sábado, 14 de março de 2020

Brasil de paisagem nova


Os parceiros

É pena, mas o mundo tão lindo, com paisagens e habitantes tão simpáticos, está dismilinguindo aos poucos.

O americano cor de cenoura, Donald Trump, diz sempre que quer fazer a America great again. Mas pegou o caminho errado para tal feito e a America que já foi great sim, hoje está mínima. Tem dinheiro, tem. Tem armamentos, tem. Mas onde está o povo americano, aquele gigante que redigiu os mais belos documentos oficiais do mundo?

Basta ler uns poucos capítulos da História dos Estados Unidos para ver a diferença brutal entre os personagens de ontem e os de hoje. Vou dar um pequeno exemplo: a casa de Thomas Jefferson, "Monticello", no estado da Virginia, uma elegante mansão no alto de uma colina, que foi sua residência e sede da fazenda que ele administrava e onde lia, estudava e escrevia, numa biblioteca maravilhosa.



Por acaso Trump mora em lugar tão singelo, mas de tanta beleza? Não. Trump mora tal qual o tio Patinhas num triplex novaiorquino que é forrado do chão aos tetos de ouro puro. O apartamento já foi filmado de todos os ângulos e só o que vemos lá é luxo em tudo, até nos inúmeros aparelhos de TV. Uma breguice de fazer dó. Não vi por lá nem uma estante de livros...

E quem foi o amigo dileto que ele conquistou desde que assumiu a Casa Branca? Ora, quem poderia ser senão seu admirador e aspirante a parceiro, Jair Bolsonaro?

Quando um diz mata, o outro diz esfola. E ainda não fizeram nada mais estrondoso porque Bolsonaro é o primo pobre. Mas isso em breve será resolvido, pois a America minúscula que vem por aí igualará os dois amigos. Que juntos, vivendo então no ultra brega Mar-a-Lago, em Palm Beach, na Florida, farão do mundo um espaço tão triste, tão insuportavelmente triste, que até o coronavirus fugirá de lá. Assim espero.

Trump e Bolsonaro gostam de brigar com a Imprensa. Gostariam que ela fosse sua agência de propaganda. Enquanto não conseguirem isso, continuarão lutando contra as palavras. Querem que a Imprensa só fale uma verdade: a deles. Até lá pretendem não mais falar com a Imprensa

Quanto a nós, só nos resta pedir socorro à Mafalda
Maria Helena Rubinato Rodrigues de Sousa

O mais valioso dos recursos escassos

Parece que está tudo desmoronando e que nada mais pode ser feito para evitar um futuro sombrio. No entanto, uma coisa ainda disponível é o tempo, um recurso escasso, mas extremamente valioso. Alguns dizem que a emergência climática ainda pode ser revertida se forem tomadas medidas ao longo dos próximos 12 anos. E este é um recurso que podemos explorar ao máximo. Não há tempo a perder
Irene Baños Ruíz 

Factoides não vão tirar Brasil da crise

Produzir factoides é a principal estratégia de governar do bolsonarismo. Desde o início do governo, os brasileiros são brindados todos os dias com uma nova história, uma frase de impacto ou alguma notícia que nunca se concretizará. Nesta novela, é preciso lutar incessantemente com inimigos, reais ou imaginários, e a emoção prevalece sobre a razão. Por enquanto, mesmo tendo um mandato atribulado em tão curto espaço de tempo, Bolsonaro mantém o apoio de um terço da população e sonha com a reeleição. Mas será que esse modelo será capaz de lidar com a imensa crise que o Brasil enfrentará neste ano?

Apesar de as ações do governo Bolsonaro parecerem muitas vezes irracionais e de difícil explicação, é possível definir os desafios que ele vai enfrentar e dizer se seu estilo é eficaz para lidar com tais situações. Para desenvolver este argumento, a visão de Maquiavel, pai da teoria política moderna, é essencial.


