segunda-feira, 26 de novembro de 2018

Paisagem brasileira

Cido Oliveira

Juízes e presidentes

O ex-presidente peruano Alan García, cercado pela Justiça devido a supostos casos de má administração e recebimento de propinas durante seu segundo Governo, relacionados à construção do metrô de Lima, optou por pedir asilo na Embaixada do Uruguai alegando ser alvo “de perseguição política”. O pretexto é simplesmente grotesco, porque no Peru de hoje não há um único preso político e ninguém é perseguido por suas ideias ou filiação partidária; e provavelmente nunca houve tanta liberdade de expressão e de imprensa como a que existe hoje no país.

Naturalmente, o outro lado da moeda é que os quatro últimos chefes de Estado são alvo de investigações por suspeita de roubos. Eles se encontram investigados pelo Poder Judiciário, com ordens de prisão e embargo de seus bens, ou foragidos. Por sua vez, o ex-ditador Alberto Fujimori, condenado a 25 anos de prisão por seus crimes, está refugiado sob tratamento intensivo na Clínica Centenário de Lima, de onde, caso saia, voltará para a cadeia da qual o tirou um indulto indevido do ex-presidente Pedro Pablo Kuczynski. Este último, também com ordem de prisão, é alvo de uma investigação judicial por lavagem de dinheiro, assim como o ex-presidente Ollanta Humala, que, com sua mulher, Nadine, ficou dez meses em prisão preventiva. O outro ex-presidente, Alejandro Toledo, fugiu para os Estados Unidos quando se descobriu que tinha recebido cerca de 20 milhões de dólares (76 milhões de reais) de propinas da Odebrecht, e agora é alvo de um processo de extradição movido pelo Governo peruano.

Essa coleção de presidentes suspeitos de corrupção — eu me acuso de tê-los promovido e haver votado neles, acreditando que fossem honestos — justificaria o mais sombrio pessimismo sobre a vida pública do meu país. No entanto, depois de ter passado oito dias no Peru, volto animado e otimista, com a sensação de que, pela primeira vez em nossa história republicana, há uma campanha eficaz e valente de juízes e procuradores para punir de verdade os presidentes e funcionários desonestos, que aproveitaram seus cargos para cometer crimes e enriquecer. É verdade que nos quatro casos até agora só há presunção de culpa, mas os indícios, principalmente em relação a Toledo e García, são tão evidentes que é muito difícil acreditar em sua inocência.

Como em boa parte da América Latina, o Poder Judiciário no Peru não tinha fama de ser aquela instituição incorruptível e sábia encarregada de zelar pelo cumprimento das leis e punir os crimes; e tampouco de atrair, com seus salários medíocres, os juristas mais capazes. Pelo contrário, a má fama que o rodeava fazia supor que um grande número de magistrados não tinha a formação e a conduta devidas para administrar justiça e merecer a confiança dos cidadãos. No entanto, de algum tempo para cá, uma revolução silenciosa está em andamento no seio do Poder Judiciário, com o surgimento de um punhado de juízes e procuradores honestos e capazes, que, correndo os piores riscos, e apoiados pela opinião pública, conseguiram corrigir aquela imagem, enfrentando os poderosos — tanto políticos como sociais e econômicos — em uma campanha que levantou o ânimo e encheu de esperanças uma grande maioria de peruanos.

