quinta-feira, 19 de outubro de 2017

O medo que nos une

Democracia é o povo no poder. Ponto.

O desastre brasileiro só vai se aprofundar se continuarmos discutindo “porque” ou “quando” a imunidade dos mandatos parlamentares deve ser suspensa. A discussão que resolve é apenas e tão somente a sobre “quem” deve ter o poder de faze-lo, até mesmo sem ter de dar satisfação a ninguém sobre o quando ou o porque se decidiu a isso.

O “Parágrafo Único” do Titulo I, “Dos Princípios Fundamentais” da constituição diz que “Todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta constituição”. Daí o texto deveria saltar para o Título II que deveria tratar de empoderar o eleitor para fazer valer o I, se essa constituição acreditasse em suas próprias palavras. Mas não. Ha cinco “jabutis” antes e mais pelo menos uma dúzia enfileirados depois desse “parágrafo único” para negar o que ele afirma e tutelar a vontade popular que deveria ser soberana. E do Titulo II em diante segue sempre assim.

Nem no STF, nem no Legislativo, nem mesmo nos debates mediados pela imprensa sobre a imunidade parlamentar, instituto que visa proteger o representado e não a pessoa do representante e nem muito menos um cargo, a palavra “eleitor”, esse tal de “povo” de quem todo poder deveria emanar, chega a ser mencionada. Os tres poderes não só estão livres para cassar representantes eleitos e inverter ao seu bel prazer até o que o eleitor afirma em plebiscitos (como o do desarmamento), eles são cobrados pelos cidadãos supostamente mais ilustrados do país a assumir o papel que deveria ser exclusivo deles de decidir quem continua e quem sai, e quando, do jogo da – é sempre bom lembrar o nome – “democracia representativa”. São os cidadãos mais ilustrados e mais genuinamente imbuidos de civismo que, reagindo uns aos outros intoxicados por ondas de indignação adrede semeadas, exigem, “em nome da democracia” … que se extinga a democracia, seja com juízes, seja com a articulação de cúmplices no crime, seja com soldados.

Em plena era da informação é difícil sustentar que essa inversão decorre apenas de falta de informação. Trata-se de um vício bem mais arraigado. A verdade é que o que irmana esquerda, direita e centro desde sempre no Brasil é a desconfiança que todos têm do povo.

Considere o estado brasileiro. Considere a Petrobras, a Caixa Econômica, o Banco do Brasil, o BNDES e as 150 “brases” coadjuvantes no nosso escândalo sem fim. Sai Império entra Republica, as gerações chegam e se vão, direita e esquerda sucedem-se no poder e as histórias são sempre as mesmas. Só muda o grau da desfaçatez que vai ficando tanto maior quanto mais óbvia se vai tornando a coisa. O Brasil e o mundo inteiro sabem que empresa e banco estatal só existem para serem roubados. O Brasil e o mundo inteiro sabem que desenvolvimento de verdade só ha onde essas excrescências que tratam de justificar-se em nome dele são proibidas. Se quisessem mesmo que o país deixasse de ser roubado o primeiro alvo de toda essa gente que anda de dedo em riste por aí estaria pra lá de definido. Mas quanto mais roubam o país por meio delas mais proibido se torna falar em livrarmo-nos das estatais.

Qual é o mistério?

Nenhum. Ao redor das empresas estatais e de quem vive especifica e confessadamente de rouba-las estão os empregos nas estatais e no serviço público que a alta classe média, “vocal” e politicamente organizada, reserva “aos seus”. Os donos do estado estendem a ela o regime de privilégios em que vivem de modo a estabelecer a cumplicidade que lhes permite entrar e sair de seus cofres à vontade para comprar e recomprar o poder de continuar eternamente a faze-lo. Como os empregos públicos, os das estatais também vêm com a garantia da estabilidade eterna, com muito mais salários do que ha meses no ano, cercados de “auxílios” isentos de impostos extensivos à toda a raça do agraciado já nascida e ainda por nascer, com aposentadorias precoces por valores muito maiores que os comprados pelas contribuições e dispensada da corrida maluca pela apresentação de resultados. São tão sólidas as garantias de “petrificação” eterna desses “direitos” instantaneamente extensíveis a toda a “privilegiatura” assim que “aquiridos” por qualquer membro individual dela que até os banqueiros, que jamais poderão ser acusados de inclinações altruísticas, concedem-lhes credito para consumo a juros descontados, constitucionalmente assegurados que estão de que o favelão nacional será sempre chamado a pagar a conta nas marés de inadimplência.