O grande filosofo florentino dizia que duas categorias são centrais para analisar as lideranças políticas. A primeira é a fortuna, que representa a situação objetiva de cada época, ao passo que a segunda é a virtù, que diz respeito às habilidades políticas dos líderes.

Só que não há uma única forma de se fazer política, pois cada momento exige características distintas dos governantes. O que pode ser eficaz num determinado caso pode não ser noutro, e o político bem-sucedido, na visão de Maquiavel, é o que consegue se adaptar a realidades diferentes, que exigem estratégias específicas.

Na eleição de 2018 houve um casamento perfeito entre a fortuna e a virtù de Bolsonaro. Ele percebeu que a maior parte do eleitorado queria um candidato que combinasse duas características: ser antipetista e “outsider”. Assim, tendo os petistas e a classe política tradicional como principais inimigos, construiu uma campanha em nome da renovação - embora ele mesmo fosse deputado há 28 anos, o público o percebeu como um novo “condottiere”. O destino, ademais, trouxe-lhe um episódio paradoxal: a facada, que quase o matou, mas que lhe deu mais força eleitoral.

O contexto do primeiro ano de governo era todo favorável ao novo presidente. Alta popularidade, expectativas muito positivas, Congresso a favor de reformas como nunca antes, oposição dividida e enfraquecida. Bolsonaro poderia ter montado uma coalizão parlamentar com pouquíssimo esforço em termos de divisão de poder.

O destino sorriu para o novo presidente, mas ele escolheu um caminho que se relacionava mais com a eleição do que com a sua nova situação de governante. O bolsonarismo preferiu manter-se constantemente no palanque eleitoral, montando um governo orientado para a eliminação de qualquer possível adversário político, já com vistas a 2022.

A opção poderia ter sido outra: um governo baseado em diagnósticos e gerenciamento de políticas públicas, porém, isso poderia ter tirado a aura daquele que propunha fundar uma nova política. Afora isso, o grupo que circundava Bolsonaro e suas próprias características como líder que exige obediência canina resultaram numa equipe que, com algumas honrosas exceções, é majoritariamente composta por gente incompetente e/ou caracterizada por um fanatismo ideológico.

A base da estratégia política bolsonarista foi centrar-se na produção cotidiana de factoides, seja para fazer do governo um eterno movimento político em guerra contra inimigos, seja para esconder os erros e a incapacidade governamentais. O presidente e sua família fazem isso com o auxílio do guru de Virginia e de todo um exercito nas redes sociais. Outros ministros também seguem essa linha, como os titulares do MEC e do Ministério das Relações Exteriores.

A lógica dos factoides foi reforçada, ainda, pela primazia da lógica dos valores sobre a orientação pragmática por resultados das políticas públicas. A insistência cada vez maior na defesa da família e dos princípios cristãos é uma forma não só de fidelização de eleitores.

Trata-se de uma escolha de quem não tem tanta virtù em termos de competências básicas para ser um governante democrático, afinal, as negociações políticas e a administração das políticas públicas não são tão emocionantes.

A partir do segundo semestre de 2019, a insistência nos factoides produziu vários conflitos desnecessários e atrasou o avanço de várias ações governamentais, além de ter reduzido em mais de 20 pontos a popularidade presidencial. Todavia, o presidente manteve essa estratégia por três razões.

A primeira é que a fortuna do primeiro ano lhe protegia: tanto a lua de mel com o povo como o discurso contra a “herança maldita” seguravam o governo. A segunda é que ela definia bem quem eram os amigos e os inimigos, mantendo o seu público mais fiel. Por fim, as instituições e atores que poderiam contrabalancear o poder do Executivo federal foram muito cooperativos, especialmente o Congresso Nacional, cujos líderes abraçaram uma agenda reformista e estão ainda traumatizados pela desorganização do sistema político pós-impeachment.