A corrupção é hoje o maior inimigo da democracia na América Latina, corroendo-a a partir de dentro, desmoralizando a cidadania e semeando a desconfiança em relação a instituições que parecem nada mais do que a chave mágica que transforma as maldades, os crimes e os privilégios em ações legítimas. O que ocorreu no Brasil nos últimos anos foi um anúncio do que poderia ocorrer em todo o continente. A corrupção havia se espalhado por todos os cantos da sociedade brasileira, comprometendo igualmente empresários, funcionários, políticos e gente comum, estabelecendo uma espécie de sociedade paralela, submetida aos piores compromissos e imoralidades, na qual as leis eram sistematicamente violadas em qualquer lugar, com a cumplicidade de todos os poderes. Contra esse estado de coisas se levantou o povo, liderado por um grupo de juízes que, amparados pela lei, começaram a investigar e a punir, enviando para a prisão aqueles que, por seu poder econômico e político, acreditavam ser invulneráveis. O caso da Odebrecht, uma empresa todo-poderosa que corrompeu pelo menos uma dezena de Governos latino-americanos para conseguir contratos multimilionários de obras públicas — sem suas famosas “delações premiadas”, os quatro ex-chefes de Estado peruanos estariam livres de problemas com a Justiça —, transformou-se praticamente no símbolo de toda aquela podridão. É isso que explica o fenômeno Jair Bolsonaro. Não é que 55 milhões de brasileiros tenham se tornado fascistas da noite para o dia, e sim que uma imensa maioria de brasileiros, farta da corrupção que tinha se transformado no ar respirado no Brasil, decidiu votar no que acreditava ser a negação mais extrema e radical daquilo que se chamava de “democracia” e era, pura e simplesmente, uma delitocracia generalizada. O que acontecerá agora com o novo Governo desse caudilho abracadabra? Minha esperança é que pelo menos dois de seus ministros, o juiz Sérgio Moro e o economista liberal Paulo Guedes, moderem-no e o levem a atuar dentro da lei e sem reabrir as portas para a corrupção.

Seria uma vergonha se o Uruguai concedesse asilo a Alan García, que não está sendo investigado por suas ideias e atuações políticas, e sim por crimes tão comuns como receber propinas de uma empresa estrangeira que competia por contratos multimilionários de obras públicas durante seu Governo. Seria como fornecer um álibi de respeitabilidade e vitimização a quem — se for verdade aquilo de que é acusado — contribuiu de forma flagrante para desvirtuar e degradar a democracia que, com justiça, esse país sul-americano se gaba de ter mantido durante boa parte de sua história. O direito de asilo é, sem dúvida, a mais respeitável das instituições em um continente tão pouco democrático como foi a América Latina, uma saída de emergência contra as ditaduras e suas ações terroristas para calar as críticas, silenciar as vozes dissonantes e liquidar os dissidentes. No Peru, conhecemos bem esse tipo de regimes autoritários e brutais que semearam sangue, dor e injustiças durante grande parte de nossa história. Mas, precisamente porque estamos conscientes disso, não é justo nem aceitável que em um período como o atual, no qual, em contraste com aquela tradição, vive-se um regime de liberdades e de respeito à legalidade, o Uruguai conceda a condição de perseguido político a um dirigente que a Justiça investiga como suposto ladrão.

Os juízes e procuradores peruanos que se atreveram a atacar a corrupção na pessoa dos últimos quatro chefes de Estado contam com um apoio da opinião pública que o Poder Judiciário jamais teve em nossa história. Eles estão tentando transformar a realidade peruana em algo semelhante àquilo que o Uruguai representou durante muito tempo na América Latina: uma democracia de verdade e sem ladrões.

Apenas carne no matadouro

Labilela (Etiópía - 1997), Raymond Depardon
Os simples são carne de matadouro, de se usar para colocar em crise o poder adverso, e para sacrificar quando não prestam mais
Umberto Eco, O nome da rosa

Mais médicos, menos fantasia

Breve, a discussão ideológica ficará para trás, e então poderemos nos concentrar no que realmente interessa: a saúde de milhões de brasileiros.

A grande oportunidade que está diante de nós é a ida de milhares de jovens médicos brasileiros para o interior. As condições salariais são atraentes. O dinheiro ficaria no Brasil.

Mas não é esse o principal ganho. O encontro de milhares de jovens da classe média urbana com os rincões do Brasil pode representar para eles um grande aprendizado.


