ofende o maior parceiro comercial, o chanceler o defende, e o presidente tem que tentar arrumar a bagunça. O país foi aceitando o inaceitável. Nesta pandemia, no entanto, ele tem feito muito mais do que quebrar normas de condutas. Ele hoje representa uma ameaça concreta à saúde pública.

O país está lidando com um inimigo que ameaça, adoece, sufoca e mata. É da vida de pessoas que se trata. E Bolsonaro sistemática e reiteradamente subestima o perigo que nos ronda, quando deveria ser o primeiro a se perguntar o que é possível fazer para proteger ao máximo os brasileiros.

Quando as instituições brasileiras não reagem a tantos abusos, a democracia começa a morrer, o que sempre foi no fundo o seu grande projeto. Admirador confesso de ditadura e torturadores, Bolsonaro não acredita, nem respeita, os limites constitucionais. Para ele, são um estorvo. A grande pergunta é o que mais o país aceitará. E quais as cicatrizes que esse tempo deixará na democracia brasileira.
Míriam Leitão

Aberta a Era do atravessar para o outro lado da rua

A fila na farmácia não é grande. Três pessoas aguardam à porta, encostadas aos dois postes de sinalização de trânsito. O olhar é de resignação ou, melhor, de compreensão. Foi sabiamente instilado um medo coletivo que nos levou a uma aceitação como que de uma nova condição humana: o Homo Hygienicus.

Foi um longo processo em que nos fomos afastando da rua, pensando que ela era cada vez menos segura. Estava tudo errado, a rua até era mais segura que nunca, mas o medo foi denegrindo esse espaço social de excelência. O medo foi-nos retirando liberdade, desejando vigilâncias vídeo; desejando polícias brutalmente armados em cada zona mais frequentada; entrando e saindo de casa e dos centros comerciais de carro, sem ter a necessidade de por um pé que seja na rua. É verdade, estamos no momento certo para nos afastarmos. Somos agora seres afastados, mas desejosos de proximidade e de abraços.



Mais à frente, numa loja qualquer que ficou com a montra ainda a publicitar saldos que não têm lugar, as cartas acumulam-se logo à frente da porta de vidro. Não estão ali há muito tempo. O dono desse pequeno comércio ainda lá vai regularmente matar saudades e dizer a si mesmo que em breve abrirá, sabendo que não imagina se mente ou se sonha. Contudo, quer ele, quer todos os restantes, acham com a maior das naturalidades que esta era a única solução. Mais uma vez, resignados, fizemos o mais correto. E sim, foi e é o mais correto, por mais que nos invada uma nostalgia da proximidade e da rua, por mais que desejemos que esta fase de confinamento termine depressa – o que sabemos ser irreal, utópico, mesmo.

Hoje, todos estamos certos, sejamos dos que pulverizaram as redes sociais com narrativas de ódio e de medo, sejamos os que lutam contra elas, pugnando por um mundo livre e aberto. Hoje todos afirmamos que temos de ficar em casa. É a máxima igualdade levada ao altar do consenso através da real hipocrisia do método. Todos estão certos no final, mesmo sabendo eu que a forma de cá chegar foi doentia e desonesta.

Vivemos a “Era do Atravessar de Rua”. Não sabemos bem quando terminará, mas veio para ficar. Está a impor-se pelo medo do contágio, suportada pela distância da segurança social. Vamos no pequeno passeio que nos é mentalmente permitido para ir à farmácia ou buscar medicamentos, e atravessamos a rua se vemos vir alguém na nossa direção. É higiénico. É uma reação de segurança. É fruto do medo.

Aquilo que antes era apontado como forma de ofender, atravessar a rua para não se cruzar com alguém, é hoje afirmação de consciência, face aos inconscientes que seguem em frente e quase roçam no casaco do outro.

Mas o mais irónico e brutal é a forma como o perigo que é externo acaba por ser colocado em nós. Fosse o nosso inimigo um grande mamífero selvagem que nos fizesse frente… era mentalmente mais fácil lidar com esse risco. Mas não, o inimigo entra em nós, faz-se parte de nós e transforma-nos em risco. Já não é um inimigo externo, mas está potencialmente dentro de cada dos iguais a nós com que nos cruzamos. Ele torna a nossa espécie e o nosso “vizinho” impuros, indesejáveis, capazes de serem postos fora da comunidade. É a ratoeira mais inteligente em que uma espécie pode cair: ser colonizada, ser transformada em inimiga de si mesma.

