quinta-feira, 16 de abril de 2020

Pior será depois

O coronavírus não escolhe suas vítimas: ataca sem distinção todos quantos acha no caminho. Mas a chance de topar com ele depende apenas em parte do acaso. Fatores sociais fora do controle individual influem no risco de se contrair a doença e no alcance dos seus efeitos.

Em edição recente, a revista americana The Atlantic discute como desníveis sociais de classe, raça ou local de moradia, anteriores à pandemia, alteram radicalmente a probabilidade de cada qual ser atingido por ela, sobreviver-lhe e seguir adiante. Nisso, o que vale para os Estados Unidos vale ainda mais para o Brasil.

Aqui, agudas diferenças de riqueza e renda formam o alicerce sobre o qual se assentam outras formas de desigualdade —todas se realimentando. Na crise atual, manifestam-se sobretudo nos meios de se proteger da moléstia; nas chances de contraí-la e a ela sucumbir; e no grau em que ditarão as condições de vida no futuro.


À medida que a epidemia chega às vizinhanças mais carentes, a suspensão das atividades econômicas, o isolamento social e as medidas de higiene —corretamente prescritos pelos governos— deixam de ser possíveis. Os pobres não podem abrir mão do trabalho informal que lhes garante o sustento, não têm como se isolar em habitações onde muitos se apertam em pouco espaço e, com frequência, não dispõem de água e esgoto que lhes permitam seguir as recomendações sanitárias.

Ainda que exista o SUS, o acesso a suas unidades e a qualidade do atendimento variam conforme o lugar e na razão inversa da pobreza de sua clientela. Além disso, como evidenciam as professoras Luiza Nassif Pires, Laura Carvalho e Laura de Lima Xavier no estudo recém-publicado “Covid-19 e desigualdade”, a incidência de uma ou mais enfermidades crônicas, que aumentam o risco de morte por coronavírus, é mais disseminada entre os idosos pobres. A presença de duas ou três delas é o triplo entre os que só têm o ensino fundamental do que entre aqueles que cursaram o ensino médio.

Finalmente, ainda durante a epidemia, o fosso da desigualdade se aprofunda, não só entre quem tem trabalho e quem não tem mas também entre os mais jovens, afetando, provavelmente em boa medida, o seu futuro. Do total dos alunos do ensino básico, os 70% matriculados nas redes públicas estão sem aulas. Enquanto isso, no restrito grupo de escolas de elite da rede privada, crianças e jovens recebem aulas a distância, graças ao acesso privilegiado à internet e a programas de comunicação remota.

Não tem erro: quando a epidemia passar, o Brasil estará mais triste, mais pobre e certamente mais desigual.
Maria Hermínia Tavares

O mundo vai cobrar o país

O Brasil tem um papel enorme, vai ter que sentar nesta mesa internacional, isso é um jogo bruto, é um jogo duro, dificílimo. O Brasil tem que estar preparado. Não adianta falar ‘ah, eu não converso com este, eu não converso com aquele’. É uma discussão muito grande, que parte de muitas coisas que hoje são certezas e que no pós-Covid virarão pó
Luiz Henrique Mandetta, ministro da Saúde com aviso prévio

Ignorância atrevida

A crise, qualquer crise, pode ser favorável aos governantes de plantão. E um problema para as oposições. Neste momento, mundo afora, todo dia a gente vê as autoridades na televisão anunciando medidas, recomendando comportamentos, pedindo apoio para o sacrifício necessário. Já as lideranças de oposição quase desaparecem da mídia. Ficam até constrangidas: criticar neste momento?

Mas dada essa regra geral – o governante sai em vantagem no momento crítico – surgem as diferenças. Alguns crescem, como o primeiro-ministro da Itália, Giuseppe Conte. Ele chegou ao posto em junho de 2018, numa daquelas situações típicas da política italiana: um arranjo provisório diante de um impasse entre partidos.

Nunca tinha sido político, estava como que tomando conta do posto.

Cresceu na crise do coronavírus. Os governantes regionais do norte da Itália fracassaram, mas Conte foi o primeiro na Europa a decretar o confinamento, assumindo os riscos com um discurso firme. Tornou-se uma liderança europeia, ao propor medidas de combate às crises sanitária e econômica.

E nem precisamos ir longe. O médico Luiz Henrique Mandetta é ortopedista, não infectologista ou epidemiologista. Não passava de um político regional. Hoje, tem mais de 75% de aprovação popular e talvez até mais nos meios políticos.

Agiu como manda o manual: assumiu a liderança e os riscos, soube encontrar especialistas aos quais deu autonomia e nos quais confiou.

Fernando Henrique Cardoso, num livro sobre sua carreira, chamou-se “presidente acidental”. O Ministério da Fazenda caiu nas suas mãos como um limão azedo e dali ele tirou a limonada do Plano Real, sem ter qualquer especialidade em economia.

Conte e Mandetta também são líderes acidentais.


Bolsonaro também é um presidente acidental, mas pelo lado negativo. De anos de baixo clero, de repente tornou-se a alternativa aos desastres do PT. Era completamente despreparado para o cargo, mas outros líderes também chegaram assim aos seus postos.

Nesses casos, a diferença entre o êxito e o fracasso está no tamanho da ignorância. Alguns guardam um pouquinho de sabedoria, o suficiente para saber que não entendem nada daquilo e que é melhor chamar gente que entende. Bolsonaro fez isso na economia, quando outorgou poderes ao ministro Paulo Guedes.

Mas tirante isso – e talvez o ministro Moro – Bolsonaro carrega aquilo que nossas avós chamavam de “ignorância atrevida”. Ele acha que entende de radares nas estradas, pontos na carteira de motorista, cloroquina, índios, nióbio, coronavírus, como domar o Congresso e os políticos. Para ele e seu pessoal mais próximo, aquecimento global, pandemia, direitos humanos, atendimento aos pobres, a rede Globo e a mídia em geral, óleo nas praias – tudo é uma conspiração de esquerdistas, com a China comunista sempre por trás, às vezes a pobre Venezuela ou “os estrangeiros”.

Parece tosco – e é tosco. Nessa circunstância, não se podia esperar mesmo que ele entendesse o tamanho da crise de saúde. Por sorte, surgiram lideranças localizadas, como Mandetta, e nos estados, como muitos governadores e prefeitos. Mas com o presidente atrapalhando, isso emperra as políticas nacionais de combate aos efeitos do coronavírus e de preparação para a saída da crise.

Muitos governantes se atrasaram no reconhecimento da crise, mas conseguiram dar a volta. Menos quatro: os ditadores da Bielorússia, do Turquemenistão – aquele que manda tomar vodka contra o vírus – da Nicarágua e Bolsonaro, o único eleito em um pleito democrático mas que ele acha que foi fraudado. Sim, ele também acha que entende de sistema de urnas eletrônicas. (Aliás, ele prometeu provas de que foi roubado no primeiro turno e até agora nada. Assim como não mostra seus exames de coronavírus).

