quarta-feira, 15 de maio de 2024

Pensamento do Dia

 


Rousseau e o clima

Jean-Jacques Rousseau errou em quase tudo, mas, no que diz respeito a desastres naturais, suas reflexões são certeiras. Para ele, os efeitos de um cataclismo dependem não só do evento geológico ou climático que os precipita mas também da forma como humanos ocupam o solo e se comportam.

Como observou o bom Jean-Jacques na "Carta sobre a Providência", escrita após o grande terremoto de Lisboa, de 1755, não foi a natureza que, numa área exígua, "reuniu 20 mil casas de seis ou sete andares". E arrematou: "quantos infelizes pereceram neste desastre, porque quiseram pegar, um suas roupas, outro, sua papelada, outro, seu dinheiro?". Hoje as ideias de Rousseau parecem óbvias, mas não o eram no século 18. Ali, a reação das pessoas era a de acorrer às igrejas e caprichar nas rezas e penitências.


Precisaremos cada vez mais dar ouvidos ao genebrino, porque o que há de mais certo sobre a mudança climática é que ela aumentará a frequência de eventos extremos. As "enchentes do século" ocorrerão ao passo de décadas; habitar áreas de encosta, que sempre foi algo arriscado, se tornará extremamente perigoso. Como boa parte do aquecimento futuro já está contratada, muito dos nossos esforços terá de ir para a adaptação, tanto a prevenção como a gestão de catástrofes. E essas são áreas em que o Brasil vai tradicionalmente mal.

Nosso sistema político favorece o curto-prazismo (é só ver a situação do saneamento básico) e atomiza a aplicação de recursos, o que dificulta investimentos em redes de maior abrangência, como uma defesa civil integrada.

É interessante observar que Rousseau escreveu sua "Carta..." para livrar a cara de Deus de uma acusação feita por Voltaire: como poderia uma entidade benevolente e onipotente permitir tal tragédia? O genebrino não resolveu o problema da justiça divina, mas apontou para uma área de atuação em que os homens não podem fugir a suas responsabilidades.

Prevenção zero


Todo mundo fala: 'Não poderíamos ter previsto'". Isso é categoricamente falso. Sempre há pilhas e pilhas de relatórios onde isso foi analisado. Sabemos das vulnerabilidades, mas optamos por não nos preparar.
Jeffrey Schlegelmilch, diretor do Centro Nacional de Preparação para Desastres da Universidade Columbia, em Nova York, sobre o Katlina

Roleta russa com a natureza

Em 1986, em “O relojoeiro cego”, Richard Dawkins mostrou que o darwinismo não é obra do acaso. Os seres vivos não surgem da soma de casualidades favoráveis, mas de um jogo (evolutivo) muito complexo, mas com regras bem definidas. A natureza, assim, não é o acúmulo de eventos aleatórios, e sim o contrário. A natureza não joga dados.

A ministra Marina Silva, em entrevista à Globo News no dia 3, ao falar da tragédia do Rio Grande Sul (RS), ilustrou a tese de Dawkins. Ela disse mais ou menos o seguinte: a humanidade levou séculos a transformar a natureza em dinheiro. Agora precisa gastar mais dinheiro para ajudar a natureza a superar obstáculos.

Desde junho de 2022, com o banal assassinato de Dom Phillips, jornalista britânico, e do indigenista Bruno Pereira, comecei a pensar no valor da vida. O assunto voltou ao radar em agosto passado, com o assassinato da dona Bernadete Pacífico, líder quilombola, e, agora, com a catástrofe do RS. Não parece, mas a banalização da vida, como numa roleta russa, é um dos gatilhos de eventos climáticos extremos. E a roleta russa contra a natureza é uma aposta perdedora.


O valor da vida foi tema do doutorado de Richard Thaler, Nobel da Economia em 2017. Antes dele, Thomas Schelling, Nobel da Economia em 2005, num célebre e provocador artigo de 1968 (“The life you save may be your own”), enfatizou que o empenho em salvar vidas é fortemente influenciado por duas características comportamentais: da “vida identificada” - como a de um filho baleado em assalto - e da “vida estatística” - como as milhares de mortes no trânsito.