Já houve grandes momentos históricos em que esse encontro se deu. Na Rússia, no século XIX, quando milhares de estudantes foram compartilhar o cotidiano dos camponeses. Havia muito romantismo, ideias revolucionárias, uma visão idealizada dos pobres do campo. Embora o resultado tenha sido revoluções esmagadas, foi um período rico para a própria cultura russa.

Aqui, no Brasil, as idealizações não são as mesmas. Minha impressão é que os brasileiros vão encontrar no interior surpresas positivas sobre as pessoas que vivem lá. Os russos se decepcionaram porque esperavam ver nos camponeses um reflexo de suas fantasias urbanas.

A ida dos médicos brasileiros teria o mesmo valor pedagógico que a carreira oferece aos militares: percorrer diferentes pontos do país, sentir a diversidade, acreditar mais ainda no potencial do Brasil.

Não há contraindicação ideológica. Ouso dizer mesmo para uma juventude de esquerda dos grandes centros: o choque cultural seria benéfico. Certamente, sairia mais realista.

Meu primeiro trabalho na TV, creio em 2014, foi sobre uma cidade do Maranhão chamada Buriti Bravo. Já era uma aproximação com o Programa Mais Médicos. Uma visita às cidades mais desamparadas, no Maranhão e no Amapá.

Semana passada, procurei algumas pessoas como o escritor Antonio Lino, que fez uma dezena de viagens para escrever sobre o Mais Médicos. E também o sanitarista Hermano Castro, da Fiocruz.

Minhas primeiras conclusões: o programa é essencial para as cidades cobertas; ele pode ser feito majoritariamente por brasileiros, o que não significa que alguns estrangeiros não possam participar, dentro das regras do jogo. Constatei também que o gargalo é a formação desse tipo de médico. Isto estava previsto no programa de Dilma, mas não foi bem desenvolvido.

É preciso ser realista. Apesar dos salários, ainda é muito difícil fixar um jovem médico no interior. A realidade me leva de novo ao mundo das ideias.

A única maneira de atenuar realmente o problema é uma valorização simbólica desse tipo de trabalho. Transmitir um pouco, por exemplo, a chama que ilumina um grupo como o Médicos Sem Fronteiras, que leva ajuda a pessoas em grandes dificuldades. No caso, o governo comprar essa ideia talvez não ajude tanto quanto se fosse aceita pelo mundo cultural. Não proponho heróis positivos, são pessoas de carne e osso que merecem um reconhecimento maior.

Tanto os cubanos quanto a esquerda encaram esse trabalho como o produto de uma visão socialista, e desafiamos a verem na medicina um mercado, e não adotarem suas teses.

Esquecem que a exportação de serviços médicos é um importante item no comércio exterior cubano. É um negócio de Estado. Não só o Médicos Sem Fronteiras, mas inúmeras organizações humanitárias no mundo demonstram que essa presença ao lado dos mais fracos não é, unicamente, uma consequência da visão socialista.

Para completar a semana, ouvi uma conferência do ministro alemão Cristoph Bundscherer num painel sobre indústria 4.0. Paradoxalmente, ele falava de um futuro tecnológico com diagnósticos à distância, portanto, com menos médicos.

Se combinarmos a formação dos novos médicos com uma abertura para o mundo tecnológico, é possível atenuar esse grande problema brasileiro.

No momento, temos um pepino. No futuro, talvez nos lembremos da passagem dos cubanos apenas como um doloroso aprendizado. É raro um contrato ser rompido assim, numa área tão sensível, sem que tenhamos salvaguardas. Isso faz parte do legado. Ideologias se interessam pelas ideias, não pelas pessoas.

Sujeito (não tão) oculto

Assim como o “Escola sem Partido” significa na verdade trocar um partido por outro, a nova ordem está trocando a “ideologização da esquerda” pela “ideologização da direita”, sob a mesma inspiração, grandiloquência, antipetismo, atingindo em cheio duas das áreas mais sensíveis: Relações Exteriores, com o diplomata Ernesto Araújo, e Educação, com o filósofo Ricardo Vélez Rodríguez.