Não tem como dar certo. A crise vai deixar mais mortos do que se fosse administrada de modo mais competente. A recuperação econômica e social será mais tardia e mais lenta. Dependemos da capacidade de lideranças localizadas, parlamentares, governadores, prefeitos, e da gente mesmo, sociedade e mídia séria e independente.

O vírus vai decidir

O grande racha no governo e fora dele ocorre entre os que acreditam que a crise do coronavírus já está passando e os que acreditam que mal está começando. Não é simplesmente uma questão de opinião de quem confia possuir os melhores dados ou a melhor avaliação de riscos.

O conflito entre as duas linhas é de ampla natureza política e já tem severas implicações no relacionamento entre entes da Federação (presidente versus governadores, por exemplo), no sistema de governo (Executivo versus Legislativo) e no arcabouço jurídico mais abrangente (quais os poderes constitucionais do chefe de Estado, por exemplo). Além de ter profundo impacto nas medidas emergenciais para enfrentar a recessão trazida pela crise do coronavírus.

O presidente da República tem fé na versão de que o impacto econômico poderia ter sido bem menor não fosse o interesse de adversários políticos (governadores, a esquerda, “elites políticas” nebulosas, o “sistema”) em criar caos social para tirá-lo do poder. Está convencido de que a cloroquina não deixará o custo em vidas humanas ser tão alto como, por exemplo, nos Estados Unidos do ídolo Trump, que imita até nos erros.

Portanto, a principal linha de ação política do presidente no momento consiste em evitar que governadores e prefeitos transformem as medidas de ajuda emergenciais numa grande operação que teria como objetivo – claro, qual outro? – prejudicá-lo diretamente. “Reabrir” a economia virou sinônimo, para Bolsonaro, de sobrevivência política muito além de mobilizar sua base de seguidores.

Nisto entrou em sintonia fina com a equipe de Paulo Guedes, para a qual a Câmara dos Deputados criou um “seguro” contra a inevitável perda de arrecadação por parte de Estados e municípios que, na verdade, incentivaria a irresponsabilidade de prefeitos e governadores e, perversamente, os induziria a prorrogar medidas de isolamento que prejudicam a economia. Fala-se no gabinete de Guedes em “farra eleitoral” por parlamentares, governadores e prefeitos aproveitando uma crise de saúde.

Para a equipe econômica, “isolamento social” virou sinônimo de abuso fiscal e probabilidade alta de depressão após a recessão, apesar de destacados integrantes dela reconhecerem que a experiência internacional recente recomenda medidas restritivas (que prejudicam a economia) como única opção garantida para diminuir a proporção da tragédia de saúde pública.

Uma tragédia anunciada, antecipada e que a ala do governo menos comprometida com postulados ideológicos assume que é um risco iminente.

O resultado desse racha é uma perigosa paralisia política. O embate em torno das medidas emergenciais mobiliza setores do Executivo em busca de provocar uma divisão no Congresso (entre Senado e Câmara), enquanto setores do Legislativo buscam vantagens no que identificam corretamente como rachas dentro do Executivo. O presidente enfrenta os governadores e prefeitos em vários campos de atuação, levando o fracionado STF a arbitrar disputas políticas que arranham a Constituição, enquanto o poderoso corporativismo do funcionalismo público se defende nos três setores para não perder numa crise que empobrecerá o País inteiro.

Os graves contornos dessa crise indicam que ela é bem maior do que a capacidade dos principais atores políticos de manter qualquer controle dos acontecimentos de fundo, ou de liderar efetivamente em qualquer direção dos dois lados do “racha” apontado acima. Ficou para o vírus decidir.

A burrice saiu do armário

Depois de resolvermos a crise de saúde que vivemos, o país precisa correr atrás de um remédio para erradicar um outro problema gravíssimo: o da burrice. Ao chamar Jair Bolsonaro de burro, meu colega Hélio Schwartsman disse com todas as letras algo que tive pudores em outras ocasiões. Contive minhas críticas em ignorante, obtuso, ignóbil. Mas o presidente é isso mesmo, burro.

Seria trágico o bastante que um sujeito tão limitado tivesse chegado à Presidência, não fosse o agravante de ser assessorado por gente do mesmo naipe. Quem acompanha as declarações de alguns de seus ministros, como Weintraub e Ernesto Araújo, do Mister Fim do Isolamento, Osmar Terra, do filho aspirante a embaixador e de mais uma dúzia de parlamentares do PSL, não tem a menor dúvida. São todos burros.


E há outro fato que a eleição de Bolsonaro pode confirmar: nossa educação é mesmo uma desgraça, como já suspeitávamos. Mas o empoderamento dos burros em cargos públicos, nos meios de comunicação alternativos e nas redes sociais permitiu que a burrice saísse do armário e revelasse que parte dos brasileiros só precisa ficar de quatro para começar a pastar.

O que explica uma moça afirmar que água tônica tem quinino, "princípio da cloroquina", sugerindo que serve de tratamento para a Covid-19? Burrice. E um comunicador comparar mortes pelo vírus com a quantidade de vítimas por engasgamento? Burrice. E a teoria de que o coronavírus teria sido criado para vender remédio? Burrice. E mais esta: um deputado questionar a eficiência do isolamento por que maridos e mulheres se abraçam e beijam seus filhos? Burrice.

No meio disso tudo, uma constatação surpreendente e preocupante. O Brasil, um dos países mais desiguais do mundo, no quesito burrice vive em condições de igualdade. Tem gente burra em todas as classes sociais.

Ex-capitão e a nau sem rumo

O Bolsonaro parece o capitão do Titanic. O navio estava afundando e ele continuava fingindo que nada estava acontecendo. O país está à deriva. Uma nau sem rumo
Lula, ex-presidente e ex-presidiário 

Lideranças latino-americanos pedem recursos maciços ao FMI para evitar uma catástrofe econômica

A emergência do coronavírus pôs a América Latina em xeque. Os Governos da região necessitam de mais recursos para fazer frente à pandemia imediatamente e paliar suas consequências econômicas. E um plano integral urgente, começando por um desembolso maciço do Fundo Monetário Internacional (FMI), é essencial para evitar que a crise sanitária tenha repercussões dramáticas e irreversíveis. Esse é o pedido que um grupo de veteranos líderes latino-americanos dirige à comunidade internacional. Em uma carta intitulada Imperativos éticos e econômicos da luta contra a Covid-19: uma perspectiva latino-americana, quatro ex-presidentes e uma dezena de ex-ministros de Economia, docentes e presidentes de bancos centrais solicitam ao Fundo que aprofunde seu envolvimento “tanto para abordar as necessidades fiscais e cambiais dos países no curto prazo como para continuar apoiando as economias no futuro”.