Os jornais têm dado merecido destaque à tragédia das enchentes no RS. Mas por que o desastre assumiu tamanha proporção? A resposta mais contundente está na própria fala da ministra Marina, já sublinhada no início deste artigo. Mas isso ainda não explica por que jogamos dados com a natureza.

Veja o caso de uma atividade de risco não desprezível. Suponha ser de 5 em 1.000 (0,5%) a probabilidade de um acidente fatal para alguém que, a serpentear no trânsito numa pequena moto, faz entregas em São Paulo. Quanto vale a vida dessa pessoa? Uma conclusão é imediata: essas pessoas se arriscam uma barbaridade e se dispõem a ganhar muito pouco.

Coisa semelhante ocorre com as famílias que vivem no Vale do Taquari, no RS, onde também viveram seus pais e avós. E às vezes pagam muito para permanecer nesse ambiente de risco. Numa espécie de autoengano, pensam que estão seguras.

A explicação é muito mais psicológica que econômica ou mesmo filosófica. Na falta de opção, o entregador sente como perda os R$ 20/hora que deixa de receber se não executar o trabalho. E a aversão a perdas é maior que a aversão ao risco, o que o torna mais propenso a enfrentar situações perigosas.

Isso também pode ser explicado pelo efeito dotação - quando é valorizado em excesso o que se imagina ser um bem. Para muitos, viver no Vale do Taquari, a origem de seus antepassados, é um bem valioso. Abrir mão desse “bem” tem um razoável custo, que, veja só, também vai na direção de desvalorizar a vida.

Aqui entraria a política pública, para minimizar os efeitos dessa propensão ao risco. Admita ser também de 0,5% a probabilidade de roubos com mortes em residências no bairro da Tristeza, região de classe média alta na orla do Guaíba. Mesmo com baixa possibilidade de latrocínio, muitos buscam proteção para suas casas e famílias. Instalam sofisticadas fechaduras e outras barreiras. A família é uma vida identificada.

Admita que é novamente 0,5% a possibilidade de, a cada 80 anos, ser superada a cheia do Guaíba de 1941. Como se comportaria o responsável pelos diques e bombas d’água? Nesse cenário, as autoridades percebem os eventuais danos, mesmo que fatais, apenas como estatísticas, isto é, como vidas estatísticas (como a dos entregadores nas ruas das grandes cidades).

O mais grave ocorre quando a autoridade despreza os alertas da ciência, incentiva o relaxamento da legislação e fecha os olhos para diferentes crimes ambientais. São decisões que, não tenha dúvida, tornam a vida mais vulnerável a eventos climáticos severos, como o de agora no RS. A autoridade, então, põe mais balas na arma com que faz roleta russa com a natureza.

As mudanças climáticas são, por tudo isso, consequências de uma arquitetura de escolhas, sobretudo políticas, nem um pouco racionais. E isso tem transformado tais escolhas numa típica tragédia dos comuns, quando decisões individuais prejudicam o bem-estar da coletividade. O caso concreto são as décadas sem investimentos, manutenção e atualização do sistema de controle de cheias de Porto Alegre.

Corre-se agora para gastar bilhões de reais em medidas de contenção dos danos das escolhas estúpidas. Ok. Mas são negligenciadas as ações para evitar a estupidez. Foi iniciada a maratona para construir infraestruturas que minimizam os efeitos das enchentes, mas não para evitar os recordes de chuva nos vales do Taquari e do Itajaí, Região Serrana do Rio, Litoral Norte de São Paulo ou na Grande Recife.

A notícia relevante não deveria ser a disposição dos governos em gastar bilhões para conter os efeitos dos danos já provocados, que até soará como propaganda eleitoral, mas sim o que não fizeram para evitar a causa dos danos.

A humanidade jogou dados com a natureza. E perdeu. Apostou contra a natureza, quando jogava contra si própria. A humanidade pôs mais balas no revólver da insensatez, quando deveria retirá-las. Agora, ficou muito mais caro retirar uma bala, depois outra e outra. E esse custo é medido pela sucessão de eventos como em 2023, com recordes de calor, e, em 2024, com inéditos 250 mm de chuva em Dubai num só dia, 300 mm em Nairóbi em sete dias e mais de 500 mm no Vale do Taquari em quatro dias, o gatilho para a tragédia gaúcha.

E o revólver da insensatez segue carregado.