O inicio de 2020 foi marcado pela confluência de várias crises, numa tempestade perfeita tão grande como a que atingiu o segundo mandato de Dilma. No plano interno, a aproximação das eleições municipais tornou mais evidentes os problemas. Desse modo, a decepção com o PIB de 2019, o acirramento do conflito com os governadores e com o Congresso Nacional, a desestruturação do partido do presidente (sem que nada ocupasse esse lugar), além da decepção dos bolsonaristas-raiz que queriam uma mudança mais rápida e profunda, aumentaram o sectarismo de Bolsonaro. Hoje, ele se refugia num discurso cada vez mais beligerante e ideológico, e busca proteção nos militares e na ameaça da volta do petismo.

No entanto, o vendaval internacional ampliou a dimensão da crise interna, numa escala inimaginável há alguns meses. São muitos problemas que se combinam num só tempo: a expansão imprevisível do coronavírus (ou Covid-19), a disputa petrolífera, a incerteza política e econômica entre e dentro das grandes potências (EUA, China e União Europeia). Enfim, todos estes fatores, somados, vão reduzir o crescimento econômico do mundo e do Brasil.

A fortuna mudou drasticamente e Bolsonaro, se quiser tirar o Brasil dessas crises e manter seu poder político, precisará ter virtù suficiente para mudar seu estilo governativo. Para atravessar essa enorme tempestade de eventos negativos e num ano eleitoral, o presidente não poderá governar apenas por factoides. Ele terá de fazer três coisas que implicam alterar seu modelo de governo.

A primeira mudança é aumentar sua capacidade de dialogo com outras instituições. Numa crise, um presidente precisa mostrar que é capaz de tomar decisões efetivas. Isso só será possível conversando mais com o Congresso e outros atores políticos fundamentais. Não adianta jogar o povo contra o sistema representativo, a não ser que se queira dar um golpe. Adotar esse caminho, no momento, só agravaria a crise, com efeitos como, por exemplo, a subida vertiginosa do dólar e o enfraquecimento frente aos parceiros internacionais. Nem Trump o apoiaria, porque tem uma eleição por vencer e não pode carregar esse fardo.

A segunda transformação seria dar um perfil mais técnico e gerencial ao seu mandato. A instabilidade do governo Bolsonaro cresce porque muita gente não confia em sua capacidade de tomar as decisões certas no campo das políticas públicas. Imagine se o presidente tivesse colocado alguém como Weintraub no Ministério da Saúde. A guerra ideológica produziria pânico e incompetência, o que levaria a um derretimento da popularidade presidencial. Sorte do país que alguém que conhece bem os aprendizados em relação ao SUS e tem interlocução com os especialistas da área hoje coordena a atuação frente ao coronavírus. Se houvesse alguém comandando o MEC que entendesse de Educação e tivesse articulação com os atores da política educacional, o governo ganharia créditos com a sociedade.

A busca do pragmatismo, por fim, deveria ser a principal alteração no modelo bolsonarista de governar. Ser pragmático é conversar com setores sociais que vão além do bolsonarismo, afinal, numa crise é preciso unir, mais do que dividir o país. Além disso, adotar uma postura pragmática é saber adaptar e inovar nas políticas públicas frente às intempéries. Um liberalismo econômico cego nos levará para uma situação tão ruim quanto a nova matriz econômica de Dilma. O problema é que Bolsonaro só sabe professar ideologias e não entende de combinações de modelos, que exigem maior capacidade técnica do que decorar cartilhas.

Um governo mais aberto à negociação e à crítica, mais qualificado tecnicamente e mais pragmático é o que precisamos para sair dessa enorme crise. Se Bolsonaro não conseguir seguir essa trilha, não só o país sofrerá muito, como seu capital político será reduzido. O fato é que a crise faz com que os factoides fiquem cada vez menos engraçados, e os eleitores desejem menos mitos e mais resultados.

Uma última nota: numa crise tão complexa como essa, e com um debate tão polarizado e ideologizado, como faz falta a capacidade analítica de Celso Pinto! Eu aprendi com ele, ainda como repórter, a ser generoso com o mundo e rigoroso com os fatos. Precisamos de lideranças que pensem assim, em todos os campos da vida social.