Já fomos à Lua. Planeamos viagens e colónias em Marte. Fazemos Aceleradores de Partículas capazes de reproduzir os momentos imediatamente a seguir ao Big Bang. Mas somos completamente impotentes perante um ser minúsculo que é um vírus.

Bem, não será exatamente assim. Fosse esta mesma Pandemia há umas dezenas de anos e tudo seria brutalmente diferente. Pior; muito pior. Hoje temos formas de combate e de organização que nos colocam na melhor época possível para resistir a um ataque destes. Mas é sempre revelador da nossa impotência, da nossa incapacidade para a superar.

Afinal, somos apenas uma espécie que não está no topo da cadeia alimentar.

Pensamento do Dia


Memórias do grupo de risco

Nos últimos tempos, as coisas andam tão rápidas que todo dia escrevo um pouco. No final de semana, o epicentro da pandemia já havia se deslocado para os Estados Unidos, e Boris Johnson, primeiro-ministro inglês, foi contaminado pelo coronavírus.

Temo pelo Brasil. O vírus avança como em outros lugares. Somos mais vulneráveis pelas grandes concentrações urbanas, péssimas condições sanitárias. Os Estados Unidos eram o primeiro na lista de segurança sanitária no mundo: ricos e bem equipados.

Ao longo do caminho, não devemos nos concentrar apenas numa variável, o número de casos. Há outra muito importante: o índice de mortalidade.

Além de desvantagens historicamente acumuladas, temos outras de peso. O presidente da República, que deveria articular o esforço nacional, não acredita na importância da pandemia.

Bolsonaro se acha incólume porque um dia foi atleta. E estendeu essa blindagem aos brasileiros que, segundo ele, mergulham no esgoto e nada sofrem. No momento em que a Ciência tem um grande papel, Bolsonaro está cercado de terraplanistas, tornou-se uma espécie de Jim Jones, o pastor que levou seus seguidores ao suicídio coletivo.

A segunda desvantagem está no ministro da Economia, Paulo Guedes. Toda a sua história é a de luta para reduzir o papel econômico do Estado. Trabalhou no Chile de Pinochet e escreveu inúmeros artigos sobre o tema.

O dramático momento, de repente, exige uma intensa intervenção do Estado na economia. Guedes não se preparou para isso. É como se estivéssemos numa partida de futebol e resolvêssemos trocar o centroavante por um jogador de tênis.

Vera Magalhães sugeriu que escrevesse algo sobre o ano de 2020, um ano cancelado pela pandemia.

No mesmo dia, tinha conversado aqui em casa sobre uma viagem a Nova York. Quando minha mulher vai até NY, costumo vender minha câmera velha e comprar uma nova na Adorama. Rimos para não chorar: não haverá viagem, muito menos câmera, e Deus permita que haja Nova York no fim dessa estrada. O Flamengo seria campeão de tudo em 2020, mas não haverá campeões nesse tempo sinistro.

Mas vou voltar ao tema sugerido por Vera assim que a pandemia der uma trégua. No momento, tento refletir um pouco sobre ser velho em tempos de coronavírus. Aqui a dimensão transcende ao ano de 2020: o que será do resto de nossas vidas?

Toneladas de papel impresso falam da velhice. Mas a nossa é singular: acontece durante a pandemia, somos classificados como grupo de risco.

Leio notícias de que o velhinhos de comunidades serão levados para hotéis ou navios, que a polícia em São Paulo está detendo os rebeldes que saem às ruas. Tudo para o bem deles.

Passada a crise mais aguda, como será a vida dos velhos antes da chegada da vacina? Minhas leituras não estão concentradas na “Peste”, de Camus, ou no “Um diário do Ano da Peste”, de Daniel Defoe.

Nos momentos mais suaves da quarentena, volto-me para livros do tipo “Memórias de Adriano” e detenho-me em frases como esta: “Esta manhã, pela primeira vez ocorreu-me a ideia de que meu corpo, este fiel companheiro, esse amigo mais seguro e mais conhecido que a própria alma, não é senão um monstro derradeiro que acabará por devorar seu próprio dono.”

