quarta-feira, 2 de novembro de 2022

Pensamento do Dia

 


'Pombo' quer confusão


Lidar com determinadas pessoas é que nem jogar xadrez com pombo. O pombo vai voar, derrubar as peças, defecar no tabuleiro, só quer saber de confusão
Gilmar Mendes, ministro do Supremo Tribunal Federal

Bolsonaro perdeu o primeiro, o segundo, e agora o terceiro turno

É só para quem pode, não é para quem quer. Bolsonaro perdeu o primeiro turno, perdeu o segundo e agora perdeu o terceiro. Não foi escolha dele perder o primeiro e o segundo – a culpa é do povo, que preferiu eleger Lula. Mas foi sua escolha perder o terceiro.

“Acabou”, ele admitiu em conversa com oito ministros do Supremo Tribunal Federal. Bolsonaro os convidara para assistir ao seu pronunciamento no Palácio da Alvorada, o primeiro depois da derrota. Os ministros recusaram o convite. Foram sábios.


Foi a fala oficial mais curta do presidente que estava em silêncio há 45 horas. E Bolsonaro só a fez porque seu isolamento era crescente. No último domingo, ao não cumprimentar Lula pela vitória, Bolsonaro deu a senha para que fosse abandonado, e foi.

Os presidentes do Senado e da Câmara dos Deputados foram os primeiros a largá-lo de mão. Governadores eleitos, mesmo aliados dele, fingiram que nada aconteceu e tocaram suas vidas. Os chefes de partidos políticos já estavam em outra. Bolsonaro indignou-se.

Fora traído, berrou em mais de uma ocasião. Deixou de atender telefonemas. Mandou apagar mais cedo as luzes do Alvorada, e foi lamber suas feridas. Faltou ao trabalho na segunda-feira, mas até aí nada demais: ele não gosta de trabalhar. E, por canais ocultos…

Por eles, direta ou indiretamente, estimulou sua tropa de choque a ir para as ruas, bloquear estradas e tocar fogo em pneus. O país assistiu a cenas impagáveis. Talvez a mais impagável: bolsonaristas amotinados em Porto Alegre celebrando a anulação das eleições.

Os ministros do Supremo não acharam a menor graça no que viram: em menos de duas horas, formou-se, ali, maioria para avalizar a decisão de Alexandre de Moraes que ordenara à polícia o desbloqueio das estradas e a dispersão dos manifestantes.

Em seguida, passaram a pressionar Bolsonaro para que dissesse que respeitaria a Constituição. Ele disse, mas de má vontade. Não reconheceu a derrota, porém. E como não reconheceu, seus devotos sentem-se autorizados a continuar nas ruas.

Anderson Torres, da Justiça, foi o único ministro a aliar-se incondicionalmente a Bolsonaro: faz corpo mole, simula obedecer à decisão do Supremo, mas evita o uso da força para desbloquear as estradas. Esse idiota e mau servidor aposta no quê? No golpe?

Contra o golpe bolsonarista, basta convocar a Gaviões da Fiel e a Galoucura do Atlético Mineiro. As duas torcidas puseram a correr bolsonaristas que promoviam arruaças em São Paulo e na estrada que liga São Paulo a Minas. Futebol é coisa séria. Golpe, não é.

O dia da derrota de Bolsonaro no terceiro turno terminou com um carão à moda da toga. A convite dos ministros, ele foi ao prédio do Supremo reunir-se com eles. Por pouco, não lhe esfregaram na cara um exemplar da Constituição. Presentearam-no com um.

A maior vocação autocrata que o país conheceu desde o fim da ditadura vai embora tarde. E à saída, como os pombos, emporcalha tudo o que deixa para trás. O que não faria se fosse reeleito? Como disse Francisco, o Papa é argentino, mas Deus é brasileiro.

A "canarinha" virou arma política

A camisola nacional de futebol brasileira é uma daquelas camisas icónicas e imediatamente reconhecíveis em todo o mundo. Uma que ao longo da história do futebol tem inspirado tanto medo como admiração.

Poderia provavelmente perguntar a qualquer pessoa, em qualquer parte do mundo, fã de futebol ou não, de que país é essa camisola - e a maioria não pensaria duas vezes.

Usada por jogadores como Pelé (ou o rei como ele é referido no seu país), Garrincha, Sócrates, Zico, Ronaldo, Ronaldinho, entre tantos outros. O poder da camisa de futebol do Brasil é inegável. A nível mundial.

