Foi um longo processo em que nos fomos afastando da rua, pensando que ela era cada vez menos segura. Estava tudo errado, a rua até era mais segura que nunca, mas o medo foi denegrindo esse espaço social de excelência. O medo foi-nos retirando liberdade, desejando vigilâncias vídeo; desejando polícias brutalmente armados em cada zona mais frequentada; entrando e saindo de casa e dos centros comerciais de carro, sem ter a necessidade de por um pé que seja na rua. É verdade, estamos no momento certo para nos afastarmos. Somos agora seres afastados, mas desejosos de proximidade e de abraços.
Mais à frente, numa loja qualquer que ficou com a montra ainda a publicitar saldos que não têm lugar, as cartas acumulam-se logo à frente da porta de vidro. Não estão ali há muito tempo. O dono desse pequeno comércio ainda lá vai regularmente matar saudades e dizer a si mesmo que em breve abrirá, sabendo que não imagina se mente ou se sonha. Contudo, quer ele, quer todos os restantes, acham com a maior das naturalidades que esta era a única solução. Mais uma vez, resignados, fizemos o mais correto. E sim, foi e é o mais correto, por mais que nos invada uma nostalgia da proximidade e da rua, por mais que desejemos que esta fase de confinamento termine depressa – o que sabemos ser irreal, utópico, mesmo.
Hoje, todos estamos certos, sejamos dos que pulverizaram as redes sociais com narrativas de ódio e de medo, sejamos os que lutam contra elas, pugnando por um mundo livre e aberto. Hoje todos afirmamos que temos de ficar em casa. É a máxima igualdade levada ao altar do consenso através da real hipocrisia do método. Todos estão certos no final, mesmo sabendo eu que a forma de cá chegar foi doentia e desonesta.
Aquilo que antes era apontado como forma de ofender, atravessar a rua para não se cruzar com alguém, é hoje afirmação de consciência, face aos inconscientes que seguem em frente e quase roçam no casaco do outro.
Mas o mais irónico e brutal é a forma como o perigo que é externo acaba por ser colocado em nós. Fosse o nosso inimigo um grande mamífero selvagem que nos fizesse frente… era mentalmente mais fácil lidar com esse risco. Mas não, o inimigo entra em nós, faz-se parte de nós e transforma-nos em risco. Já não é um inimigo externo, mas está potencialmente dentro de cada dos iguais a nós com que nos cruzamos. Ele torna a nossa espécie e o nosso “vizinho” impuros, indesejáveis, capazes de serem postos fora da comunidade. É a ratoeira mais inteligente em que uma espécie pode cair: ser colonizada, ser transformada em inimiga de si mesma.
Já fomos à Lua. Planeamos viagens e colónias em Marte. Fazemos Aceleradores de Partículas capazes de reproduzir os momentos imediatamente a seguir ao Big Bang. Mas somos completamente impotentes perante um ser minúsculo que é um vírus.
Afinal, somos apenas uma espécie que não está no topo da cadeia alimentar.
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