Isso é verdade para tempos normais. Como se aplica a tempos de coronavírus? Será que nossos corpos envelhecidos serão vistos como um perigo social?

Envelheci depois de muitas lutas contra preconceitos. Só me faltava essa. Quando passar a primeira onda, voltarei a sair por aí, explorando e transfigurando o mundo em imagens.

De novo, Adriano: “A impossibilidade de continuar a exprimir-se, modificar-se pela ação é talvez a única diferença entre os mortos e os vivos.”

Um corpo envelhecido não representa perigo especial. Ele contrai e transmite o coronavírus como uma criança ou um jovem.

A grande responsabilidade é evitar adoecer em tempos de grande crise para não ocupar o lugar de um mais jovem nos escassos respiradores.

Infelizmente, temos mais fuzis do que respiradores. Um padre italiano compreendeu isto e cedeu seu lugar para um jovem que tinha chances de uma vida longa e saudável.

Viver é muito perigoso e, de uma certa forma, a própria humanidade é um grupo de risco.

O amanhã do vírus

Pelo menos na imprensa e nas redes sociais a que tenho acesso, pouco ouço falar da origem do coronavírus, um assunto que devia nos interessar. Primeiro, porque conhecer o que não se conhecia é um princípio natural da cultura. Depois, porque não se pode enfrentar um inimigo dessa importância, sem saber de onde ele veio. Sobretudo se isso diz alguma coisa a respeito de sua força ou de sua estratégia.

Dizer que esse é um “vírus chinês” é um ridículo idiota, parece uma declaração de guerra à Alemanha por causa do 7 a 1. O vírus surgiu primeiro na China, mas a responsabilidade por sua existência não é só da China. Com seu gosto em nos causar mal e seu poder destruidor, o vírus é o resultado de nossos maus-tratos à Natureza, entendendo por Natureza tudo aquilo que, no nosso planeta, não seja humano.

Como outras pestes que assolaram o mundo, desde a invenção do ser humano, o vírus letal é uma arma especial da Natureza, que a usa quando erramos demais, em relação a seu bem-estar. Em 1520, quando um dos primeiros exploradores espanhóis chegou ao México, levando com ele a varíola que os locais não conheciam, a maior parte dos habitantes da América Central caiu vítima da doença. E não havia, ali, aglomerações humanas, aviões intercontinentais, cruzeiros marítimos, essas coisas nas quais a gente, em geral, costuma botar a culpa.


Só no século passado, crises epidêmicas, provocadas por vírus, mataram mais do que as bárbaras guerras mundiais dos anos 1900. Em 1918, no final da Primeira Grande Guerra, responsável por 16 milhões de mortos, a Gripe Espanhola fez mais de 50 milhões de vítimas. E o Reino Unido, potência mundial na época, perdeu, com a Gripe que não era gripe, 17% de seu PIB. Entre outras pragas, a Gripe Asiática em 1956, a Aids em 1981, o Ebola Africano em 2013 e a zika em 2015 (que fez o Brasil perder US$ 16 bilhões) assolaram nossas vidas e as vidas dos que amamos.

Podemos usar, para falar dessas epidemias, o que escreveu o combatente alemão Rudolf Höss sobre a Guerra de 18: “Na verdade, não havia um front propriamente dito. O inimigo estava em toda parte. E onde quer que houvesse um confronto, seguia-se um massacre que se estendia até a destruição completa. (...) Àquela época, eu ainda era capaz de rezar, e era o que eu fazia.”

É preciso descobrir em que estamos errando tanto em nossas relações com a Natureza. Precisamos ouvir ecologistas, filósofos, cientistas em geral, para evitar nossos assaltos à natureza da Natureza, que acabam por fazer dela uma inimiga feroz. Não se pode tratar esse assunto com palpites e mentiras, como fazem alguns de nossos líderes. A ciência anda sendo menosprezada no mundo e, sobretudo no Brasil, temos preferido lances e toques, criacionismos e terraplanismos, ideias de políticos que só pensam na ilusão dos outros e no sossego deles.