Cavaleiros do Apocalipse

O Apocalipse, o último livro da Bíblia, foi escrito por João, um dos quatro evangelistas — os outros são Mateus, Marcos e Lucas —, por volta de 95 d.C., na pequena ilha grega de Patmos, no mar Egeu. São visões aterradoras, nas quais quatro cavaleiros espalham fome, guerra e peste. Anjos trombeteiam castigos e catástrofes. Há trovões, relâmpagos e terremotos; chuvas de granizo, fogo e sangue. Pragas terríveis se disseminam, como vorazes gafanhotos e venenosos escorpiões. João prevê um confronto final entre Deus e o diabo, entre o bem e o mal. Para muitos, relata o fim do mundo, embora esse não seja o juízo dos teólogos cristãos. Em grego, apocalipse significa “revelação”, ou seja, o desvendamento de coisas que até então permaneciam secretas a um profeta escolhido por Deus, o chamado juízo final: Deus manda os maus para o inferno e os bons para o paraíso.

Em 1348, a peste negra chegou à Península Itálica; para muitos, era o apocalipse. Foi uma das mais trágicas epidemias que assolaram o mundo ocidental. Assim como a Aids, que nesta semana registrou os dois primeiros casos de cura, a peste negra foi considerada um castigo divino contra os hábitos pecaminosos da sociedade. Originária das estepes da Mongólia, onde pulgas hospedeiras da bactéria Yersinia Pestis infectaram diversos roedores, que entraram em contato com zonas de habitação humana e se instalaram nos animais domésticos e nas peças de roupa. A peste foi disseminada pela chamada Rota da Seda e pelo comércio do Mediterrâneo. O intercâmbio comercial entre o Ocidente e o Oriente, reativado desde o século XII, explica a rápida propagação da doença pela Europa.

Não se tinha conhecimento, à época, para entender a doença, tanto sua variação bubônica, que atacava o sistema linfático, como a pneumônica, que atacava diretamente o sistema respiratório. Desconhecendo as origens biológicas da doença, muitos culpavam os judeus, os leprosos e os estrangeiros pela peste negra, embora as condições de vida e higiene nos ambientes urbanos do século XIV fossem grandes propulsoras da epidemia. Nas cidades medievais, lixo e esgoto corriam a céu aberto, atraindo insetos e ratos portadores da peste. A falta de higiene pessoal facilitava a propagação da epidemia, que se instalava por períodos de quatro a cinco meses. Cidades eram abandonadas ou se fechavam completamente, em quarentena. Um terço da população morreu.


O coronavírus não é uma simples gripe, antes fosse; pode até ser menos letal que a dengue, mas não é uma “fantasia” da mídia mundial, como disse o presidente Jair Bolsonaro. Faz parte de uma grande família viral, isolada pela primeira vez em 1937. No entanto, somente em 1965, o vírus foi descrito como coronavírus, em decorrência do perfil semelhante a uma coroa. Geralmente, infecções por coronavírus causam doenças respiratórias de leves a moderadas, semelhantes a um resfriado comum. A maioria das pessoas se infecta com os coronavírus comuns ao longo da vida, sendo as crianças pequenas a maior população de risco. O problema é que o novo coronavírus (Covid-19), descoberto em 31/12/19, após casos registrados na China, se propaga mais rápido, por hospedeiros assintomáticos, não tem vacina nem medicação específica e mata os pacientes de baixa imunidade, principalmente idosos e portadores de doenças crônicas. Agora, já virou uma pandemia, conforme anunciou, ontem, a Organização Mundial de Saúde.

Em circunstâncias iguais a de outros países, o Brasil teria todas as condições de evitar uma grave epidemia, a partir das medidas preventivas que estão sendo tomadas pelo Ministério da Saúde. A doença está atingindo pessoas de alta renda, que chegaram de viagens ao exterior; o problema é a doença sair do controle e se propagar de forma generalizada, num país com áreas urbanas muito degradadas, de condições sanitárias medievais. A outra face do problema é o impacto que a epidemia está tendo na economia mundial, que pode até entrar em recessão, ainda mais depois da crise do petróleo provocada pela guerra de preços e produção entre Arábia Saudita e Rússia.