Quanto mais miserável esse sistema medieval de servidão faz a nação neste mundo de competição feroz, mais absolutamente o concurso publico, único canal de passagem da nau dos explorados para a nau dos exploradores afora as nomeações que são ainda mais explícitas, passa a ser um atestado de rendição. E isso cria um Brasil oficial sem pressa e moralmente entregue desde a partida, com tempo e dinheiro bastantes para tomar de assalto todos os canais de expressão política da nação, e um Brasil real mudo que aprende a amargas penas que nem correr muito fará qualquer diferença.

O preço disso é a guerra. 60 mil mortos por ano, por enquanto, e piorando por minuto.

Solução só tem uma. Entregar o poder a quem paga a conta. Instituições políticas são uma tecnologia como outra qualquer e a que foi batizada “democracia”, testada e aprovada, pode ser reproduzida sem pagamento de royalties. Poder absoluto para o eleitor interferir a qualquer momento em cada pequeno pedacinho do país, é o remédio sem o risco da intoxicação. E isso se faz tirando os porteiros da entrada e escancarando as portas de saída tanto da politica quanto do serviço público com eleições distritais que definem quem é representante de quem, retomada a qualquer hora de mandatos concedidos e empregos contratados sem entrega de resultados e poder de referendo das leis como garantia de uma reconstrução sadia.

Como se faz? Querendo. O Brasil só precisa decidir se quer mesmo democracia, ou seja, o povo no poder.

Paisagem brasileira


Matriz de Itanhaém (1937), Orlando Bifulco

Um país apático, rumo a lugar nenhum

Contava-se a seguinte anedota, nos anos 1980, sobre o período da Guerra Fria. Stálin e o alto comando do Politburo viajavam de trem pelo interior da União Soviética, admirados com a beleza da paisagem e extasiados com os avanços tecnológicos propiciados pelo regime comunista, quando de repente sentem um tranco, que assusta todos os passageiros. Stálin, imediatamente, manda que alguém vá verificar o que houve. Momentos depois, o subalterno regressa e relata que acabaram os trilhos da estrada de ferro. Stálin não se dá por vencido: manda que todos continuem balançando o corpo, como se o trem continuasse em movimento.

A impressão que tenho a respeito do Brasil contemporâneo é exatamente essa: a de que acabaram os trilhos e continuamos nos balançando apenas para ter a sensação de que o trem se mantém em movimento. Mas todos, talvez com exceção dos seis bilionários que detêm sozinhos a riqueza equivalente a 100 milhões de brasileiros, sabemos que o país está parado e que não há perspectiva alguma de que volte a andar tão cedo. E nós, os passageiros, observamos, apáticos, a paisagem que não muda – embora haja também aqueles, os mais cínicos, que, entusiasmados, exaltam a beleza da paisagem que não muda.


Há quase um ano e meio somos governados por um homem que conspirou e liderou um golpe contra sua parceira de chapa – o que por si só já demonstra seu caráter – e que desde então acumula denúncias, homologadas pelo Supremo Tribunal Federal (STF), de envolvimento com corrupção passiva, obstrução da justiça e organização criminosa. No entanto, por meio de negociações escusas com um Congresso desmoralizado – 24 senadores e 57 deputados federais estão sob investigação da Operação Lava-Jato, incluindo os presidentes do Senado, Eunício Oliveira, e da Câmara, Rodrigo Maia –, Michel Temer permanece no cargo, ostentando seu sorriso macabro e sua postura de estadista dos grotões.

Enquanto isso, afundamos na estagnação econômica. As estimativas mais otimistas apontam para um crescimento do PIB (Produto Interno Bruto) de 0,7% para este ano, um índice baixíssimo para fazer frente ao desastroso desempenho dos últimos três anos: 0,1% em 2014, -3,8% em 2015 e -3,6% em 2016. Segundo o IBGE, em agosto existiam 26,3 milhões de brasileiros desempregados ou subocupados, estatística que pode ser aferida pelo aumento significativo de famílias inteiras morando nas ruas. O Brasil, que tinha em 2014 deixado o Mapa da Fome – acima de 5% da população ingerindo menos calorias que o recomendado – pode voltar e ele este ano.