Os novos conhecimentos podem fazer dessa crise uma aurora nova. O valor da verdade, da ciência e das novas tecnologias podem nos proteger contra as farsas ideológicas que nos atrapalham tanto. A humanidade está se comunicando como nunca se comunicou antes, temos que usar isso em benefício da fraternidade, e não da guerra. Se sairmos dessa crise do coronavírus convenientemente, se usarmos o que temos e sabemos para colaborar uns com os outros, estaremos renovando a hipótese fraterna da humanidade. Uma humanidade melhor e mais solidária, que venceu junta a guerra contra o vírus.

A teoria de Renata, minha mulher, é que esse é um vírus antineoliberal. Um vírus que veio nos lembrar da democracia social que nós já tínhamos esquecido e que foi a melhor contribuição do Ocidente a uma política de solidariedade e fraternidade universais, desde o presidente Roosevelt e de Lord Keynes. Com ela, havíamos aprendido que a vida humana é mais importante que o ajuste fiscal.

Precisamos agora descarbonizar o planeta, acabar de uma vez com os combustíveis fósseis, construir um futuro de trans-humanismo e humor universal, onde a humanidade possa recomeçar com mais esperança no amanhã de cada um. Os “intelectuais necessitados” das escolas de samba, formadas em comunidades pobres, já entenderam tudo isso, mesmo que nem sempre o formulem com clareza e exatidão. No último carnaval, agremiações como Grande Rio, Viradouro e Mangueira saíram mostrando que estão preocupadas com a construção desse novo mundo. Um mundo sem vírus ou um mundo pós-vírus. No final de fevereiro, li, na seção de cartas do GLOBO, uma mensagem do leitor Roberto Ornellas, que afirmava essa preciosidade: “Mais vale Jesus na Mangueira do que na goiabeira”.

Advertência de Jeca Tatu ao presidente da República

A essa altura da carreata da ignorância, só resta ao Jeca Tatu emancipado ―representante da gente na sala de televisão da quarentena― chamar na chincha o bocó lá de Brasília. Direto da Refazenda gilbertiana, cabe ao nosso Jeca Total mostrar que até o amarelão (ancilostomose) ainda faz estrago no Vale do Ribeira e em outras freguesias desprotegidas. Só o Jeca Tatu, o guru do Almanaque Biotônico Fontoura, para contar ao espertalhão do Planalto que o brasileiro, ao contrário do que ele folcloriza, não resiste meia hora ao esgoto e à falta de saneamento.

A febre do rato (leptospirose) segue castigando nos mocambos e palafitas, adverte o Jeca, sorumbático e macambúzio, saindo de pés-descalços do “Urupês” (livro de 1918) de Monteiro Lobato. Quem tem que ser estudado, o capiau segue na prosa, é Vossa Excelência, com todo respeito deste caipira. O brasileiro pega de tudo, não me venha com seus arroubos de vilão Vaca-Brava, pois até a lepra (hanseníase), daquela mais primitiva, campeia solta no mato e nos arrabaldes.

A criatura corre do mosquito e não escapa do caramujo, foge da dengue e vem a zika, na mesma terra onde ainda persistem sarampo, caxumba e rubéola. O sujeito acha que é apenas mais uma ressaca existencialista e lá vem o diagnóstico: chikungunya na caveira. Na roça, para a tristeza do Jeca, resistem a doença de Chagas, a peste bubônica, a curuba... Agora dá licença que vou tomar meu elixir de salsa, caroba e cabacinha, ave!, tesconjuro.

Jeca Total deve ser Jeca Tatu, presente, passado, memória das enfermidades brasileiras, com sua garrafa de pinga para enxotar o saturno dos trópicos, xô melancolia, arreda tristeza, vade retro perdigotos do Belzebu, do Cramulhão, do Pé-de-Pato, do Coxo, do Temba, do Coisa Ruim, do Mafarro, do Tristonho, do Não-Sei-Que-Diga, do Que-Nunca-Se-Ri, do Pai-da-Mentira, do Capeta, do Tendeiro, do Mafarro, do Capiroto, do Diacho, do Gabinete-do-Ódio, do Rei-Diabo, do Demonião, do Satanazim, do Língua-Solta e da vasta assembleia lucrativa sem fim.