A iniciativa — encabeçada pelos ex-presidentes Fernando Henrique Cardoso (Brasil), Ricardo Lagos (Chile), Juan Manuel Santos (Colômbia) e Ernesto Zedillo (México) — propõe a emissão de um trilhão de DEGs (direitos especiais de giro), um ativo criado em 1969 pelo FMI para amparar as reservas dos países membros, que pode ser trocada por divisas correntes como o dólar e o euro. Um DEG vale atualmente 1,30 dólar. E, embora estes recursos sejam habitualmente atribuídos aos Estados em função de suas cotas, a situação que o continente atravessa justifica agora “uma atribuição não proporcional através de um fundo que acelere o apoio fiscal aos Governos mais necessitados”. Urge, além disso, uma maior celeridade nos desembolsos.

Os líderes signatários apelam também aos bancos centrais que, por emitirem moedas de reserva, “podem contribuir para reduzir a iliquidez cambial global”, ampliando as permutas e intercâmbios financeiros com outros bancos centrais. As entidades emissoras, além disso, “devem utilizar todos os instrumentos ao seu alcance, inovando quando for necessário, para injetar liquidez nos mercados financeiros e na economia”. O plano exige o envolvimento de alguns dos principais organismos multilaterais, como o Banco Mundial, o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e o Banco de Desenvolvimento da América Latina (CAF). A seguir, a íntegra da carta.

Imperativos éticos e econômicos da luta contra a Covid-19: uma perspectiva latino-americana

A pandemia da Covid-19 é uma comoção inédita, de duração incerta e consequências catastróficas que, se não for abordada adequadamente, poderia se transformar em um dos episódios mais trágicos da história da América Latina e o Caribe. Embora a crise exija uma ação rápida e decisiva de parte dos governos, as respostas políticas em nossa região têm sido desiguais. Em vários casos se reagiu rapidamente, fazendo da proteção da saúde pública o objetivo principal. Infelizmente, alguns governos tenderam a minimizar os riscos da pandemia, informando mal aos cidadãos e desconsiderando tanto as evidências científicas como o conselho de seus próprios especialistas. Em lugar de mobilizar todas as capacidades a seu dispor, alguns líderes apostaram numa política populista e divisora em meio à tragédia. Os latino-americanos merecem mais do que isso.

A supressão da epidemia para minimizar sua morbidade e mortalidade deve ser nossa prioridade principal. A América Latina deveria se centrar em melhorar seus sistemas de saúde, canalizar recursos a hospitais, adaptar temporariamente a infraestrutura inativa, como hotéis e centros de convenções, e aumentar drasticamente a capacidade de testagem.

À diminuição dos volumes e preços de exportação, perda de renda com o turismo e as remessas e grandes saídas de capital, nas economias latino-americanas se soma agora a interrupção maciça da produção nacional. A forte queda da oferta, combinada com uma queda generalizada da demanda, pode desencadear uma espiral contrativa. Neste marco, é essencial avançar com políticas audazes para proteger a renda das pessoas e dos lares, incluindo transferências em espécie para aqueles que ficam em uma posição vulnerável por causa da crise, entre eles os trabalhadores informais e independentes que não podem ter acesso a subsídios de emprego ou ao seguro-desemprego.

Para preservar os empregos e a renda dos trabalhadores, também é essencial ajudar às empresas, acompanhando-as durante o período de distanciamento social e estimulando-as na recuperação posterior. Os subsídios para o pagamento de salários, condicionados à manutenção da folha de pagamentos, protegem tanto empresas como trabalhadores e são cruciais para uma rápida melhora da economia. Pelo contrário, se não se evitarem as quebras generalizadas, a próxima vítima da crise seria o sistema bancário, com o que o sistema de pagamentos e a economia em seu conjunto correriam o risco de se paralisar.

Muitas empresas, particularmente as pequenas e médias, sofrerão importantes perdas de ganhos enquanto a crise durar. Sem apoio, a falta de liquidez se transformará em um problema de solvência, e os adiamentos de impostos, o refinanciamento de empréstimos e os créditos subsidiados não serão suficientes. Esta emergência exige garantias fiscais de crédito sem precedentes, assim como mudanças temporárias na regulação, para incentivar e sustentar o crédito bancário. Os bancos públicos bem capitalizados e administrados poderiam desempenhar um papel de liderança nesta frente.

O estímulo fiscal também será crucial na fase de recuperação, momento em que os governos deverão impulsionar o emprego e a atividade econômica sem exacerbar os riscos sanitários. As políticas diferirão entre países, mas necessitarão recursos extraordinários durante essa fase.

Tudo isto constitui um desafio excepcional: embora as necessidades fiscais sejam agora muito maiores que durante a crise financeira global de 2008-2009, os recursos fiscais nas economias latino-americanas são hoje mais limitados. Os custos do estímulo deverão ser compensados com ajustes orçamentários em áreas de menor prioridade. O compromisso de nossos poderes Executivo e Legislativo com a correção do aumento do déficit fiscal dentro de um período de tempo razoável servirá para mitigar o risco de uma deterioração da qualificação de crédito que ameaça vários de nossos países.

Os líderes latino-americanos devem fazer um chamado enérgico à cooperação internacional para enfrentar a crise, condenando os controles à exportação de suprimentos médicos e demais recursos críticos e exigindo um incremento de recursos para a Organização Mundial da Saúde, contrariando a temerária decisão do governo dos Estados Unidos. É necessária uma coordenação global mais sólida entre as autoridades da saúde para melhorar a capacidade de realizar exames, tratar e isolar os pacientes e desenvolver uma vacina e cura, que serão a solução definitiva para a pandemia da Covid-19. As companhias farmacêuticas devem ajudar os países com materiais reativos para ampliar o número de testes e com acesso livre à tecnologia para produzi-los. No âmbito financeiro, os reguladores, as agências de qualificação de crédito e as instituições de normas contábeis devem adaptar seus critérios para fazer frente a circunstâncias sistêmicas excepcionalmente adversas.

O apoio externo para as contas fiscais e a balança de pagamentos é indispensável, especialmente para os países menores e menos desenvolvidos da América Latina. Se tanto as empresas privadas como os governos elevarem seus déficits, ocorrerá o mesmo com a conta corrente dos países. A isto se somam as saídas de capitais dos mercados emergentes, que já foi a maior na história, e a depreciação cambial resultante, potencialmente desestabilizadora. Para muitas economias da região, um apoio externo oficial muito maior será a única forma de fazer frente a esta combinação inédita de choques adversos.