A inspiração vem de fora, do também filósofo Olavo de Carvalho, ideólogo da direita brasileira, que mora desde 2005 nos Estados Unidos, tem Twitter em inglês e já avisou que até topa um cargo no governo do qual ele é mentor, mas com uma condição: que seja lá, nos EUA, como embaixador. O PT já era e Jair Bolsonaro está chegando, mas bom mesmo continua sendo a Virgínia.

Assim como Ernesto Araújo causou enorme perplexidade ao ver o “globalismo” como complô interplanetário liderado pela “China maoista” para exterminar o Ocidente e os valores cristãos, Vélez Rodríguez se coloca como um Dom Quixote na guerra pela preservação do “valores tradicionais de nossa sociedade”. Ambos, aliás, pelo mesmo veículo: seu blog anti-PT e pró-Bolsonaro.

Professor emérito da Escola de Comando do Estado Maior do Exército e professor colaborador de Pós-graduação em Ciência da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora, o futuro ministro da Educação se destaca por ser contra o PT, o Enem, as cotas, a ideologia de gênero e, claro, a favor do “Escola sem Partido”, mas sem pressa.

Nascido na Colômbia, está convencido de que as escolas brasileiras vêm sendo usadas para impor à sociedade uma doutrinação marxista e desmontar os valores tradicionais “no que tange à preservação da vida, da família, da religião, da cidadania, em suma, do patriotismo”.

Ou seja: na visão do novo governo, o Itamaraty e as escolas estão infestados de comunistas, contaminados pela ideologia marxista, servindo de instrumentos para o “climatismo” e o “antinatalismo”, conceitos criados por Araújo para explicar como os ambientalistas, abortistas e ateus se articulam para, ardilosamente, destruir o mundo.

No “Novo Brasil”, portanto, há o risco de expurgos, dedos em riste, dossiês, acusações, suspeitas, danças estonteante de cadeiras, sabatinas para apurar a ideologia de servidores e professores concursados e “depurar” o Estado. Ou é só impressão, um temor delirante? Tomara que sim.

Num campo mais concreto: assim como o futuro chanceler deve explicações sobre como projetar a imagem do Brasil, atrair investimentos, melhorar as condições de comércio e fortalecer parcerias, espera-se que o ministro da Educação diga com clareza o que ele pretende fazer pela... educação.

Pela valorização dos professores, qualidade do aprendizado, a escola como fator de igualdade de oportunidades, a qualificação dos jovens, a excelência das universidades. No primeiro texto depois de anunciado, ele prometeu focar nos municípios, na perspectiva individual e nas diferenças regionais. E terminou com a saudação bolsonarista: “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”.

Com Mozart Neves, sabia-se o que ele significava e pretendia, porque ele não divaga sobre ideologias e ameaças fantasmagóricas e é, sim, uma reluzente referência do Instituto Ayrton Senna. Precisa dizer mais? Por isso, foi descartado com tanta ligeireza e escorraçado pela bancada evangélicas, que testou forças e ganhou.

Talvez fosse melhor Jair Bolsonaro trocar a metafísica do distante Olavo de Carvalho pelos critérios de Paulo Guedes. Vamos combinar que as escolhas do ministro da Fazenda para salvar a economia do País estão sendo bem mais pragmáticas, úteis e consensuais do que as do filósofo erudito para salvar o mundo e o Brasil dos próprios demônios dele.

Imagem do Dia

 Chobgqing (China)

Bolsonaro tenta inventar a coalizão sem partido

Enquanto o noticiário se ocupa da polêmica mais recente — Escola sem Partido—, Jair Bolsonaro tenta colocar em pé a principal novidade da temporada pós-eleitoral: a coalizão sem partido. A oligarquia partidária já sentiu o cheiro de enxofre. Mas evita o confronto em campo aberto. O alto comando do fisiologismo cava suas trincheiras no Congresso em silêncio. Sabe que está em desvantagem, pois se alguém apresentasse no Legislativo uma proposta de dissolução imediata dos partidos seria aplaudido de pé nas esquinas de todo país.