Um símbolo de orgulho num país dividido por profundas desigualdades sociais, um uniforme que em tempos representou um vasto país de 200 milhões de pessoas, uma nação obcecada com o desporto. Sim, os brasileiros também se destacam em coisas como o voleibol e o judo nos Jogos Olímpicos, e tiveram Ayrton Senna como lenda da Fórmula 1, mas é o futebol que os une verdadeiramente, dos mais pobres aos mais ricos.

Tradicionalmente durante os campeonatos mundiais, quando o Brasil joga, o país chega normalmente a um impasse quase completo. Quando eles organizaram a copa em 2014, os feriados nacionais foram declarados sempre que o país estava em campo.

E o Brasil continua a ser a única equipa do planeta a ter ganho CINCO copas do mundo, apesar de ter perdido as últimas.

Mas recentemente, essa mesma venerada camisola de futebol entrou na arena política de formas nunca antes vistas.

O Presidente Jair Bolsonaro conseguiu associar a sua própria personalidade política e a sua candidatura a um segundo mandato à amada camisola de uma forma muito eficaz.

Em comícios e manifestações políticas, os seus seguidores embrulham-se em bandeiras brasileiras e a maioria deles usam a majestosa camisa de futebol.

O próprio líder brasileiro veste a roupa com frequência, em eventos oficiais e não oficiais. Um dos seus maiores apoiantes, um homem de negócios de nome Luciano Hang, dono de uma enorme cadeia de lojas de departamento, veste publicamente um fato verde e amarelo completo quando está na presença de Bolsonaro.


Assim, Jair Bolsonaro e os seus associados ligaram nos últimos anos o Bolsonarismo aos símbolos nacionais do Brasil, tornando quase impossível para as pessoas distinguir agora o emblemático uniforme de futebol, com todo o seu simbolismo, da última campanha política do líder.

Nas ruas do Brasil de hoje, vestir o canarinho - um apelido histórico e afectuoso dado pelos brasileiros à sua própria camisola de futebol - tornou-se um acto político.

Basta ver algumas das imagens do último Dia da Independência, que em 2022 marcou 200 anos desde o fim da monarquia portuguesa no país, e verá como se tornou problemático para os não seguidores do Presidente Bolsonaro vestir o artigo.

Durante as comemorações de Setembro passado, o Presidente Bolsonaro foi acusado pelos seus críticos de realizar comícios políticos ao lado das suas funções oficiais em cerimónias realizadas tanto na capital Brasília como no Rio de Janeiro. E a cor escolhida pelos milhares de pessoas que assistiram aos comícios? Amarelo e verde. E o que foi usado pela maioria dos seus seguidores nestes eventos políticos? Adivinhou-o.

Uma pesquisa rápida nos meios de comunicação social prova quão divisória e intensa a política se tem tornado no Brasil nos últimos anos. Os apoiantes de Luis Inácio Lula da Silva, rival de Bolsonaro, usam vermelho, a cor do partido do Trabalhador, que ele representa. Os adeptos de Jair Bolsonaro usam verde e amarelo, e na maioria dos casos a camisola da seleçcão brasileira.

Recentemente uma das maiores estrelas mundiais do futebol, Neymar, que joga pelo Paris Saint-Germain e também pela selecção brasileira, e que tem vivido efectivamente na Europa durante a última década, declarou o seu apoio incondicional a Jair Bolsonaro, participando mesmo numa das famosas transmissões ao vivo do presidente na internet.

A campanha de Bolsonaro marcou um golo ao associar o seu candidato a um dos maiores jogadores actualmente na selecção nacional. Alguns questionaram as motivações de Neymar para uma tal demonstração pública de lealdade para com o político.

Durante uma entrevista, Lula foi rapidamente a insinuar que Bolsonaro tinha "perdoado" algumas das dívidas fiscais do jogador ao país. Neymar está actualmente a ser acusado de evasão fiscal em Espanha, onde tinha jogado antes de se mudar para França. O caso está em curso.

Outros atribuem o caso ao apoio de Bolsonaro a Neymar quando o jogador de futebol foi acusado de violação num hotel de Paris por uma modelo brasileira em 2019. O caso foi arquivado pelas autoridades brasileiras por falta de provas, e a reclamante foi mais tarde acusado de extorsão pelo pai de Neymar.

Mas a associação de um partido político, e do seu candidato presidencial, com a camisa memorável, tomou proporções nunca antes vistas no "país do futebol", pois assim os brasileiros referem-se à sua própria pátria.