O FMI tem um papel essencial a desempenhar, tanto para enfrentar as necessidades fiscais e cambiais dos países no curto prazo como para continuar apoiando as economias no futuro, através de uma crise de duração incerta. O FMI necessita de mais recursos e a capacidade de desembolsá-los rapidamente. Os governos latino-americanos deveriam exigir uma nova emissão de um trilhão de Direitos Especiais de Giro (DEGs). E, embora estes DEGs sejam atribuídos aos países-membros de acordo com suas respectivas cotas, se poderia facilitar uma atribuição não proporcional através de um fundo que acelere o apoio fiscal aos governos mais necessitados. Além disso, a duplicação imediata dos Novos Acordos para a Contração de Crédito (NAB) daria ao Fundo a capacidade necessária para atender à urgente demanda por empréstimos que se avizinha. Finalmente, dado que os programas com alto acesso são lentos de aprovação para as atuais urgências, o FMI deveria aumentar significativamente o acesso a suas facilidades de desembolsos rápidos e condicionalidade leve, ou criar uma nova para a pandemia.

Os bancos centrais que emitem moedas de reserva podem contribuir para reduzir a iliquidez cambial global, ampliando seus swaps de moeda com outros bancos centrais. Isto pode ser feito de maneira direta entre bancos ou, indiretamente, através da intervenção do FMI ou do Banco de Pagamentos Internacionais (BPI) como intermediários da liquidez. Em nível nacional, os bancos centrais devem utilizar todos os instrumentos ao seu alcance, inovando quando for necessário, para injetar liquidez nos mercados financeiros e na economia.

Por último, os bancos multilaterais de desenvolvimento (BMDs) como o Banco Mundial, o Banco Interamericano de Desenvolvimento e a CAF, deveriam duplicar a quantidade de empréstimos líquidos à região para apoio orçamentário com condicionalidade muito reduzida, aproveitando a grande liquidez dos mercados globais de capital. Em circunstâncias excepcionais e em países sem acesso aos mercados, a suspensão do serviço de dívida poderia complementar estes empréstimos oficiais. Os BMDs também deveriam proporcionar diretrizes aos países a respeito das diversas áreas de políticas envolvidas na resposta à crise, incluindo suas próprias estimativas das taxas de morbidade e mortalidade da Covid-19, especialmente em casos onde os governos estão minimizando a ameaça para a saúde. Na luta contra a pandemia, não há tempo a perder.

O desafio apresentados não tem paralelo na história recente. O mundo, e a América Latina e o Caribe, não podem se permitir respostas tardias ou inadequadas. A confiança mútua, a transparência e a razão, não o populismo ou a demagogia, continuam sendo os melhores guias nestes tempos incertos. A crise não pode ser pretexto para enfraquecer nossas democracias, conquistadas com tanto esforço; pelo contrário, é a oportunidade de demonstrar que a democracia está em condições de responder a desafios extremos, cumprindo com justiça com seus cidadãos.

Brasil desenvolve o 'coronabolso'


A saúde depois de Mandetta

Ainda ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta deu ontem a mais serena, lúcida e fatalista entrevista coletiva desde a chegada ao Brasil do novo coronavírus. Falou como quem está de saída e deixou claro que a vida de seu sucessor não será nada fácil.

Seria possível criticar Mandetta por abandonar o barco quando o número de casos de Covid-19 está prestes a sofrer uma explosão nas próximas semanas, em virtude do relaxamento no isolamento social que vem sendo incentivado pelo presidente Jair Bolsonaro e por sua claque. Mas que opção ele tem se o chefe quer demiti-lo?

Mandetta surgiu para o brasileiro como uma espécie de Norte magnético, enquanto os atos irresponsáveis e palavras desvairadas de Bolsonaro se encarregavam de desgovernar a bússola do combate ao coronavírus. Jamais negou as evidências científicas e, mesmo tendo começado com atraso a enfrentar o problema, apontou corretamente a direção para onde precisávamos seguir.


Não foi uma indicação perfeita, é importante ressalvar – o Norte magnético nunca é o real. Até agora, o Brasil não dispõe de recursos essenciais para enfrentar o vírus nos próximos meses. Mandetta proclamou a transparência total nas informações sobre a epidemia, mas ainda nem sequer sabemos quantos testes fazemos por dia.

Parece evidente que os números mais brandos que o Brasil tem apresentado em relação a outros países resultam não do sucesso em achatar a curva de contágio por meio do isolamento social, como Mandetta afirmou ontem, mas da nossa dificuldade para implantar uma infra-estrutura de testagem em massa. Até que tenhamos um conhecimento maior da realidade das infecções brasileiras pelo coronavírus, todo número é ilusório (leia mais aqui e aqui).

O Brasil também adotou critérios opacos e arbitrários para relaxar o distanciamento social, sem nenhum tipo de embasamento em modelos matemáticos sólidos (leia mais aqui e aqui). Foi incapaz de implementar um sistema eficaz para identificar infectados nas fronteiras e demorou até estender a triagem nos aeroportos a todos os viajantes, permitindo que vários casos chegassem ao país.

Por fim, em que pese o perfil técnico dos secretários escolhidos por Mandetta, o governo tem ignorado as melhores práticas internacionais no rastreamento de contatos, oferecidas por países como Taiwan ou Cingapura (leia mais aqui e aqui). Crucial para a retomada das atividades econômicas, o assunto nem entrou na agenda.

A gestão de Mandetta está longe, muito longe de perfeita. Mas todas as deficiências parecem detalhes diante do embate enfrentado por ele para cuidar do básico: os equipamentos necessários para tratar doentes e proteger profissionais de saúde. Mandetta soube ignorar as fantasias ideológicas do governo a respeito da China para tentar garantir o possível diante da demanda explosiva no mercado internacional.

No discurso e no campo emocional – sempre decisivo para a opinião pública brasileira –, Mandetta sempre esteve do lado certo. Nas próprias palavras dele, o “lado da vida, da ciência e do Sistema Único de Saúde (SUS)”. Não é pouco quando se leva em conta o que existe do outro lado.

Exemplos de negacionismo e irresponsabilidade são abundantes: o deputado Osmar Terra, candidato a substituí-lo, já foi advertido por uma rede social ao publicar posts defendendo teses estapafúrdias, sem validade científica, como se tudo fosse apenas “questão de opinião”. Ao incentivar a população a voltar ao trabalho e sair às ruas distribuindo apertos de mão, Bolsonaro volta e meia põe vidas em risco e dá combustível àqueles que defendem seu impeachment.

Não é um acaso que tenham se acumulado nos últimos dias recusas de vários sondados a substituir Mandetta. O presidente está atrás de alguém de perfil técnico, com reputação diante da comunidade médica. Mas qual médico porá essa reputação em risco trabalhando para um governo que despreza a ciência e faz pouco da vida dos cidadãos?

Bolsonaro pode até acreditar que basta escolher alguém “de direita” ou “contra o aborto” para resolver a questão (como se Mandetta ou o governador de Goiás, Ronaldo Caiado, que rompeu com o presidente em virtude de suas atitudes, fossem comunistas…). A medicina, como sabe qualquer calouro de faculdade, não é ideológica. Deve tão-somente pôr em primeiro lugar a vida humana, como reza o juramento de Hipócrates.

O futuro ministro da Saúde, quem quer que seja, será determinante para o futuro do próprio Bolsonaro. Será altíssimo o preço que ele pagará pela escolha de alguém tresloucado, apenas para agradar a malta de lambe-botas que o venera nas redes sociais.