Aqui, esse impacto deveria ser mitigado por medidas econômicas e financeiras mais eficientes, porém, uma crise de relacionamento entre o presidente Jair Bolsonaro e o Congresso pode pôr tudo a perder. O presidente da República, que subestima a epidemia, não cumpre acordo com o Congresso e convoca uma manifestação para pressioná-lo a não votar os projetos que o próprio Executivo encaminhou ao parlamento. Em resposta, o Congresso resolve jogar para a arquibancada e derrota o veto de Bolsonaro ao aumento do Benefício de Prestação Continuada (BPC), o salário mínimo destinado a idosos e deficientes, o que pode representar um aumento de despesas de R$ 7 bilhões a R$ 20 bilhões, dependendo de quem faz a conta. Ou seja, o cenário se deteriora na saúde, na política e na economia. E os cavaleiros do Apocalipse? Deixa pra lá…

Pensamento do Dia


Governo passa ideia de estar sem norte

É clássico que a vontade política, mais que a fé, remove montanhas. Pois, salvo se ela aparecer, o que não parece provável, a aprovação das reformas estruturais tendem a sucumbir ao conflito entre governo e Congresso, em ano de eleições municipais.

O otimismo que já ficara escasso no mercado piorou nas últimas 24 horas com o alarme da Organização Mundial de Saúde (OMS) para o coronavírus. À noite, o Congresso agravou o pessimismo ao derrubar o veto presidencial ao pagamento dobrado do Benefício de Prestação Continuada (BPC), que pode provocar um rombo de R$ 20 bilhões nas contas públicas em 2021 e comprometer o teto de gastos.

A derrubada de veto que não estava no raio de visão geral pode sinalizar uma disposição do Legislativo de atuar com independência, indiferente à retórica presidencial.

Fato é que Guedes pediu reunião de emergência com os presidentes da Câmara, Rodrigo Maia, e do Senado, Davi Alcolumbre, levando o colega da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, para mostrar que a decisão afeta também o combate ao coronavírus.


A pressão que começa a surgir por aumento dos gastos públicos é o primeiro passo para contestar a política liberal do ministro Paulo Guedes, cuja liderança econômica parece bastante abalada. O governo, segundo especulações, está em busca de algum mecanismo de reanimação da economia.

Economistas de diferentes vertentes, inclusive liberais, já clamam por maior flexibilidade no teto de gastos para destravar investimentos públicos e movimentar a economia para fazer frente ao provável cenário recessivo global.

O certo é que o curto prazo se impôs às reformas estruturais, cujo timing o governo perdeu e muitos acreditam que por omissão deliberada do presidente da República. Seria o caso da reforma administrativa, cuja demora no envio contradiz o discurso de sua importância sustentado pelo ministro da Economia.

As propostas que alteram o pacto federativo foram pouco discutidas, e tampouco o governo fez questão de acelerá-las. Ao contrário, a aposta do presidente Jair Bolsonaro em uma estratégia plebiscitária, convocando militantes às ruas contra o Congresso, realimentou o confronto e retarda o processo político

Bananeira

Uns carentes
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somos todos sobreviventes

Claufe Rodrigues, "AVDAVIDA"

Sem rumo, sem laços

Ken Loach fez um filme forte. Para mim, mais perturbador que Parasita ou Coringa, muito bons e grandes vedetes do ano. Mas nesses me senti distante daquelas realidades, apesar da relevância da discussão sobre desigualdade de renda, pobreza e violência retratados. Em Você Não Estava Aqui, a experiência foi oposta. A direção é seca, com atores excepcionais, sem trilha sonora ou glamourização na atuação e na cenografia. A vida como ela é.