Se os índices econômicos são péssimos, os sociais são ainda piores. O Brasil figura entre os 10 países mais desiguais do mundo – 5% dos ricos detêm renda igual a 95% da população, segundo estudo da ONG britânica Oxfam. Além disso, enquanto os pobres gastam em impostos 32% de tudo o que recebem, os ricos despendem apenas 21%. A taxa de analfabetismo chega a 8% do total da população, enquanto o analfabetismo funcional chega a 17,1%, segundo dados do IBGE – ou seja, um em cada quatro brasileiros não sabe ler e escrever ou não compreende textos simples. Na faixa entre 15 e 17 anos, 22% dos jovens estão fora da escola, número que permanece mais ou menos o mesmo desde 2000. Enquanto isso, segundo o Atlas da Violência 2017, em 2015 foram assassinadas 59 mil pessoas, o que equivale a 28,9 mortes por 100 mil habitantes, e outras 47 mil pessoas perdem a vida no trânsito todo ano, conforme dados da Organização Mundial da Saúde (OMS).

Esses problemas estruturais só podem ser resolvidos por meio da política. Mas quem são os candidatos que se propõem a resolvê-los? Luiz Inácio Lula da Silva, duas vezes presidente da República, condenado a nove anos de prisão por corrupção passiva e lavagem de dinheiro; a omissa Marina Silva, duas vezes candidata derrotada, em 2010 e 2014; o insípido e inodoro Geraldo Alckmin, candidato derrotado em 2006; o arrogante Ciro Gomes, candidato derrotado duas vezes, em 1998 e 2002; e as “novidades”, o fascista Jair Bolsonaro e o arrivista João Dória. O PMDB, maior partido brasileiro, deve, mais uma vez, esquivar-se de lançar candidato próprio – assim fica mais fácil montar seu eterno balcão de negociatas.

Apáticos, permanecemos parados, rumando para lugar nenhum.

CCJ a Câmara digere o 'combo da impunidade'

Por 39 votos a 26, a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara aprovou o parecer que recomenda o arquivamento da segunda denúncia da Procuradoria contra Michel Temer. A novidade em relação à votação anterior é a criação de uma espécie de ‘combo da impunidade’. Desta vez, o Planalto comprou o enterro das acusações contra o presidente e levou para a cova também as imputações dirigidas aos ministros palacianos Moreira Franco e Eliseu Padilha.

O mais surpreendente até aqui foi a ausência de surpresa. Os membros da mais importante comissão da Câmara lidaram com a tríplice denúncia como se manuseassem um bilhete de cinema que vem junto com a pipoca e o refrigerante. E tudo transcorreu sob atmosfera de doce, persuasiva, admirável naturalidade. A maioria dos deputados suprimiu dos seus hábitos o ponto de exclamação.


Líder de Michel Temer na Câmara, o deputado Aguinaldo Ribeiro (PP-PB) fez um chamamento à cumplicidade. Ex-ministro de Dilma Rousseff, investigado na Lava Jato, ele recordou aos colegas que a política vive a Era das culpas compartilhadas: “Estamos vivendo um momento das narrativas e narrativas. Tudo se transforma em motivo de execração pública às figuras públicas.”

Aguinaldo Ribeiro foi ao ponto: “E aqui me refiro a todos, não estou me referindo só ao presidente Michel Temer, que, assim como cada um aqui, tem a sua honra e tem o direito de exercer a sua defesa de forma plena. Mas o que está acontecendo nesse país é que, lamentavelmente, primeiro se condena e se execra. Depois, investiga-se, para saber se isso ou aquilo é verdade ou não.”

O discurso do preposto de Temer não faz nexo. Se o problema fosse a execração de pessoas honradas, o Planalto pediria à Câmara não para enterrar as denúncias, mas para autorizar o Supremo a se debruçar sobre elas. Se as peças da Procuradoria contêm acusações infundadas contra homens públicos inatacáveis, os ministros da Suprema Corte dariam um atestado de idoneidade aos acusados, arquivando as ''denúncias ineptas.''

O relatório aprovado pela Comissão de Justiça segue para o plenário. Será votado na semana que vem. Estima-se que o governo colecionará menos votos do que amealhou no velório da primeira denúncia. Mas não há, por ora, quem aposte numa surpresa. Convidados a engolir o ‘combo da impunidade’, os governistas não farão a concessão de uma surpresa. É Temer? Pois que seja Temer, com Moreira, Padilha e refrigerante!