Jeca Tatu, que saiba Vossa Excelência, pode ser da roça, mas não é besta, em matéria de coronavírus rumina o seu capinzim metafísico guardado na sua choupana, pita o seu cigarrinho de palha ouvindo Cascatinha & Inhana, mais precisamente a faixa “Índia”, sou Jeca mas não sou imbecil de marcar touca, de que vale o milharal depois de bater as botas?

Preguiçoso uma disgrama, repara se fui eu e minha família que passamos uma vida toda de flozô no parlamento, com direito a esquema de “rachadinha” e quetais, mordendo um naco do contracheque dos barnabés das cercanias. Desculpa aí, presidente, não queria desafinar a viola, mas seu exército de tabaréus não toca outra moda, a não ser xingar a gente de indolente e vagaba. Nem o amigo Mazzaropi escapou dessa, foi barrado na cancela, virou comunista simplesmente por ter filmado “O Corintiano”, vê se pode! Imagina se os papa-capins tivessem visto A banda das Velhas Virgens, que fita de cinema.

No Brasil das amarelidões, Jeca Tatu pode ser a cor tingida na crônica de Renato Carneiro Campos que serviu de guia ao filme Amarelo manga, do diretor Claudio Assis: “Amarelo é a cor das mesas, dos bancos, dos tambores, dos cabos, das peixeiras, da enxada e da estrovenga. Do carro de boi, das cangas, dos chapéus envelhecidos. Da charque! Amarelo das doenças, das remelas, dos olhos dos meninos, das feridas purulentas, dos escarros, das verminoses, das hepatites, das diarreias, dos dentes apodrecidos... Tempo interior amarelo. Velho, desbotado, doente.”
Xico Sá

Brasil entregue à morte


Bolsonaro deve ser detido para não fazer tanto mal ao país

Sabe Deus o que se passa na cabeça do presidente Jair Bolsonaro. Ou nem Deus sabe, talvez só o dono da cabeça. No último sábado, autorizado por Bolsonaro, Luiz Henrique Mandetta, ministro da Saúde, apareceu na televisão e disse que o isolamento social deve ser mantido enquanto não passar a pior fase da pandemia.

Ontem, menos de 12 horas depois, Bolsonaro desfilou por galerias e ruas de Taguatinha, Ceilândia e Sobradinho, cidades do entorno de Brasília, atraiu gente, posou para fotos com seus admiradores e até com crianças, apertou mãos, e anunciou que cogita de um decreto mandando todo mundo trabalhar.



Que ordem valerá? A dada por Mandetta? Ou a que Bolsonaro poderá tomar? Qual será a reação das pessoas país a fora? Se o presidente volta a circular e diz que o coronavírus não é tão feio como parece, é razoável que muitos acreditem nele. E que o imitem. Consequências? Mais infectados, mais aspirantes à morte.

É fato que de 10 dias para cá, os brasileiros vem tapando os ouvidos ao que ele diz. No fim de semana dos dias 14 e 15, as praias do Rio, a Avenida Paulista e a Esplanada dos Ministérios, em Brasília, estiveram atulhadas de gente. Foi no dia 15 que Bolsonaro recepcionou seus devotos à entrada do Palácio do Planalto.

De lá para cá, na contramão dos seus equivalentes no resto do mundo, Bolsonaro tornou-se um grave problema sanitário para o país. Chefes de Estado, que a princípio vacilaram diante de um inimigo desconhecido contra o qual carecem de armas, aos poucos foram se ajustando à realidade. Até Donald Trump.

Sem essa de que o tempo foi curto para perceberem o que estava por vir. No dia 31 de dezembro último, jornais chineses publicaram que um novo tipo de pneumonia fora identificado em Wuan, a sétima cidade mais populosa daquele país, com cerca de 11 milhões de habitantes. O avanço da doença foi rápido.

Dali a 17 dias, o governo chinês informava que o vírus já contaminara 62 pessoas, matando duas. No dia 19 de janeiro, o número de casos de infecção saltara para 198, com quatro mortes. Um jornal francês publicou que havia cerca de 1.7 mil pessoas na China com sintomas da doença, e duas na Tailândia.