Não é que Bolsonaro tenha levado ao pé da letra a promessa de acabar com o toma-lá-dá-cá. É dando que o capitão espera obter votos no Congresso. A diferença é que ele imagina ter encontrado uma maneira de camuflar o código de barras. Dividiu o território da Esplanada dos Ministérios em três pedaços: dois que serão presumivelmente geridos com seriedade, e outro nem tanto. Nos pedaços que todos presumem sérios, foram acomodados militares da reserva, como o general Augusto Heleno (GSI); e técnicos como Sergio Moro (Justiça) e Paulo Guedes (Economia).

No terceiro pedaço, estão os ministérios a serviço do fisiologismo. Coisa fina: Agricultura, Educação e Saúde, por exemplo. Na campanha, Bolsonaro rasgou o sistema político-partidário. Eleito, costura o casaco do lado avesso. Em vez de fechar negócio com o partido par ou com a legenda ímpar, negociou ministérios com frentes parlamentares temáticas. Imagina que sairá mais barato.

Num esforço para melhorar a coreografia, Bolsonaro evitou acertos com o PTB de Roberto Jefferson, o PR de Valdemar Costa Neto e assemelhados. Numa evidência de que não é fácil modificar integralmente o cenário, o presidente eleito encostou seu futuro governo nas bancadas do Boi, da Bíblia e da Saúde. A turma da Bala aguarda na fila.



Por um instante, imaginou-se que, sob Bolsonato, a Presidência da República seria da cota do DEM, pois calhou de as bancadas suprapartidárias indicarem deputados do ex-PFL. Além de Onyx Lorenzoni (DEM-RS), que cosquistara a chefia da Casa Civil, foram guindados ao primeiro escalão dois representantes do DEM de Mato Grosso do Sul na Câmara: Luiz Henrique Mandetta (Saúde) e Tereza Cristina (Agricultura).

Descobriu-se na sequência que, no novo governo, o Palácio do Planalto pertence, na verdade, à cota dos evangélicos. Para além do poder de indicar, a banda da Bíblia usufrui do privilégio de vetar ministros. Enviou à fogueira o educador Mozart Neves Ramos, que cometeu o pecado de não beijar a cruz do projeto de Escola sem Partido. Os parlamentares de Cristo celebraram a indicação do colombiano Ricardo Vélez Rodríguez.

“A bancada evangélica é importante, não é para mim, é para o Brasil”, disse Bolsonaro neste sábado (24). “A pessoa indicada (para a Educação) não é evangélica, mas atende aquilo que a bancada evangélica defende como os princípios, valores familiares, respeito à criança… Formar alguém que seja útil para o Brasil e não para o seu partido.”

A maneira como Bolsonaro se prepara para governar tornou-se surpreendente porque ninguém prestava muita atenção no personagem antes de ele virar um fenômeno eleitoral. O histórico parlamentar e a origem do mandato presidencial revelam que Bolsonaro não gosta de se coligar com ninguém. Nos seus 28 anos como deputado, nunca foi visto numa reunião com líderes partidários para negociar um projeto. Sempre preferiu a encrenca à concórdia. Na corrida presidencial, se pudesse, não teria se coligado nem com o seu partido, o PSL.

Há políticos cujo temperamento permitiu que formassem grandes coligações. Foi o caso, por exemplo, de José Sarney e Fernando Henrique Cardoso, duas almas acomodatícias. Lula, embora também fosse afeito à negociação, optou por compor sua coalizão levando à fronteira do paroxismo o fisiologismo praticado sob Sarney e FHC. O mensalão e o petrolão, esquemas de compra de apoio parlamentar com moeda sonante, tiveram origem no primeiro reinado de Lula. Deu em cadeia.