O amor tem que vir antes da economia e da democracia

Às vezes, as pessoas mais simples, sem excessivas pretensões científicas, são as que oferecem as verdades mais profundas. Foi o que acabou de acontecer com Satish Kumar, um antigo monge da Índia que, aos 85 anos, continua a viajar pelo mundo lembrando que nos tornámos “meros recursos humanos”. Ele apenas explicou isso em uma longa entrevista ao jornal brasileiro O Globo .

Abordando a questão atual das doenças mentais que afligem toda a humanidade, sem que a ciência seja capaz de fornecer uma explicação convincente, Kumar apresentou o seu diagnóstico. Segundo ele, não são as ansiedades da era digital, da inteligência artificial, da crise da democracia, que estão fazendo com que a dor da alma, da insatisfação universal, cresça como uma epidemia. E as receitas crescem, levando inexoravelmente às farmácias e aos seus lucros.

A filosofia do guru espiritual é mais simples. Segundo ele, a causa da ansiedade universal que nos aflige se deve ao fato de que o crescimento e o desejo pelo puramente econômico não são capazes de preencher o nosso vazio espiritual. “Não importa quanto você tenha e ganhe, nunca será suficiente, você nunca será totalmente feliz”, afirma. E pede mais. E isso até o infinito. Serão realmente os mais felizes, os menos angustiados, os mais serenos, os que menos adoecem, os que têm menos medo da morte, os que acumulam mais poder e riqueza?


O amor viria antes da democracia. “Por si só, não é sequer garantia de um bom governo”, algo que hoje vivemos com mais força do que nunca, pois se há algo no mundo da política atual é que até a democracia, que era uma espécie de religião que garantiu as liberdades individuais e sociais, está mais em crise do que nunca.

Em sua filosofia, o idoso guru que continua viajando pelo mundo espalhando sua utopia de que o amor precede qualquer possibilidade de felicidade profunda e duradoura também insiste que uma vida psíquica e feliz, por mais tecnológica e avançada que seja, é impossível sem contato físico com a natureza, junto às árvores e seus frutos, perto das flores de um jardim ou dos olhos de uma borboleta. Para ele, é incompreensível que no Brasil, um dos países com maior superfície natural virgem, continuem a existir cidades gigantescas como São Paulo ou Rio de Janeiro, com milhões de pessoas aglomeradas nas quais as crianças nunca viram um pássaro voar ou que nunca subiram em uma árvore.

A aparente simplicidade da filosofia da felicidade de Kumar, segundo a qual a solidariedade, a amizade, o amor à natureza, a compreensão da dor dos outros vêm antes da ideologia e da política, coincide neste momento com um tema que envolve o Brasil nesse mesmo mistério.

Desta vez não foi um simples e místico monge, mas o intelectual, presidente da Academia Brasileira de Letras e colunista do jornal O Globo, Merval Pereira, que em sua coluna intitulada Solidariedade aborda do ponto de vista político a força que é ter esse valor e a quebra de preconceitos políticos diante da tragédia humana das enchentes na região Sul do Brasil . Numa das regiões mais ricas do país e ao mesmo tempo mais direitista, como escreve Merval: “A dura tragédia que está a custar tantas vidas e a evacuar cidades inteiras serviu para redescobrir a importância da solidariedade”.

É naquela região onde o país está fortemente dividido entre os seguidores do progressista Lula e do ultradireitista Bolsonaro. E está a ser uma descoberta ao mesmo tempo da tragédia humana e da solidariedade que a acompanha, que leva as pessoas a sacrificarem as suas vidas para salvar outras, onde se torna tangível, como sublinha o colunista, que voltamos a ter um país que une em torno de uma causa independentemente de os voluntários que expõem suas vidas serem lulistas ou bolsonaristas. Assim como os militares que, divididos, estiveram a ponto de cair na tentação oferecida por Bolsonaro de dar um golpe de Estado, hoje estão unidos, sem rótulos políticos, na dura e arriscada ajuda para salvar vidas, sem pedir em quem votaram nas urnas.

Será ou não o amor, a solidariedade, a amizade, o respeito à natureza, uma vida simples, sem ansiedade em acumular riquezas e sem exigir rótulos políticos, não apenas a melhor receita para a felicidade, mas até mesmo o melhor remédio contra as dores da alma?