Cansado de pular de emprego, dos patrões e da falta de oportunidades compatíveis com sua experiência, Ricky resolve se arriscar e virar autônomo. Vai ser entregador de encomendas. É avisado na partida de todos os riscos que estava correndo, tanto pelo contratante de seus serviços quanto pela própria mulher. Mas se joga. Não vê alternativas. A realidade, no entanto, se revela muito pior que imaginava.

O filme é visto como uma denúncia sobre a precarização das relações trabalhistas. É mais que isso. Há questões importantes ali levantadas, como a queda do padrão de vida após a recessão de 2008, os adolescentes que perdem interesse no ensino tradicional e a terrível realidade da falta de emprego para a meia-idade. Todos temos por perto alguém vivendo a mesma situação de desesperança. É o retrato de uma família que poderia ser a nossa. Um soco no estômago.

É passado no Reino Unido, mas faz pensar sobre Brasil. O impacto da nova revolução tecnológica sobre mercado de trabalho ou a necessidade de adaptação do currículo escolar, que evite a evasão de jovens, são temas comuns. A grande diferença está na rede de proteção social, que aqui não existe. Lá, serviços públicos ajudam a família a lidar com a situação por eles inesperada. Transporte que permite à mulher, mesmo que com muito sacrifício, manter seu emprego como cuidadora; acesso à rede de saúde, e uma escola que mantém um acompanhamento rigoroso da frequência e desempenho dos filhos.


Aqui, o País está despreparado e, pior, parece despreocupado para enfrentar a revolução tecnológica disruptiva dos dias atuais. Muitas profissões estão deixando de existir. O assunto é sério, por isso, é injustificável a indiferença com a requalificação, ou mesmo a qualificação, do trabalhador brasileiro. O abandono da área de Educação, a mais importante porta para igualar oportunidades, hoje comandada por um incapaz, é mais que chocante. É criminosa.

A indiferença social deste governo está por toda a parte. O desmonte do Bolsa Família, as filas no INSS e a desumanidade na prova de vida convivem com a proteção à indústria e o gigantismo do Estado. Pequenos arroubos liberais não atingem a elite empresarial ou as fortes corporações. Não há privatização, abertura comercial ou eliminação de isenções e créditos tributários. A competitividade e a produtividade seguem baixas, e não geram emprego nem em quantidade nem com qualidade necessárias. O governo é liberal na pregação, mas capenga na prática.

E agora temos uma crise recessiva e humanitária com o coronavírus para aprofundar os problemas que já temos, que vai exigir respostas mais efetivas. Frustrados com o fraco desempenho da economia, muitos vaticinam: “o modelo liberal não deu certo”. A verdade é que ele nem sequer foi testado. Faltaram políticas públicas que gerem igualdade de oportunidades, mobilidade social e assistenciais, que terão que ser ampliadas em tempos de covid-19. Nesse ambiente, a pressão pelo abandono do controle de gastos aumentou e o apelo ao retorno ao que já deu errado cresce.

A única resposta para uma sociedade atônita foi a insistência de Guedes nas reformas. A lista de “prioridades” do ministro de Economia é longa e confusa. Traz 19 projetos e 48 propostas. A falta de empatia dos governantes com a população assusta.

As reformas são importantes, claro, mas já o eram no 1.º dia de mandato. A Previdência foi aprovada na Câmara em junho do ano passado. Nada mais aconteceu nesses nove meses. O governo não se empenhou sequer na votação da PEC, que traz “emergência” no nome. A desarticulação e o despreparo são reflexo de um governo que tem desprezo pela política e pela democracia.

Indiferente, o presidente mantém sua briga pessoal contra os Poderes Legislativo e Judiciário. Nada indica que esteja preocupado com a grave crise nacional e internacional. Vive em outra dimensão. Não há uma resposta para a crise. Um retrato do liberalismo sem alma e sem direção deste governo.

O filme de Ken Loach termina com um pedido: “Quero voltar ao que tínhamos antes”. Impossível. Não tem volta.