Outros presidentes tentaram governar acima dos partidos políticos antes de Bolsonaro. Os casos clássicos são os de Fernando Collor de Mello e Jânio Quadros. Deram-se mal. Um foi enxotado do Planalto. Outro bateu em retirada. O que há de diferente no caso de Bolsonaro é o uso das frentes parlamentares temáticas como estepes dos partidos clássicos, quase todos em processo de autocombustão. Como sucede em qualquer transação mercantil, será preciso fazer uma conta do tipo custo-benefício.

A chance de a manobra de Bolsonaro dar certo é pequena. Além das emboscadas que a oligarquia partidária planeja realizar, não é certo que os membros das bancadas temáticas, habituados às mobilizações em torno de causas específicas, se animarão a pegar em lanças por um pacote de reformas que inclui da reviravolta na Previdência ao embrulho anticorrupção. Seja como for, Bolsonaro sempre poderá alegar que tentou fazer algo diferente.

Crise brasileira aumentou fosso entre ricos e pobres

A economia brasileira cresceu 1% em 2017 após dois anos de retração. A pequena recuperação, porém, não beneficiou todos os brasileiros, aponta relatório da ONG Oxfam sobre as desigualdades no Brasil divulgado nesta segunda-feira.

No documento País estagnado: um retrato das desigualdades brasileiras - 2018, cálculos feitos pela instituição a partir dos microdados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) mostram que os segmentos mais ricos conseguiram aumentar sua renda no ano passado, enquanto os ganhos dos mais pobres recuaram.

De 2016 para 2017, os 10% de brasileiros mais ricos experimentaram, em média, um aumento de 6% nos ganhos obtidos com seu trabalho. Já considerando também outras fontes de rendas (como aposentadorias, pensões, aluguéis, etc), o rendimento médio desse grupo atingiu R$ R$ 9.519,10 em 2017, uma alta de 2% ante 2016 (R$ 9.324,57).

A metade mais pobre da população, por sua vez, teve uma retração de 3,5% de seus rendimentos do trabalho em 2017, um reflexo do aumento do desemprego no país. Já a média de rendimentos totais, que inclui também benefícios sociais, caiu 1,6% para R$ 787,69, o que representa menos de um salário mínimo.


"As atenuações nas quedas de rendimentos dos mais pobres, quando considerados rendimentos totais em contraste com renda de todos os trabalhos, mostram a importância de o Estado reduzir o impacto de crises econômicas, que tendem a atingir os mais pobres com mais força", destaca a Oxfam.

Outro reflexo da crise econômica e da alta taxa de desemprego - que passou de 11,5% em média em 2016 para 12,7% em 2017 - foi o aumento do número de pobres no país pelo terceiro ano seguido.

Segundo o relatório, o Brasil tinha 15 milhões de pessoas pobres - que sobrevivem com uma renda de até US$ 1,90 por dia (pouco mais de R$ 7, segundo critério do Banco Mundial) - em 2017, o que representa 7,2% da população. Isso significou alta de 11% em relação a 2016, quando havia 13,3 milhões de pobres (6,5% da população).
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Além de trazer cálculos próprios, o estudo faz uma análise de dados já divulgados por diferentes instituições. O relatório chama atenção, por exemplo, para a estagnação da queda na desigualdade de renda em 2017, após quinze anos sucessivos de melhora desse indicador.

O índice de Gini - que mede a concentração de renda na sociedade e varia de zero (perfeita igualdade) até um (desigualdade máxima) - vinha recuando desde 2002 até 2015 no Brasil. Em 2016, devido a mudanças na pesquisa de renda (Pnad) do IBGE, não foi possível comparar o resultado no ano anterior. Em 2017, quando a comparação foi retomada, o indicador ficou em 0,549, estável em relação a 2016.