No dia 20 de janeiro, 291 chineses contaminados e seis mortos. Três dias depois, os moradores de Wuan acordaram com o comunicado de que ninguém sairia mais da cidade nem entraria. Confinamento geral e obrigatório. Exército nas ruas. Médicos de prontidão. Só funcionariam os serviços essenciais.

Aqui, estávamos a um mês do Carnaval, esquentando os tamborins, lubrificando as engrenagens dos trios elétricos e costurando as últimas fantasias. Os sambas-enredo, escolhidos há três meses, eram cantados por dançarinos e torcidas. Bolsonaro já aprontava. Dava bananas para a imprensa. Mas quem ligava? Evoé, Momo!

Apronta desde o primeiro dia no cargo. Seu discurso de posse contém todas as sementes do ódio que germinava dentro dele e dos filhos e que ele desejava inocular na maior quantidade possível de brasileiros para garantir sua reeleição em 2022. Ele, agora, luta para que não se disperse o núcleo mais resistente do seu bloco.

Daqui para frente, como será? Bolsonaro dobrará sua aposta, triplicará, com a esperança de que o coronavírus mate menos brasileiros do que indicam os cálculos do Ministério da Saúde e os estudos de duas universidades britânicas. O sistema de saúde do país poderá entrar em colapso em meados de abril.

A melhor arma de combate ao coronavírus é testar, testar, testar o maior número de pessoas. Foi o que aconselhou há algum tempo a Organização Mundial de Saúde. Mandetta discordou. Na semana passada, cedeu e anunciou a compra de 22 milhões de kits de teste que levarão dias para estarem disponíveis.

“Todos nós morreremos um dia”, saliva Bolsonaro. Ele que morra se quiser – os outros, não.

Manada do crime

Só os imbecis nunca mudam de ideia
Jorge Luis Borges

A verdadeira escolha

As únicas escolhas verdadeiras são as feitas diante da morte. Escondida em um vírus desconhecido, ela espalhou sua sombra macabra sobre o mundo lembrando à humanidade seu fragílimo destino comum, tragédia que nos irmana e revela o melhor e o pior de cada um.

Pôs a nu desigualdades vergonhosas, cúmplices da violência, e os truques de mágicos da economia, cegos aos desvalidos, que enganam a todos, inclusive os ricos, com fundos falsos de suas Bolsas. Temos que escolher entre o salve-se quem puder e a solidariedade que tínhamos desaprendido.

Um desastre global, o Brasil confrontado às suas fraquezas e apesar delas mostrando uma população informada por excelentes jornalistas, competência científica e a aplaudida bravura dos agentes de saúde. E um homem, o presidente da República, que já nos insultou com suas baixezas, ignorância, preconceitos e incompetência, insulta agora idosos, doentes e os mortos subestimando a ameaça assombrosa, o resfriadinho que não pega nele, o ridículo atleta.


Chega! O governador Caiado, seu eleitor, disse que “não dá mais para ter diálogo com esse homem”. Chega, nossa luta é contra a morte, não há tempo para puxar briga de rua com governadores que de fato estão governando. Ele, esse mal-amado, objeto de panelaços diários, que a cada dia é mais desprezado pela população, com justa razão.

Que fique falando sozinho. Os brasileiros, obedecendo às instruções de quem conhece saúde e das autoridades que se dão ao respeito, ficarão em casa, sobrevivendo, ajudando a quem podem ajudar.

Compaixão e ciência salvam a vida dos que não sobrevivem sozinhos. Todos os recursos do Estado e das empresas devem ser mobilizados. Que sejam chamados economistas capazes de fazê-lo.

É tempo de juristas e parlamentares pensarem com que instrumentos impedir esse chorrilho de irresponsabilidades que ameaça a vida da população.