O complô

Temer é vítima de um complô, Aécio, de armação, e Lula, de perseguição. Se os três estão certos, seria preciso imaginar que diferentes braços do Ministério Público, a Polícia Federal e a imprensa foram todos contaminados por uma espécie de vírus do niilismo e abraçaram o temerário projeto de destruir as instituições republicanas, abatendo as lideranças dos principais partidos políticos do país.

É possível? Bem, tudo o que não é proibido pelas leis da física é possível — e isso inclui viagens no tempo e discos voadores alienígenas visitando a Terra. Parece-me mais verossímil, porém, acreditar que os três políticos, bem como várias centenas de outros, se meteram em relações absolutamente promíscuas com empresários que já confessaram atos de corrupção na casa dos vários bilhões de reais. Em muitos casos, exibiram provas físicas das propinas.


É possível que nossos três líderes sejam mesmo santos em meio a um oceano de pecadores e que os delatores estejam mentindo quando incluem seus nomes no rol de autoridades compradas. Ademais, para que sofram uma condenação penal, é necessário que o Estado demonstre seu envolvimento para além da dúvida razoável na opinião de um tribunal colegiado. Não precisamos, porém, estabelecer o mesmo nível de exigência para os efeitos políticos.

Ao contrário, boa parte da crise que vivemos pode ser atribuída ao fato de que foros políticos passaram a operar com balizas do Judiciário. Eu me explico. Num país mais “normal”, o presidente que se vê envolvido num escândalo como o que enredou Michel Temer renuncia, seja ele culpado ou inocente. Um senador flagrado numa fita tão comprometedora como a de Aécio é rapidamente cassado pelo Conselho de Ética da Casa. Já Lula, este, por não contar mais com foro privilegiado, ao menos tem o mérito das acusações que pesam contra si avaliado pela Justiça, o que não ocorre com os outros dois.

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Há sempre o inesperado

Eu o assisti no cinema Icaraí, aqui em Niterói, numa época em que pensava ser cineasta e quando ir ao cinema era um ritual civilizatório. Nos anos 60, abundavam os filmes (russos, franceses, italianos e alemães) que “enchiam as medidas” – nossas almas e corações – como dizia o meu saudoso e calado pai.

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A Ponte do Rio Kwai conta uma história manifestamente simples e tão paradoxal quanto a ponte (o símbolo latente) que o intitula. Nas selvas da Birmânia, durante a 2.ª Guerra, um coronel inglês imbuído de militarismo patriótico e seu batalhão são aprisionados pelos japoneses. Sua entrada no campo de derrotados, logo na abertura do filme, não sugere aprisionados, pois que, inesperada e orgulhosamente, eles estão estropiados, mas orgulhosamente assoviam a famosa marcha do coronel Bogey. Música que valeria um comentário.

Tenaz, o coronel somente aceita construir a ponte para os seus algozes, nas condições que corajosamente estipula para o comandante japonês. A primeira ponte do filme, portanto, é a do elo entre o militarismo dos coronéis. A segunda, lida com a fuga de americano antimilitarista inesperadamente compelido, no entanto, a voltar com uma guerrilha inglesa para destruir a ponte que daria vantagem estratégica ao inimigo. A terceira é a descoberta que a ponte havia sido construída por ingleses. A quarta é testemunhar como o orgulho da sua construção engloba o patriotismo do heroico coronel inglês, fazendo com que ele tente impedir (agindo como um traidor) a sua destruirão. A quinta ponte é a ironia de testemunhar como uma ação intencional, o extremado e pouco discutido patriotismo parido pela guerra, transforma-se num conflito entre os próprios ingleses. Como diz pelo menos duas vezes no filme um elegante e profético major inglês: “There is always the unexpected (Há sempre o inesperado...)”.

Esse filme elabora esses inesperados que ligam rotinas e intencionalidades às suas imprevisíveis consequências. Nele, o patriotismo é suplantado pelo orgulho pessoal; aprisionados aprisionam seus verdugos; a fidelidade ao líder transforma ultraje em heroísmo; e a guerra entre nações ditas civilizadas é revelada como uma arrematada loucura. Eis um “filme de guerra” que, paradoxalmente, milita contra a guerra.

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Quem não nasceu de novo por causa de um inesperado? 