Com isso, o país passou de 10º para 9º mais desigual do planeta no ano passado, segundo ranking do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud).

Para retomar os avanços na distribuição de renda, o relatório sugere mudanças na forma como o Estado arrecada e gasta. A Oxfam ressalta que o sistema tributário do país vai na contramão do modelo dos países desenvolvidos ao privilegiar impostos indiretos (sobre produção e consumo) em detrimento daqueles que incidem diretamente sobre renda.

Na prática, isso contribui para a concentração de renda, já que os mais pobres acabam pagando proporcionalmente mais impostos.

A organização defende, então, a volta da tributação sobre lucros e dividendos distribuídos por empresas a acionistas, assim como a criação de novas alíquotas de impostos de renda (IR) mais elevadas para brasileiros com maior renda. Hoje, a alíquota máxima de IR no país é de 27,5%, cobrada sobre todos que ganham acima de R$ 4.664,68.

A proposta vai na direção oposta da prometida pela campanha do presidente eleito Jair Bolsonaro. Durante a corrida eleitoral, o futuro ministro da Fazenda, Paulo Guedes, disse que quer unificar a alíquota de IR em 20% para todos que ganhem acima de R$ 5 mil, deixando isentos os brasileiros com renda abaixo desse valor.

Segundo Rafael Georges, coordenador de Campanhas da Oxfam e autor do relatório, é possível distribuir renda sem elevar a carga tributária, mas para isso é preciso tornar o sistema mais progressivo, como prevê a Constituição brasileira.

"Alíquota única (de IR) joga contra a redução da desigualdade. Não faz sentido, não é previsto na Constituição e é excessivamente benevolente com o topo da pirâmide social no Brasil, que já paga pouco imposto de renda. Vamos esperar propostas concretas (do novo governo) para uma posição mais definitiva", afirmou.

Do ponto de vista de gastos, a Oxfam critica medidas de austeridade (cortes de despesas públicas) que impactam o atendimento aos mais pobres em serviços públicos como saúde e educação, defendendo a revogação da emenda constitucional que congelou os gastos públicos por 20 anos.

Defensores do chamado "teto dos gastos" argumentam que ele é necessário para tirar as contas públicas do vermelho - rombo que vem desde 2014.

O documento reconhece que o equilíbrio fiscal é necessário para dar sustentabilidade à redução das desigualdades, mas considera que o congelamento dos gastos não resolve o problema.

"Não defendemos expansão descontrolada de gastos. O problema é que o teto congela tudo. Os gastos sociais que aumentam a produtividade da economia no médio prazo, como investimento em educação e saúde e em infraestrutura, e não mexe nos privilégios", argumenta Georges.

O documento também mostra um aumento no fosso de renda racial e de gênero.

A partir da análise de dados do IBGE, a Oxfam detectou o primeiro aumento na desigualdade de rendimento entre homens e mulheres em 23 anos. Enquanto em 2016 as brasileiras ganhavam em média o equivalente a 72% da remuneração dos brasileiros, em 2017 esse percentual recuou para 70% (R$ 1.798,72, contra R$ 2.578,15 da renda média masculina).

O agravamento foi ainda pior no caso da desigualdade racial. Em 2017, o ganho médio dos negros ficou em R$ 1.545,30, pouco mais da metade (53%) do rendimento dos brancos (R$ 2.924,31). Esse percentual era de 57% em 2016.

"Em geral, em momentos de crise, quem é o primeiro a perder o emprego no Brasil São aqueles que estão na franja da economia, com contratos temporários, na ponta do setor de serviços, a mão de obra da construção civil, o chão de fábrica. Essas pessoas são a base da pirâmide e em sua maioria são negros e mulheres", ressalta o coordenador de Campanhas da Oxfam.