Quando acordarmos do pesadelo, cada um de nós, o Brasil e o mundo serão irreconhecíveis. Esperemos, quem sabe, um Renascimento.<

Quanto mais a pandemia amedronta, mais a sociedade confia no jornalismo

Com a explosão da pandemia causada pelo novo coronavírus, o jornalismo cresce na preferência dos brasileiros. Para quando podemos esperar a vacina? Que medicamentos têm prognóstico positivo no combate aos sintomas? O confinamento é eficaz? Em que formatos? O que vai acontecer na economia? O tecido social vai se esgarçar? Enquanto o presidente da República aposta em sandices criminosas para desorientar a sociedade aflita e excitar suas falanges digitais (a última foi dizer que "brasileiro pula no esgoto e não acontece nada"), é na imprensa que as pessoas vão buscar respostas dignas de crédito.


As maiores redações profissionais no Brasil já perceberam que algo mudou. Ampliando os horários de seus telejornais, a Rede Globo colhe mais audiência (no Ibope, vem alcançando sozinha um índice maior do que a soma de todas as concorrentes). O Jornal Nacional virou um programa diário obrigatório para quem quer uma leitura responsável do que se passa. Aqui mesmo, no Estado, o aumento do número de assinaturas (no impresso e no digital) é relevante, no dizer dos editores. Uma pesquisa do Datafolha divulgada na segunda-feira, dia 23, revelou que os programas jornalísticos da TV, com 61%, e jornais impressos, 56%, lideram os índices de confiança do público para se informar sobre a pandemia. Quanto a Google e Facebook, ficam com apenas 12%.

Em outro monitoramento, o Dapp (Diretoria de Análise de Políticas Públicas), da Fundação Getúlio Vargas, atestou que, entre os dias 12 e 24 de março, os vídeos mais vistos no YouTube e no WhatsApp sobre a covid-19 eram "quase todos" produzidos por veículos jornalísticos. No exterior, o quadro não é diferente. Um levantamento da agência Global de Comunicação Edelman, realizada em dez países (Brasil inclusive) entre os dias 6 e 10 de março, mostrou que, para 64% dos entrevistados, os jornais são os mais confiáveis entre todas as fontes de informação - num resultado que marca um forte crescimento em relação às pesquisas anteriores. De acordo com a Edelman, o Brasil ainda fica um pouco atrás da média global, mas acompanha a tendência favorável ao jornalismo registrada nos outros países.

Os números indicam uma revalorização do trabalho jornalístico. Na verdade, indicam mais do que isso. Essas cifras integram um universo de mudanças de atitude que sinalizam uma espécie de despertar, ainda tímido, da razão. A civilização que foi parar na enfermaria (e na UTI) parece tentar fazer as pazes com a sensatez e com a empatia. Ninguém aqui quer bancar o otimista, mas olhemos à nossa volta. Num mundo em que ninguém mais parecia disposto a se entender com ninguém, estabeleceu-se, em prezo recorde, um consenso surpreendente em torno da ideia de que os governos vão dar dinheiro para proteger os mais pobres. Algo realmente está mudando.

A mentira perde popularidade. Mesmo aqueles que se deliciavam em trabalhar de graça para o bolsonarismo espalhando fake news descobriram que, quando se trata da saúde da família, é na imprensa que podem confiar. Os cabos eleitorais da extrema direita são os que mais sabem do pacto com a fraude informativa patrocinada pelo presidente que aí está. Portanto, são os que mais sabem que não dá para se fiar no BolsoNero (para usar aqui o apelido que lhe foi conferido por Frei Betto e, esta semana, pela revista The Economist). Com o vírus à espreita de suas moradas, até os fascistinhas de WhatsApp buscam socorro em reportagens sérias.

Melhor assim. Que sejam bem-vindos. Uma sociedade sem imprensa, sem ciência, sem universidade, sem liberdade, sem apego à verdade dos fatos, sem compaixão e sem capacidade de diálogo não tem chances de sobreviver.

Cingapura é exemplo na luta contra covid-19

O surto de coronavírus virou o mundo de cabeça para baixo. Países europeus democráticos e "livres", como a Áustria, confinaram seus cidadãos e consideram rastrear seus telefones, enquanto, ironicamente, cidadãos de Estados asiáticos "não livres", como Cingapura, desfrutam mais liberdade do que em qualquer país europeu ocidental nas últimas semanas. Apesar de seus laços econômicos e geográficos com a China, Cingapura conseguiu manter baixos os números de infecções com o coronavírus, e a vida pública permaneceu quase inalterada. A Europa poderia ter aprendido com isso.

