quinta-feira, 16 de abril de 2020

A saúde depois de Mandetta

Ainda ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta deu ontem a mais serena, lúcida e fatalista entrevista coletiva desde a chegada ao Brasil do novo coronavírus. Falou como quem está de saída e deixou claro que a vida de seu sucessor não será nada fácil.

Seria possível criticar Mandetta por abandonar o barco quando o número de casos de Covid-19 está prestes a sofrer uma explosão nas próximas semanas, em virtude do relaxamento no isolamento social que vem sendo incentivado pelo presidente Jair Bolsonaro e por sua claque. Mas que opção ele tem se o chefe quer demiti-lo?

Mandetta surgiu para o brasileiro como uma espécie de Norte magnético, enquanto os atos irresponsáveis e palavras desvairadas de Bolsonaro se encarregavam de desgovernar a bússola do combate ao coronavírus. Jamais negou as evidências científicas e, mesmo tendo começado com atraso a enfrentar o problema, apontou corretamente a direção para onde precisávamos seguir.


Não foi uma indicação perfeita, é importante ressalvar – o Norte magnético nunca é o real. Até agora, o Brasil não dispõe de recursos essenciais para enfrentar o vírus nos próximos meses. Mandetta proclamou a transparência total nas informações sobre a epidemia, mas ainda nem sequer sabemos quantos testes fazemos por dia.

Parece evidente que os números mais brandos que o Brasil tem apresentado em relação a outros países resultam não do sucesso em achatar a curva de contágio por meio do isolamento social, como Mandetta afirmou ontem, mas da nossa dificuldade para implantar uma infra-estrutura de testagem em massa. Até que tenhamos um conhecimento maior da realidade das infecções brasileiras pelo coronavírus, todo número é ilusório (leia mais aqui e aqui).

O Brasil também adotou critérios opacos e arbitrários para relaxar o distanciamento social, sem nenhum tipo de embasamento em modelos matemáticos sólidos (leia mais aqui e aqui). Foi incapaz de implementar um sistema eficaz para identificar infectados nas fronteiras e demorou até estender a triagem nos aeroportos a todos os viajantes, permitindo que vários casos chegassem ao país.

Por fim, em que pese o perfil técnico dos secretários escolhidos por Mandetta, o governo tem ignorado as melhores práticas internacionais no rastreamento de contatos, oferecidas por países como Taiwan ou Cingapura (leia mais aqui e aqui). Crucial para a retomada das atividades econômicas, o assunto nem entrou na agenda.

A gestão de Mandetta está longe, muito longe de perfeita. Mas todas as deficiências parecem detalhes diante do embate enfrentado por ele para cuidar do básico: os equipamentos necessários para tratar doentes e proteger profissionais de saúde. Mandetta soube ignorar as fantasias ideológicas do governo a respeito da China para tentar garantir o possível diante da demanda explosiva no mercado internacional.

No discurso e no campo emocional – sempre decisivo para a opinião pública brasileira –, Mandetta sempre esteve do lado certo. Nas próprias palavras dele, o “lado da vida, da ciência e do Sistema Único de Saúde (SUS)”. Não é pouco quando se leva em conta o que existe do outro lado.

Exemplos de negacionismo e irresponsabilidade são abundantes: o deputado Osmar Terra, candidato a substituí-lo, já foi advertido por uma rede social ao publicar posts defendendo teses estapafúrdias, sem validade científica, como se tudo fosse apenas “questão de opinião”. Ao incentivar a população a voltar ao trabalho e sair às ruas distribuindo apertos de mão, Bolsonaro volta e meia põe vidas em risco e dá combustível àqueles que defendem seu impeachment.

Não é um acaso que tenham se acumulado nos últimos dias recusas de vários sondados a substituir Mandetta. O presidente está atrás de alguém de perfil técnico, com reputação diante da comunidade médica. Mas qual médico porá essa reputação em risco trabalhando para um governo que despreza a ciência e faz pouco da vida dos cidadãos?

Bolsonaro pode até acreditar que basta escolher alguém “de direita” ou “contra o aborto” para resolver a questão (como se Mandetta ou o governador de Goiás, Ronaldo Caiado, que rompeu com o presidente em virtude de suas atitudes, fossem comunistas…). A medicina, como sabe qualquer calouro de faculdade, não é ideológica. Deve tão-somente pôr em primeiro lugar a vida humana, como reza o juramento de Hipócrates.

O futuro ministro da Saúde, quem quer que seja, será determinante para o futuro do próprio Bolsonaro. Será altíssimo o preço que ele pagará pela escolha de alguém tresloucado, apenas para agradar a malta de lambe-botas que o venera nas redes sociais.

Noutros ministérios, tem sido até possível – embora dificílimo – conviver com o desprezo à história ou à ciência. Não é porque este ministro acredita que a ditadura militar fez bem ao país ou que o nazismo foi de esquerda que se porá a erguer centros de tortura ou campos de extermínio no dia seguinte. Não é porque aquele outro enxerga todo professor como militante petista que fechará universidades ou implantará um sistema de vigilância nas salas de aula.

Na saúde, porém, o preço a pagar pela escolha de um desvairado será imediato. O crescimento exponencial no início da curva epidêmica não perdoa. Num país em que a imprensa ainda é livre e o jornalismo profissional ainda demonstra um mínimo de competência, não haverá como maquiar as estatísticas a ponto de esconder o colpaso dos hospitais ou os cadáveres da Covid-19. A conta política da tragédia caberá não a Mandetta, mas a seu sucessor e àquele que o escolher: o presidente Jair Bolsonaro.

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