Noutros ministérios, tem sido até possível – embora dificílimo – conviver com o desprezo à história ou à ciência. Não é porque este ministro acredita que a ditadura militar fez bem ao país ou que o nazismo foi de esquerda que se porá a erguer centros de tortura ou campos de extermínio no dia seguinte. Não é porque aquele outro enxerga todo professor como militante petista que fechará universidades ou implantará um sistema de vigilância nas salas de aula.

Na saúde, porém, o preço a pagar pela escolha de um desvairado será imediato. O crescimento exponencial no início da curva epidêmica não perdoa. Num país em que a imprensa ainda é livre e o jornalismo profissional ainda demonstra um mínimo de competência, não haverá como maquiar as estatísticas a ponto de esconder o colpaso dos hospitais ou os cadáveres da Covid-19. A conta política da tragédia caberá não a Mandetta, mas a seu sucessor e àquele que o escolher: o presidente Jair Bolsonaro.

Terra genocida

Osmar, chega! É genocídio o que você está provocando
Mara Gabrilli, senadora (PSDB-SP) sobre a declaração de "pandemia está em regressão no Brasil inteiro"

Um perigoso ex-médico

O deputado Osmar Terra é um oportunista perigoso. Mensagem enviada na terça-feira a um filho do presidente Bolsonaro foi de uma irresponsabilidade absurda e criminosa. Claro que ele queria que o Zero Dois levasse ao presidente o áudio de sua mensagem depositada via WhatsApp. Óbvio que ele sabia que o seu conteúdo seria vazado. Nem isso o impediu de inventar descaradamente uma história que não se sustentaria nem um dia. Terra disse a Eduardo que o pico da epidemia de coronavírus já tinha passado e que devia ser comemorado. Citou São Paulo, justamente São Paulo, que no mesmo dia batia novo recorde de casos e de mortes pela Covid-19. 

A fome de poder não tem limites para homens como Terra. Esse tipo de gente é capaz de qualquer coisa para obter uma fatia da torta, de preferência a maior fatia, ou para do bolo não ser afastado. Você deve ter ouvido o áudio ou lido sobre ele. Mas não custa repetir aqui as aspas que compõem a sua essência. O bolsonarista de oportunidade disse, entre outras mentiras, essa: “a epidemia não está caindo, está desabando”. E ainda lançou um desafio, não a Eduardo, de quem morre de medo, mas aos que o vazamento do áudio alcançaria: “Podem escrever isso e me cobrem”.

Terra ainda atacou a quarentena, o que é música de ninar aos ouvidos do presidente. Dizer que as pessoas podem sair às ruas num momento como este, que nada muda no comportamento do contágio, choca mesmo quando um ignorante defende a tese. Mas é inadmissível quando se ouve a besteira de um homem graduado em Medicina. É até mais grave do que um médico dizer que foi curado da Covid-19 pela cloroquina. Terra disse que “não há um doente a menos, uma morte a menos porque estão fazendo aquela quarentena radical”.

Não sei, mas talvez fosse o caso de denunciar o doutor Osmar Terra ao Conselho Federal de Medicina. Um homem como ele não deveria ser autorizado a exercer a Medicina. Se ele tivesse pacientes e estes seguissem o que disse na mensagem ao Zero Dois, estariam expostos e poderiam adoecer, ser internados em hospitais e UTIs e morrer. Por sorte, Terra é um ex-médico e não tem pacientes. Ele nunca exerceu de fato a Medicina no Brasil. Desde o início dos anos 80 faz política no setor da saúde. Começou como sindicalista e depois seguiu carreira de político profissional.
Osmar Terra não deveria importar, afinal, ele ainda não ocupa o cargo de Luiz Henrique Mandetta no Ministério da Saúde, que é o que mais deseja. O problema é que ele se tornou um dos principais conselheiros de Jair Bolsonaro nessa crise sanitária. E é muito grave ver um presidente que sabe muito pouco sobre tudo aconselhado por um médico que sabe quase nada sobre Medicina. Mas Terra diz que sabe. Reafirma sempre que pode que já combateu e venceu uma epidemia. O ex-doutor disse a Eduardo: “Enfrentei o H1N1, que para mim foi um vírus muito mais letal do que o coronavírus”. 

Bobagem. Mesmo quem não sabe muito sobre medicina não deveria se arriscar com esta afirmativa. Ela contraria não apenas todo o mundo científico, mas ataca também os números, os dados oficiais, as estatísticas. Entre 2009 e 2010, em 16 meses, 2.160 pessoas morreram no Brasil com a H1N1. Mas, ainda em 2010, uma vacina derivada da influenza foi produzida e com ela se conteve a epidemia no Brasil e em todo o mundo. Não é o caso agora. Não há vacina nem remédio para a Covid-19. O que Terra parece ou finge ignorar.

São mais de dois milhões os infectados pelo coronavírus em todo o mundo. Esse número retrata apenas os que testaram positivo. Mais de 120 mil pessoas já morreram. Os dados mundiais mostram que sofrem mais os que tardaram a reagir, os que menosprezaram a letalidade do vírus, os negacionistas. Foi assim com Itália, Espanha e Estados Unidos. Pode ser assim com o Brasil se os brasileiros seguirem as orientações do deputado Osmar Terra. E esse é o seu crime. Muitos vão seguir a orientação do ex-médico porque ouviram sua mensagem no zap do Zero Dois. E essa turma não ouve mais ninguém.

Uma guerra sem vacina

A demora de o dinheiro chegar à ponta mais frágil da pandemia revela uma intricada disputa de poder que nem mesmo o imperativo moral imposto pela tragédia social é capaz de relativizar. Três frentes desta disputa ganharam holofotes esta semana.

A primeira é aquela que passa pela ajuda para que Estados e municípios possam fazer frente aos gastos da pandemia em meio a uma queda generalizada de arrecadação. Depois de assistir ao projeto passar com folga na Câmara, o governo federal investe no Senado para mudar os critérios da distribuição.

Os deputados acolheram a perda de arrecadação como o crivo a guiar a alocação de recursos. O Ministério da Economia pressiona para que os critérios sejam os mesmos já adotados no Fundo de Participação dos Estados (FPE) e dos Municípios (FPM). Na Câmara, o presidente da Casa, Rodrigo Maia, fez valer o argumento de que este critério não se adequa a um momento que tem na perda de arrecadação o principal imperativo das finanças públicas.


Por trás dessa tecnicalidade, está a pressão do governo para evitar que os governadores cuja defesa do isolamento social mais reverbera, João Doria (SP) e Wilson Witzel (RJ), e que também são os mais afetados pela perda de arrecadação, acabem sendo ‘recompensados’ pela extensão da quarentena, posição que colide frontalmente com aquela defendida pelo presidente Jair Bolsonaro.