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Iniciei-me no exílio antropológico quando – de agosto a novembro de 1961 – fiz trabalho de campo entre os índios gaviões no sul do Pará. Mas como os exilados também se comunicam, solicitei a uma respeitável figura do último reduto urbano que visitamos, uma cidadezinha na margem esquerda do rio Tocantins, que cuidasse da correspondência que Júlio Cezar Melatti, meu companheiro de aventura, e eu, iríamos receber. Naquele mundo sem internet, telefonemas eram impossíveis e cartas ou pacotes demoravam semanas para ir e vir.

Recebemos uma rala correspondência na aldeia do Cocal. Mas quando chegamos à nossa base, no final da pesquisa, descobrimos que nossa correspondência havia sido violada.

Por quê? Ora, por engano, respondeu o responsável, arrolando em seguida o inesperado e a ironia que até hoje permeia a atividade de pesquisa no Brasil. Foi quando soubemos que quem havia se comprometido a cuidar de nossas cartas não acreditava que estávamos “estudando índios”. Na sua mente, éramos bons demais para perdermos tempo com uma atividade tão inútil quanto estúpida. Éramos estrangeiros disfarçados – muito provavelmente americanos – atrás de urânio e outros metais preciosos. Essa plausível hipótese levou o nosso intermediário ao imperativo de “conferir” a correspondência.

Mas agora que os nossos rostos escalavrados pelo ordálio do trabalho de campo provava como estava errado, ele, pela primeira vez em sua vida, acreditou ter testemunhado dois cientistas em ação!

Há sempre o inesperado.

Maldade de cada dia

A sociedade é produzida pelas nossas necessidades, e o governo pela nossa maldade
Thomas Paine, "Senso comum"

A fraqueza do governo é a força de Temer

O governo Temer está tão fraco que, de tempos em tempos, setores se organizam para pressioná-lo a tomar medidas de seu interesse, dando vitória sempre a iniciativas mais conservadoras.

O último exemplo ainda está fresquinho na memória de todos: a portaria publicada na segunda-feira que muda o conceito de trabalho escravo e torna mais difícil a divulgação das chamadas "listas sujas" de empresas e pessoas físicas que praticam trabalho análogo à escravidão.

Depois de quase 14 anos de governos petistas, a legislação brasileira em diversas áreas foi mudando para ganhar os contornos dos governos mais à esquerda que venceram as últimas eleições – os dois mandatos e Lula e depois Dilma, que acabou afastada sem concluir o segundo.



A base parlamentar do governo Temer é muito semelhante à dos governos petistas – é engordada com os partidos conservadores do "Centrão", como PP, PR, PRB, PTB, por exemplo.

O que mudou radicalmente foi o comando. Antes era do PT, parceiro do PC do B, associado aos movimentos sociais. Agora, é o PMDB mais conservador e claramente liberal do ponto de vista econômico – basta ver que o norte econômico do governo está no documento "Uma ponte para o futuro", elaborado pela Fundação Ulysses Guimarães, sob Moreira Franco, um dos políticos mais próximos a Temer. E a agenda do governo tem sido cumprida, sobretudo nos capítulos relativo às privatizações.

Poucas semanas atrás, o governo baixou decreto e depois recuou extinguindo a Renca, a Reserva Nacional de Cobre na Amazônia, o que gerou grande polêmica.

Foi também uma decisão fruto de pressão de setores que apoiam o governo. Mas o governo não teve como mantê-la e desistiu de acabar com a reserva, prometendo retomar estudos e discussões sobre o assunto.

A propósito, uma das características do governo é surpreender com medidas duras sem qualquer discussão a respeito do assunto.

É por isso que o presidente mais impopular dos últimos tempos se mantém no poder e enfrenta agora sua segunda denúncia, desta vez por obstrução de justiça e organização criminosa, e ainda tem chances de sobreviver.

Enquanto ele estiver no Palácio do Planalto, fraco e sem condições de reagir às demandas que lhes são postas, melhor para parcela de sua base e de setores da sociedade que conhecem a linguagem dos parlamentares.

É de se esperar mais surpresas no "Diário Oficial" de cada dia. Enquanto houver Temer no Planalto, haverá cobranças e atendimento dessas demandas.

Nem direita nem esquerda, mas...