Conto do vigário

Nas eleições deste ano, o Senado Federal teve a maior renovação desde o fim da ditadura militar. Em 2018, coube a cada Estado eleger dois senadores. Eram, assim, 54 cadeiras em disputa. Desse total, os eleitores elegeram 46 novos nomes. A taxa de renovação foi de 85%, numa indiscutível demonstração de que o eleitor quer uma nova política. Mais do que cansado, pode-se dizer que o cidadão está enojado das práticas políticas que se tornaram habituais no País. Contrariando boa parte das projeções, que previam um pequeno nível de renovação dos membros do Congresso, o eleitor foi às urnas no dia 7 de outubro mostrar que deseja algo diferente, muito diferente, do que vem prevalecendo nos últimos anos em Brasília.

Conseguiu-se a almejada renovação da Câmara e, principalmente, do Senado. Mas o que ouve é que o nome que desponta para presidir o Senado no ano que vem é do alagoano Renan Calheiros, cabal personificação da velha política.

É assustador que, com tantos novos senadores, não se tenha conseguido pensar em nenhum outro nome para a presidência do Senado. Os hábitos e práticas políticas de Renan são conhecidos. Por exemplo, apesar de pertencer ao MDB, partido do presidente Michel Temer, Renan Calheiros fez insistente oposição à reforma da Previdência, com discursos demagógicos e populistas.

Em vez de apoiar as reformas de que o País tanto precisa, o senador alagoano preferiu aliar-se ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva em negociações que selam o atraso de Alagoas. O Estado natal de Renan Calheiros teve o pior Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) nas edições de 2000, 2010 e 2014. Em vídeo publicado em junho nas redes sociais, Renan declarou apoio à então pré-candidatura do presidiário petista. “Lula é candidato a voltar à Presidência da República, tem direito de fazer campanha porque não cometeu crime algum e foi condenado sem provas”, disse o senador, que tenta assumir pela quarta vez a presidência do Senado. Ele já presidiu a Casa de 2005 até 2007, de 2013 a 2015 e de 2015 a 2017. Em 2007, renunciou ao cargo após escândalo de corrupção.

Seus malabarismos político-partidários vêm de longa data. Se nos últimos anos tem sido um aliado habitual do sr. Lula da Silva, Renan Calheiros já esteve no lado oposto. Em 1989, filiado ao Partido da Reconstrução Nacional (PRN), foi um dos principais assessores do então candidato à presidência da República Fernando Collor de Mello. Meses depois, Renan, líder do governo no Congresso, foi quem defendeu o pacote de medidas econômicas de Collor, que incluía o famoso confisco da poupança.

Mas Renan Calheiros não é conhecido apenas pelos cargos que ocupou ao longo de quatro décadas de vida política. Fez-se notório por seu contumaz envolvimento com fatos definidos no Código Penal. Renan Calheiros responde a mais de uma dezena de processos e inquéritos criminais. Diversas vezes seu nome foi citado em escândalos de corrupção relacionados à Operação Lava Jato. Num dos casos, a Procuradoria-Geral da República (PGR) apresentou ao Supremo Tribunal Federal denúncia contra Renan Calheiros, entre outros políticos, por corrupção e lavagem de dinheiro envolvendo a Transpetro, subsidiária da Petrobrás. Noutro caso, ele é investigado por um suposto esquema de desvio de recursos do Postalis, fundo de pensão dos Correios.

Submete o eleitor a um conto do vigário a ampla campanha habilmente desenvolvida por Renan Calheiros para ocupar a presidência do Senado no próximo biênio. As eleições mostraram que a população deseja que o País ande para a frente e renove suas práticas políticas. Renan, de volta à presidência do Senado, representaria um total retrocesso e uma evidente quebra de expectativa. Seria como se o que ocorre no Congresso não tivesse nenhuma relação com a vontade da população. É uma lástima que Alagoas tenha sido capaz de eleger mais uma vez o senador Renan Calheiros, mas isso de forma alguma é pretexto para ampliar o problema, alçando-o à presidência da Casa. A tolerância do brasileiro tem limites.