O governo conta com a existência, no Senado, de uma bancada de oposição aos atuais governadores para mudar os critérios. Ainda que custe a se provar eficaz, a pressão revela a convergência entre o ministro Paulo Guedes e o presidente.

O primeiro tenta conter o gasto adicional advindo de uma compensação de perdas de receita. E Bolsonaro se vale da obsessão fiscal do seu ministro para tentar passar uma risca de giz na atuação dos governadores que mais o confrontam nesta crise numa disputa que tem 2022 como pano de fundo.

A segunda frente de batalha se trava entre os projetos para tirar a economia do atoleiro. Com base no estudo elaborado pelo Centro de Estudos Estratégicos do Exército, ministros como o da Infraestrutura e do Desenvolvimento Social, Tarcísio Freitas e Rogério Marinho, buscam apoio dos ministros palacianos para projetos que dependeriam diretamente de recursos orçamentários. Quem já teve acesso aos projetos do Ministério da Infraestrutura garante que, com R$ 5 bilhões, a Pasta seria capaz de gerar 1 milhão de empregos reativando obras em todo o país.

Ainda que a emenda constitucional que instituiu o Orçamento de guerra libere das amarras fiscais os gastos da pandemia, o ministro Paulo Guedes resiste a acatá-los. Prefere focar em iniciativas como aquela que busca incentivar bancos privados a aderir a um plano de resgate de empresas com novos empréstimos e títulos. Numa demonstração de que resiste a abandonar a velha cartilha, o ministro insiste em uma solução de mercado, ainda que não haja evidências de que os bancos privados estejam dispostos a aderir aos seus planos.

Na outra ponta, os ministros se valem do estudo militar, que foi tirado de circulação, para buscar um alinhamento com o comitê gerido pelo ministro da Casa Civil, Walter Braga Netto, ex-chefe do Estado-Maior do Exército. O texto, que menciona duas vezes a necessidade de um novo Plano Marshall, cita a manutenção, “ou até ampliação”, da capacidade logística do país como uma saída aventada para a paradeira geral na economia.

E, finalmente, o terceiro ‘front’ une os partidários da reativação da economia via investimento público aos capitães do sistema judicial. Ecos desta batalha apareceram esta semana com a publicidade do ofício encaminhado pelo procurador-geral da República, Augusto Aras, aos ministros da República recomendando que estes lhe deem ciência das notificações recebidas do Ministério Público Federal.Gerou aguerrida reação dos procuradores da República, mas extrapola a disputa de prerrogativas dos procuradores frente ao PGR. A lei prevê que o procurador-geral da República tome conhecimento das notificações que cheguem ao presidente e ao vice, ministros de Estado, de tribunais superiores e parlamentares.

Depois de Geraldo Brindeiro (1995 a 2003), porém, os procuradores-gerais não mais se valeram da prerrogativa. Seja por respeitarem a autonomia dos procuradores, na visão de quem a defende, seja por se omitirem ante poderes descontrolados do MP, segundo seus críticos.

A atitude de Aras reforça a percepção de que o atual PGR retoma a linhagem Brindeiro porque tem agido, até aqui, para barrar todos os questionamentos feitos a Bolsonaro, da campanha #brasilnaopodeparar à ofensiva do presidente contra as quarentenas estaduais.

Ainda que a prerrogativa de Aras esteja prevista em lei, os procuradores se queixam de que o PGR, contumaz defensor da “unidade” do MP, confrontou-a ao se dirigir às autoridades passíveis de notificação sem prévio entendimento com os procuradores. Acusam ainda o PGR de não se ater às notificações do primeiro escalão mas se estender a todos os órgãos executivos dos ministérios.

A diligência de Aras pode ser várias explicações. A proximidade da substituição do ministro Celso de Mello, vaga que disputa palmo a palmo com o advogado-geral da União, André Mendonça, é uma delas. A substituição iminente de Mandetta é outra. Ao centralizar a ação do MP, Aras evita que um nome alinhado com a temerária percepção de Bolsonaro sobre a pandemia seja alvo de questionamento da instituição.

E, finalmente, a atitude do PGR pode estar alinhada à visão daqueles que querem se valer de uma retomada ágil de obras, encomendas e serviços para fazer andar a economia pós-pandemia sem os crivos habitualmente estabelecidos pelas instituições de controle. E aqui também Aras mostra-se afinado não apenas com o presidente do Supremo, Dias Toffoli, como com o presidente da República contra quem a Constituição lhe deu a atribuição de representar.

Representantes do bolsonarismo raiz têm municiado procuradores federais e estaduais sobre ações de governadores em busca de irregularidades que possam vir a desmoralizá-los frente à queda de braço com o presidente. Como os chefes dos executivos estaduais não estão entre as autoridades cujas notificações pelo MP lhe devem ser previamente comunicadas, o PGR lava as mãos. Não apenas cumpre a higiene da pandemia, mas franqueia a temporada de caça aos governadores.

Pensamento do Dia


O elo entre desmatamento e epidemias investigado pela ciência

"Se a Amazônia virar uma savana, não dá nem para imaginar o que pode sair de lá em termos de doenças", diz pesquisadora

Faz pelo menos duas décadas que cientistas repetem o alerta: à medida que populações avançam sobre as florestas, aumenta o risco de micro-organismos – até então em equilíbrio – migrarem para o cotidiano humano e fazerem vítimas. Foi por isso que a notícia sobre a propagação do novo coronavírus, detectado pela primeira vez na China em dezembro passado e que se espalhou pelo mundo, não pegou Ana Lúcia Tourinho de surpresa. Doutora em Ecologia, ela estuda como o desequilíbrio ambiental faz com que a floresta e sociedade fiquem doentes.

"Quando um vírus que não fez parte da nossa história evolutiva sai do seu hospedeiro natural e entra no nosso corpo é o caos. Está aí o novo coronavírus esfregando isso na nossa cara", argumenta Tourinho, pesquisadora da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT).

No caso do novo coronavírus, batizado de Sars-CoV-2, muito antes de infectar os primeiros humanos e viajar a partir da China, abrigado no corpo de viajantes, para outras partes do mundo, ele habitava outros hospedeiros num ambiente selvagem – morcegos, provavelmente.

Isolados e em equilíbrio em seu habitat, como florestas fechadas, vírus como esse não ameaçariam os humanos. O problema é quando esse reservatório natural começa a ser recortado, destruído e ocupado.

Estudos científicos publicados anos antes da atual pandemia já mostravam a conexão entre perda florestal, proliferação de morcegos nas áreas degradadas e coronavírus. Análises assinadas por Aneta Afelt, pesquisadora da Universidade de Varsóvia, na Polônia, descrevem como os altos índices de destruição florestal nos últimos 40 anos na Ásia eram um indicativo de que a próxima doença infecciosa grave poderia sair dali.