O coronavírus e nosso pandemônio de emoções

Somos todos, de repente, protagonistas e coadjuvantes de um filme de ficção científica com um fim ainda não escrito, em aberto. O drama é universal, envolve milhares de pessoas. Os vilões principais são animais longínquos e chineses. Os vilões locais são, de um lado, a ignorância e a negligência. Do outro lado, o pânico e a histeria.

E nós no meio. Como agir com equilíbrio? Sem minimizar a pandemia, como fez irresponsavelmente o presidente Bolsonaro, ou agir no outro extremo, confinando a nós mesmos e isolando nossos familiares? São amedrontadoras as cenas onde a covid-19 já fez grandes estragos. São pavorosas algumas histórias, de italianos dormindo em casa com cadáveres. O novo coronavírus assusta pela rápida expansão e pelo altíssimo nível de contágio. Exigir serenidade da população é um pouco demais.
Como continuar a viver numa boa, diante do alarme da Organização Mundial da Saúde? É uma doença detectada em todos os continentes e, agora, já em pacientes que nunca viajaram para áreas mais infectadas. Foram contaminados localmente, de origem incerta. 

O manual básico de prevenção é conhecido: lavar as mãos compulsivamente, álcool gel a 70%, evitar beijinhos, adiar viagens, não se meter em aglomerações, espirrar e tossir no braço, usar lenços descartáveis. Mas todo o tempo tocamos em “superfícies”. Inevitável. Corrimões, maçanetas, braços de poltrona, assentos em transporte público, dinheiro, balcões. E não há lavatórios a cada passo. 


A solução para evitar o pandemônio de emoções é pensar na baixa letalidade até agora, respirar fundo e cobrar seriedade e prevenção das autoridades de saúde. Essa é a diferença da evolução da doença entre países que se preveniram, como Coreia do Sul, e os que deixaram rolar, como a Itália. Os sul-coreanos aplicaram mais de 200 mil testes, com resultado em 10 minutos, e doentes foram imediatamente confinados. O tal clichê “melhor prevenir do que remediar” nunca foi tão comprovado.

Sabemos que criança costuma passear pelo coronavírus como se fosse uma gripe ruim. É pior para as que têm asma e bronquite. Sou avó, tenho 65 anos, vim da França em fevereiro, tive câncer no ano passado. Sou suspeita? Sou mais vulnerável a contrair coronavírus? Sim e não para ambas as perguntas, dizem meus médicos. Grande resposta! “Você não tem sintomas, sua imunidade é boa e você nunca teve pneumonia, problemas cardíacos ou diabetes” – esses sim, males mais ligados ao coronavírus. 

Posso encontrar meus netos??? Só os avós entendem os três pontos de interrogação. Sim, pode, mas nada de muito beijinho e abraço porque crianças assintomáticas podem ter o vírus e te contaminar. Esse é um motivo para não se recomendar fechamento de escolas. Muitas crianças acabam cuidadas por avós. É arriscado. Conversei com um excelente pediatra, gostaria de citá-lo, mas até ele está cheio de dedos sobre o que posso ou não citar como suas aspas.

Durante três, quatro meses, considerado o pico da epidemia, nossa vida mudará. A partir de hoje, o aumento de infectados será exponencial no Brasil. O novo coronavírus expõe nosso medo irracional da morte, mesmo que acabe sendo menos letal menos do que a dengue. Foram 700 mortos de dengue em 2019. Para quem mora em favelas ou ambientes insalubres, oito pessoas num mesmo cômodo, o drama do coronavírus é muito mais sério. Como sempre.

Quem viu “Ensaio sobre a cegueira”, filme de Fernando Meirelles baseado no livro de José Saramago, entende o que se passa com uma população submetida a um vírus desconhecido que tira a visão de todos. O primeiro fica cego ao volante de um carro. O resultado coletivo é “uma cegueira branca”, moral e física, que condena os pacientes a se tornarem seres cada vez mais ignorantes e brutos, cada vez menos humanos. Esse vírus mete o maior medo no Brasil.