Embora Cingapura seja vulnerável, enquanto hub global densamente povoado, até o momento o país insular registrou 844 casos de covid-19 e três mortes. Coincidindo com o Ano Novo Chinês, o novo coronavírus poderia ter sido catastrófico para a pequena cidade-Estado.

No entanto, apesar do risco de prejudicar as relações econômicas com seu terceiro maior parceiro comercial, por volta de 1º de fevereiro Cingapura já impusera restrições de ingresso a passageiros da China, contrariando a recomendação da Organização Mundial da Saúde (OMS) de que as proibições de viagens não eram necessárias naquele momento.

Mesmo assim, em meados de fevereiro Cingapura registrara mais de 80 casos de covid-19, o número mais alto fora da China. O país agiu rapidamente isolando doentes e testando todos com sintomas de gripe e pneumonia. Quem entrara em contato com os enfermos foi rastreado e colocado em quarentena.


Usou-se o "método de rastreamento de contatos" desenvolvido durante a epidemia de Sars em 2003, que abrange o registro meticuloso dos dados de contato, com funcionários entrando nos edifícios e entrevistando os infectados sobre seus movimentos recentes.

Para resumir, o sucesso de Cingapura na gestão do surto de covid-19 se resume a três ingredientes básicos e um maior: fechar as fronteiras cedo, rigoroso rastreamento de contatos, muitos testes ‒ e a Sars no papel de um macabro ensaio geral.

Tais medidas permitiram que a vida pública continuasse normalmente. Todos os restaurantes, shoppings, escolas e escritórios permanecem abertos até o momento. Hong Kong e Taiwan têm histórias de sucesso semelhantes, apesar da proximidade com a China.

Por mais terrível que pareça, provavelmente teria sido útil se a Europa tivesse vivenciado a epidemia de Sars. O fracasso em reagir com rapidez e eficácia ao surto que se anuncia foi resultado da arrogância eurocêntrica e de esforços descoordenados para proteger as empresas locais. Embora os líderes europeus já tivessem tomado conhecimento do vírus em dezembro, ele foi subestimado por muito tempo e considerado um "problema asiático".

Tudo o que Cingapura fez de correto ‒ fechar as fronteiras cedo, testar amplamente e rastrear contatos ‒ os países da Europa fizeram de errado. Tomando a Áustria como exemplo, os voos da China, Irã e Itália só foram interrompidos em 9 de março. Durante muito tempo, o medo de prejudicar a economia local com a proibição de viagens impediu Viena de implementar medidas rigorosas.

Um dos centros do surto na Europa, a estação de esqui de Ischgl, demorou oito dias para reagir aos casos confirmados de turistas da Islândia e encerrar as atividades. Todos os visitantes foram rapidamente mandados embora sem testes, vindo posteriormente a espalhar o vírus por todo o continente.

Em geral, os testes são escassos, apesar do longo espaço de tempo que os governos tiveram para reagir. Sequer as equipes médicas têm acesso a testes suficientes, e esse gargalo causa um declínio adicional de seus auxiliares, que podem acabar em quarentena enquanto aguardam dias para obter seus resultados.

O rastreamento de contatos com o rigor apresentado em Cingapura ‒ onde todos os casos podem ser seguidos num painel ‒ é impensável na Europa. Ao mesmo tempo, os governos impuseram algumas das medidas mais estritas à liberdade pessoal vistas na Europa do pós-guerra. Em vez de descobrir quem está infectado e isolá-los, todos foram colocados num ineficaz estado de semi-isolamento.

Ainda existem muitas possibilidades de transmitir a doença, pois não há como saber quem está infectado. Ao mesmo tempo em que a liberdade pessoal é reduzida ao mínimo, a economia está parada e os provedores de telefonia móvel estão repassando dados de movimento aos governos, ao contrário com o que a GDPR, a lei de proteção de dados da União Europeia, nos havia prometido.

Esta não é apenas uma crise de saúde, mas uma crise de gestão ‒ da reação tardia às implicações para a liberdade pessoal. Devemos esperar que nossos líderes assegurem saúde e liberdade, e precisamos investigar por que eles fracassaram ‒ e o que podemos aprender com Cingapura.