Para chegar a essa conclusão, Afelt seguiu o rastro de pandemias prévias provocadas por outros coronavírus, como a da Sars, em 2002 e 2003, com taxa de mortalidade de 10%, e a Mers, em 2012, que matou 38% das vítimas infectadas.

"Por ser uma das regiões do mundo onde o crescimento populacional é mais intenso, onde as condições sanitárias permanecem ruins e onde a taxa de desmatamento é mais alta, o Sudeste Asiático atende a todas as condições para se tornar o local de emergência ou reemergência de doenças infecciosas", afirmou Afelt num artigo de 2018.

Tais condições não se aplicam apenas a essa parte do mundo. Na Amazônia, onde em 2019 o desmatamento bateu o recorde desta década, com 9.762 km² destruídos, e os alertas de desmatamento aumentaram 51,4% entre janeiro e março de 2020 em relação ao período anterior, o cenário é parecido.

A região com a maior floresta tropical do mundo também é considerada um provável polo de epidemias, como mostrou uma análise feita por uma equipe liderada por Simon Anthony, da Universidade de Columbia, nos Estados Unidos. Só de coronavírus que circulam em morcegos também no Brasil, o levantamento contabilizou pelo menos 3.204 tipos.

Tourinho não gosta nem de pensar sobre o impacto na saúde pública se a destruição da Floresta Amazônica seguir o ritmo acelerado. "Se a Amazônia virar uma grande savana, não dá nem para imaginar o que pode sair de lá em termos de doenças. É imprevisível", diz a pesquisadora. "Além de ser importante para nós por causa do clima, da fauna, ela é importante para nossa saúde."

Estudos feitos no país já traçaram a relação direta entre o corte da Amazônia e o aumento de doenças. Em 2015, por exemplo, uma equipe do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) constatou que, para cada 1% de floresta derrubada por ano, os casos de malária aumentavam 23%.

A pesquisa foi feita com dados de 773 cidades no Projeto de Monitoramento de Desmatamento da Amazônia, de 2004 a 2012. Além da malária, a incidência de leishmaniose também se mostrou diretamente relacionada ao desmatamento.

"A floresta fechada é como um escudo para que comunidades externas entrem em contato com animais que são hospedeiros de micro-organismos que causam doenças. E quando a gente fragmenta a floresta, começa a fazer vias de entrada no seu seio, isso é uma bomba-relógio", conclui Tourinho, mencionando ainda o perigo trazido por grandes empreendimentos, como hidrelétricas na Amazônia.

O entra e sai da floresta fragmentada para tirar madeira, colocar gado, abrir garimpo também é apontado como um perigo para a saúde. "As pessoas que entram nessas áreas podem ter contato com esses vírus e levar dentro delas o problema para centros urbanos", exemplifica Tourinho.

Nesse cenário, indígenas conseguem ser mais resistentes devido ao convívio por séculos com a floresta intocada, pontua a pesquisadora.

"Quando esses vírus chegam às cidades, a disseminação é muito rápida, justamente por toda a facilidade de deslocamento nesses centros, possibilidade de deslocamentos internacionais. As cidades repetem o mesmo estilo de confinamento que a gente faz com os animais e são gatilhos para proliferação de doenças contagiosas", acrescenta a bióloga.

Uma dessas rotas pode explicar a origem da pandemia do Sars-Cov-2. A covid-19, doença respiratória provocada pelo coronavírus, infectou mais de 2 milhões de pessoas e matou mais de 128 mil no mundo, segundo dados atualizados pela Universidade Johns Hopkins nesta quarta-feira.

'Todos os silêncios são cúmplices e têm uma quota parte de responsabilidade'

É mais conhecido pelo romance O Velho que Lia Romances de Amor, mas também o poderíamos apresentar como o escritor que nunca se cansa de denunciar. Ao longo da sua vida, com 70 anos cumpridos em 2019, e do seu percurso literário, cheio de sucesso e leitores, o escritor chileno Luis Sepúlveda tem chamado a atenção para crimes, atrocidades e violações que acontecem um pouco por todo o mundo, a começar pela sua América do Sul. Na última edição das Correntes d’Escritas, o escritor, morto ontem em Madri devido ao coronavírus, voltou a apontar o dedo, agora aos órgãos de comunicação social europeus que têm silenciado a morte de inúmeros ativistas ambientais. Contra o pessimismo do presente, Sepúlveda contrapõe a “imaginação”.

Chamou-lhe a notícia mais terrivelmente silenciada…
Luís Sepúlveda: E é. O número de ecologistas, ambientalistas e responsáveis de parques naturais e reservas indígenas assassinados tem vindo a aumentar nos últimos tempos. Os meios de comunicação social europeus não sabem ou preferem não falar sobre o assunto. Por vezes há uma ou outra referência, mas sem o nome dos envolvidos. Tudo faz parte de uma política repressiva levada a cabo por alguns governos latino-americanos, sobretudo os do Brasil e da Colômbia. Estamos perante uma nova forma de fascismo, com um ator novo: algumas igrejas evangélicas provenientes dos EUA. As suas visões do mundo são completamente loucas, às vezes lembram os talibãs do Afeganistão.

É um silêncio cúmplice e criminoso?
Absolutamente. Todos os silêncios são cúmplices e têm uma quota parte de responsabilidade. Para compreendê-lo basta lembrar quem são os proprietários dos meios de comunicação social: acionistas dos grandes bancos, donos de multinacionais, latifundiários. Como não há resposta política forte, tudo fica encoberto. São mortes terríveis, mas é como se nada se passasse.

Ao correr do seu livros denunciou muitas situações destas. A História está a repetir-se?

A história tem, de facto, uma dimensão cíclica. Os avanços são importantes, mas os regressos manifestam-se terrivelmente. Há cinco anos ninguém acharia possível que os livros voltassem a ser proibidos num país ocidental. E, no entanto, isso está a acontecer, por exemplo no Brasil. Obras que fazem parte do património da humanidade estão a ser afastadas dos leitores. E lembrem-se: da proibição dos livros à proibição das pessoas é um passo muito pequeno.

Antes da Primeira Guerra Mundial um jornal dizia que as pessoas estavam entediadas, alertando para o perigo que daí podia advir. O que está a acontecer hoje às pessoas para permitirem isto tudo? Estão distraídas?

Oxalá seja só isso, distração. Temo que seja algo mais. A evolução do capitalismo levou-nos a um extremo do neoliberalismo. Com ele veio a cultura da precariedade que atirou as pessoas para uma espécie de fatalismo. Ninguém acha que as coisas vão melhorar, antes pelo contrário. O sentido é que tudo vai ficar ainda pior. É terrível. Não se concebem soluções, só desgraças. Daí o discurso contra os políticos, a base de qualquer populismo.

Que papel podem ter os livros neste contexto?

Um papel importantíssimos, porque eles ajudam-nos a desenvolver a imaginação. Com ela somos capazes de ver além do dia-a-dia, do aqui e do agora. Só com imaginação é possível pensar um futuro diferente e tentar concretizá-lo.