A bandeira do país e as cores nacionais estão agora também a ser utilizadas como ferramentas para meios políticos pelo candidato em exercício. É definitivamente mais um golo da equipa de publicitários de Bolsonaro, mas um que deixa em aberto uma série de questões.

Onde ficam os milhões de eleitores que não apoiam o Bolsonaro e as suas políticas? Pode uma pessoa no Brasil hoje, independentemente da sua inclinação política, ir às lojas com a camisola da selecção nacional, sem medo de ser questionada ou mesmo intimidada por um apoiante de Lula?

Se alguém com a mesma camisa fosse declarar em público que não apoia o Presidente Bolsonaro, como reagiriam as outras pessoas?

Alguns fanáticos brasileiros foram acusados de extremismo político e violência mortal.

Em Agosto, Marcelo Arruda, que trabalhava como tesoureiro para a o Partido dos Trabalhadores local, no estado do Paraná, e um apoiante declarado de Lula, celebrava o seu 50º aniversário numa festa privada em que o tema era Lula. Alguns convidados usavam vermelho, o jingle da festa do trabalhador era tocado. A cara do famoso ex-presidente foi impressa no bolo de aniversário.

Não convidado e desconhecido da família, Jorge Rocha Garanho, invadiu com slogans associados ao Bolsonaro, a festa de aniversário. Desafiado, partiu, mas mais tarde regressou e matou a tiro o Sr. Arruda à queima-roupa, em frente da sua família e amigos que se tinham reunido para a celebração do aniversário.

Mais tarde, um juiz declarou o crime como sendo de motivação política e o assassino, que também foi baleado durante a "festa" mas sobreviveu, está actualmente preso.

No início deste mês ocorreu outro crime fatal. Um apoiante de Lula apunhalou o seu próprio amigo oito vezes durante uma luta na região costeira de São Paulo.

A vítima, José Roberto Gomes Mendes, um apoiante de Bolsonaro, estava a usar uma T-shirt com a cara do presidente impressa quando o ataque ocorreu. Mais tarde, ele morreu. O assassino, Luiz Antonio Ferreira da Silva, alegou autodefesa e confessou que tinha havido uma altercação sobre opiniões políticas.

Portanto, a questão principal agora é: será que um dia, quando toda esta divisão política acabar, e temos de acreditar que acabará eventualmente, será que TODOS os brasileiros serão capazes de reclamar a sua célebre camisa do futebol nacional e parar literalmente de se matarem uns aos outros?

Desordem é indignação?


Os atuais movimentos populares são fruto de indignação e sentimento de injustiça de como se deu o processo eleitoral
Jair Bolsonaro



Golpista sendo golpista

De onde menos se espera, daí é que não sai nada, diria Apparício Torelly, o "barão de Itararé". Quase dois dias após ser derrotado nas urnas, Jair Bolsonaro deixou milhões de brasileiros e dezenas de profissionais da imprensa plantados, à espera do projeto de ditador finalmente reconhecer o resultado das eleições. Tolinhos — e eu me incluo nesse bonde.

Havia um tiquinho de esperança de que houvesse algum resquício de civilidade. O que tivemos foi mais do mesmo: golpista sendo golpista. Agradeceu aos votos dos eleitores, ignorou, como sempre fez, a outra metade do país para quem ele fez questão de não governar, e aproveitou o holofote para atiçar a militância.


"Os atuais movimentos populares são fruto de indignação e sentimento de injustiça de como se deu o processo eleitoral." Tão direito como só um covarde consegue ser, deu a entender que não foi uma eleição limpa. Recorro ao "barão de Itararé", novamente: "não é triste mudar de ideias, triste é não ter ideias para mudar".

Jair Bolsonaro seria um prato cheio para o "barão" que de nobre tinha apenas o texto afiado, o deboche, o humor anárquico. Jornalista e escritor, Torelly não perdoava políticos, intelectuais, ricos e pobres. Deixou uma lista enorme de frases impagáveis que conversam com o nosso século e com a crônica política atual, embora uma delas tenha ficado datada. "O voto deve ser rigorosamente secreto. Só assim, afinal, o eleitor não terá vergonha de votar no seu candidato."

Sorte de o "barão" não ter conhecido o eleitor bolsonarista-raiz que não apenas se orgulha, como tem passado os últimos dias defendendo arruaça, fechamento de estradas e acredita que o país vai parar para defender o indefensável: golpe militar. "Sábio é o homem que chega a ter consciência da sua ignorância", diria o barão. Mas isso é mais difícil para o bolsonarismo e para Jair Bolsonaro do que reconhecer a derrota.