Todo mundo com quem falo não tem a menor ideia em quem votar no ano que vem. Esquerda? Direita? Houve um tempo em que as palavras direita e esquerda significavam de fato alguma coisa. Seja você contra ou a favor, sabe que Che Guevara era de esquerda. O general Emílio Garrastazu Médici, de direita. Pertencer a um ou a outro lado implicava uma série de atitudes, posturas perante o mundo e crenças de como governá-lo. A esquerda mais extrema era a favor da socialização dos bens, da revolução agrária. A mais branda, de medidas de distribuição de renda, por exemplo. A direita acreditava que o consumo regula o mercado. Mesmo a seita mais tradicional jamais será tão rígida a respeito do comportamento humano quanto uma autêntica pessoa de esquerda ou de direita. Por incrível que pareça, as duas se uniram sempre na fúria contra a sexualidade alheia. Eu até hoje não entendo por que tanta raiva de como as pessoas agem ou deixam de agir na cama. Já que o assunto é entre quatro paredes ou, eventualmente, atrás das árvores de um jardim. Mas o fato é que governos comunistas, como o de Cuba após a revolução, criaram até campos de concentração para o povo LGBT. Na crença de que o trabalho duro mudaria a orientação sexual. Mudou. No caso dos gays, a orientação dos guardinhas que tratavam da segurança dos campos. Longe da família e das mulheres, eles buscaram novas perspectivas... Da mesma forma, regimes totalitários como o nazismo, na Alemanha, perseguiram homossexuais. Eram obrigados a usar uma estrela rosa. E iam para campos de concentração. Todo regime, esquerda ou direita, quando cai no radicalismo, sente-se tentado a intervir na vida pessoal.

Mas no Brasil a palavra esquerda perdeu todo o sentido quando o PT se rendeu à “governabilidade”. As alianças mais absurdas foram criadas. Políticos notadamente de extrema-direita aliaram-se a outros da esquerda. Alianças móveis que dependiam da votação de projetos, cargos e, segundo tantas delações, muita grana. A política de alianças já existia havia muito tempo. Partidos de esquerda muitas vezes se ligaram a políticos de direita, na esperança de um vislumbre de poder. Mas nunca antes neste país isso se tornou o pilar da governabilidade como foi no PT. Políticos de todos os matizes se ligaram. Com uma digna exceção: o PSOL. Gostem ou não, manteve sua integridade. A ponto de o deputado Jean Wyllys cuspir em Bolsonaro quando este elogiou um torturador no impeachment de Dilma.

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Os partidos não têm projetos claros. Não sabemos se de fato são de esquerda, direita ou centro. Em minha opinião, a maioria segue o modelo do eu sozinho. O político faz tudo para se eleger. Acaricia com promessas. Eleito, não pensa mais nisso. Pensa, sim, no que é melhor para ele. Um cargo para o amigo? Uma obra feita por uma grande empreiteira etc.? Fato: o eleitor foi só um meio de chegar até lá. Chegou, vamos tratar da vida, botar uma grana lá fora. Nem esquerda nem direita gostam de fazer esgoto. Por quê? Não se veem os canos. Que propaganda pode-se fazer de uma obra subterrânea? Agora, gritar contra exposições, pretensamente defender a infância, censurar o sexo alheio. Isso, sim, dá votos.

Só que ninguém fala numa coisa. Enquanto os políticos fazem alianças, jogando aos ares os projetos de gestão do país, outra força toma conta. Vamos encarar a realidade. Em quantas áreas do país a polícia não consegue entrar? Na Rocinha, no Rio de Janeiro, até com intervenção militar, continua o tiroteio. Quero ver a polícia se impor, quem sabe, em Paraisópolis, em São Paulo. Há campos de plantação de maconha mais ao Nordeste, segundo soube. Áreas imensas que na prática não pertencem ao Estado brasileiro. Seus habitantes obedecem a outras leis, rígidas. Pagam outros impostos na forma de preços maiores para o gás, por exemplo. Mas têm a proteção que o Estado não dá. Alguém se portou errado? Tiro. Alguém agrediu quem não devia? Morte. Há uma lei a ser seguida.

Áreas inteiras do país, até em lugares nobres, pertencem a organizações como o PCC, Comando Vermelho. E todo mundo diz:

– É bandido.

Não é não. Seria impossível que eles se estabelecessem com tal segurança sem o apoio de políticos. Inclusive porque há, sim, os que são eleitos com o dinheiro do tráfico. Olhe para a frente. Que futuro se desenha para o país? Quando partes, mesmo pequenas daqui, não são dominadas pelo Estado, o que vem pela frente? Juro. Prefiro nem pensar.

Walcyr Carrasco