Vírus não faz negócio

O vírus se impõe. A população se impõe. O vírus não negocia com ninguém. Não negociou com o [Donald] Trump, não vai negociar com nenhum Governo
Luiz Henrique Mandetta, ministro da Saúde (por enquanto)

O mundo pós pandemia

Já há um grande debate sobre o redesenho da ordem mundial, quando a crise do coronavírus passar. Há projeções para todos os gostos. As mais catastrofistas vão do fim do capitalismo ao surgimento de um “comunismo redesenhado”, como avalia o filósofo esloveno Slavoj Žižek. Sem chegar a tanto, outros enxergam o fim da globalização e da União Europeia. Também se especula sobre o fortalecimento do autoritarismo; como se Victor Orban – primeiro ministro da Hungria - fosse a regra e não a exceção das tendências que vão se impor com o fim da pandemia.

É bom desconfiar dos profetas do caos.

A crise terminal do capitalismo vem sendo preconizada desde a deflagração da Primeira Guerra Mundial. Ressuscitada em todas as crises mundiais, sua morte jamais se confirmou, para desespero dos marxistas, estes sim cada vez mais minoritários. Não será diferente agora. O mundo também não vai retroagir para a era da segunda revolução industrial quando inexistiam as cadeias produtivas globais.



Isso não quer dizer que tudo será como dantes no quartel de Abrantes. A pandemia vai acelerar tendências que já estavam em curso. Antes mesmo da crise, o Fórum Econômico Mundial descortinava um “capitalismo de parte interessadas”, que não se guiaria apenas pela lógica implacável do lucro. Assim, as empresas teriam também responsabilidades sociais e ambientais. A desigualdade e a sustentabilidade já estavam na agenda planetária, com a crise assumiram caráter de urgência.

A pandemia tornou mais visível a desigualdade. Explicitou a necessidade de ser enfrentada por meio de um novo contrato social entre Estado, sociedade e mercado. A globalização desregulada levou à crise do Estado de Bem Estar Social, enfraquecendo serviços vitais para a população. Na Inglaterra, nos últimos anos dos conservadores no poder, o sistema público de saúde – NHS - perdeu 17 mil leitos e 43 mil enfermeiros. Não foi muito diferente em outros países desenvolvidos.

Os ingleses redescobriram o quanto é importante ter um sistema de saúde fortalecido. O próprio Boris Johnson descobriu isso quando estava numa UTI. Saiu de lá fazendo declaração de amor ao NHS e a dois enfermeiros, imigrantes da Nova Zelândia e de Portugal.

Os países desenvolvidos estão valorizando os imigrantes. São eles que tocam parte de vários serviços essenciais.

O reforço do liberalismo associado ao Estado de Bem Estar Social é uma tendência. No novo contrato social a ser estabelecido, determinados bens e serviços - saúde e segurança, por exemplo – terão uma forte presença do Estado, não sendo ditados apenas pelas leis do mercado. O desafio é encontrar novas fontes de financiamento para assegurar aos cidadãos uma renda mínima e serviços públicos.

A ideia do Estado-Nação também ressurge com força. Não que os países vão se fechar em copas, econômica e politicamente, mas a configuração da União Europeia terá de se reinventar, assim como a divisão de trabalho internacional. A dependência de um só produtor de equipamentos médicos gerou uma questão de soberania. Os países buscarão formas de se proteger, sobretudo se não houver uma resposta global ao desafio atual.

A reindustrialização com cada país produzindo tudo seria um anacronismo que jogaria por terra os ganhos de produtividade decorrentes da automação e do advento das cadeias globais. A solução estará na regulamentação do mercado de itens sensíveis para evitar guerras de aquisição e na qual falará mais alto o poder do dinheiro dos países mais fortes.

Certamente a geopolítica mundial também passará por mudanças, com a China aumentando o seu protagonismo por meio do soft power. Os Estados Unidos não deixarão de ser a principal potência mundial econômica e militar, ao menos no curto prazo. Mas cada vez mais a Europa olhará mais para a China. Foi ela que veio em socorro de outros países, quando a pandemia ceifou milhares de vida no velho continente.

As grandes crises sempre tiveram o poder de fazer o mundo se reinventar. Na maioria das vezes para melhor. Foi assim na Segunda Guerra Mundial. Não será diferente agora.

Governo sabota o trabalho do Ibama até no combate à pandemia

O governo demitiu o diretor de Proteção Ambiental do Ibama, Olivaldi Azevedo, após uma operação do Ibama contra invasores em terras indígenas. A operação combatia o desmatamento, o garimpo e o risco de contaminação dos índios. A reação do governo foi demitir o responsável pela área.

A pandemia não pode nos impedir de olhar para os problemas tradicionais. Os garimpeiros e os grileiros avançam. Os alertas de desmatamentos na Amazônia aumentaram 51,4% no primeiro trimestre, na comparação com 2019.

O diretor do Imazon diz que a situação vai piorar nos próximos meses. Será o período seco na região, quando as queimadas ganham força e a madeira é escoada para ser vendida. Se cresceu até março, espera-se que a tendência continue nos meses seguintes.


Essa é a execução do plano da atual gestão do Ministério do Meio Ambiente. Ricardo Salles é o ministro antiambiental. O plano dele sempre foi deixar que o desmatamento avance. A visão dele é outra, é a que o presidente Jair Bolsonaro representa.

A demissão de Azevedo mostra isso. Ele é de São Paulo, foi policial. Não tinha a ver com os servidores do Ibama e assumiu uma área nevrálgica. Era uma espécie de interventor. Com o passar do tempo, os funcionários conseguiram fazer a operação de fiscalização. A atuação havia diminuído neste governo. Não há tantos recursos para as equipes viajarem nem máquinas para serem usadas nas operações. Dessa vez, conseguiram montar uma grande operação contra invasores em três terras indígenas no sul do Pará. Foram lá proteger os indígenas do contágio do cornavírus e mostraram que havia garimpo. O "Fantástico” veiculou o caso na reportagem de Marcelo Canellas.

Azevedo foi demitido não por acaso. Ele perdeu o cargo porque estava trabalhando e deixou os funcionários do Ibama exerceram sua função, pela qual são pagos com dinheiro público.
O governo Bolsonaro sempre foi a favor de garimpo em terra indígena. Nesse momento, além da invasão de terra pública e da contaminação dos rios por mercúrio, agora há o risco do vírus para a saúde dos índios. Eles são mais vulneráveis a vírus. Um jovem yanomami de 15 anos morreu infectado na semana passada.

O trabalho do Ibama hoje é duplamente importante. E Salles quer que o Ibama não trabalhe, deixe de fiscalizar e de proteger os indígenas. Não permite a queima de máquinas de invasores, demite o diretor que permitiu a operação de proteção aos índios. Quando há recursos e operações, os funcionários do Ibama são reprimidos ao cumprir o papel para o qual são pagos com dinheiro público.