segunda-feira, 29 de setembro de 2025

O jogo da imitação

No verão de 2022, Blake Lemoine, um engenheiro da Google, foi despedido na sequência de uma entrevista ao jornal The Washington Post, na qual afirmava que o LLM tinha “vida”, era capaz de sentir. Era como um rapazito de 8 anos, que sabia Física.

Desde então, com a proliferação de LLM e da sua utilização, multiplicam-se as notícias alarmantes de relações de dependência, suicídios, psicoses. Vidas e relações destruídas por conta de uma máquina.

Não obstante os LLM estarem cada vez mais capazes, tal não resulta de um desenvolvimento tecnológico face aos primeiros modelos, mas de uma maior capacidade de processamento. Mais dados e mais chips para processar conteúdos. Uma esponja que absorve todo o conhecimento escrito, a música que criámos, todas as nossas reações faciais, as nossas vozes… para nos imitar.


Os LLM tornaram-se tão omnipresentes, e a sua utilização tão mundana, que o primeiro-ministro sueco confessou, sem pejo, que usava o ChatGPT como mais um conselheiro. O LLM não é só uma biblioteca que se consulta para recolha de informação, mas sim um parceiro para discutir ideias. E, como com qualquer par que valorizamos, é capaz de nos influenciar.

Mas se sabemos que são apenas algoritmos e máquinas a processar informação, a fazer inferências a partir da informação disponível e a disponibilizar essa informação, porque tão facilmente nos iludimos quanto à sua eventual consciência?

Porque estão desenhados para parecerem humanos. Porque o seu sucesso comercial é garantido se connosco criarem um simulacro de uma relação humana.

No jogo da imitação é determinante a utilização de uma linguagem fluente. Um carro pode conduzir autonomamente, mas não criamos empatia, porque não “conversa” connosco.

Ajuda ter uma personalidade empática. É tão agradável quando as nossas questões são todas pertinentes, as nossas atitudes razoáveis. A memória de longo prazo, algo que está a ser introduzido, também ajuda a adaptar as respostas – ora aqui está um companheiro que não se esquece de nada, não para nos criticar, mas sim para nos afagar o ego de forma mais eficaz.

Com a introdução de agentes – ou seja, a capacidade de o LLM executar tarefas complexas –, a ilusão é completa. Afinal, este nosso amigo é um assistente supercapaz. Sabe comparar preços, planear viagens, marcar voos e hotéis, e muito mais e cada vez mais. Em breve o nosso cérebro pode ficar na prateleira…

Mas não tem de ser assim, nem deve. Estas são escolhas de design, e mostrando-se, como se mostram, danosas, devem ser limitadas pelo regulador. E deve a lei, também, assegurar que os produtores destas máquinas são responsabilizados, civil e penalmente, pelo seu comportamento.

Igualmente, importa reconhecer que esta dependência do mundo virtual é agravada pela forma como organizamos a nossa vida no espaço real. Se não investimos em espaços públicos agradáveis, onde podemos reunir-nos, em atividades pós-horário escolar (não apenas para os mais jovens) que promovam o desporto, a cultura e o convívio, seremos, cada vez mais, reduzidos ao nosso metro quadrado, onde o virtual substitui o real. Porque é cómodo, acessível e o exterior inseguro, degradado.

Em época de eleições locais, seria importante saber o que propõem os candidatos para promover a qualidade do nosso espaço público. Como podemos tornar as nossas cidades, vilas e freguesias mais “coletivas”, mais comunidade. Para que tenhamos uma vida real, no mundo real.

Terras raras e minerais críticos. Galeano tinha razão?

O mundo mudou neste século 21, e graças à explosão da globalização os bens passaram a ser fabricados nos mais diversos países e continentes pela disseminação do conceito e do uso das cadeias de valores. A produção de bens hoje é complexa, e fabricar um único bem pode representar etapas intermediarias de fabricação e agregação de componentes em diversos países antes de chegar ao consumidor final.

Abastecer essas cadeias de valores passou a ser crucial, e em boa parte feito com semicondutores e circuitos integrados (chips), pois estes são os componentes que viabilizam a fabricação desde relógios, computadores, celulares até automóveis que não existem mais sem a chamada “eletrônica embarcada”. Os semicondutores e outros produtos eletrônicos também necessitam de matérias primas chamadas minerais críticos, aí incluídas as terras raras.

Logo após o final da epidemia de covid-19, o mundo sofreu, pela primeira vez, graves consequências decorrentes da falta de semicondutores: muitas fábricas em diversos setores pararam, e a falta de produção provocou uma escassez que resultou em desemprego e inflação, que levou anos para ser debelada.

Desta vez teme-se pelo mesmo, só que as razões são diferentes, e devem-se à disputa por minérios travada principalmente entre Estados Unidos e China. Descontente com as negociações com o presidente dos Estados Unidos, o governo chinês ameaçou interromper a exportação de terras raras. A ameaça dos chineses foi consequência de Trump ter proibido empresas americanas de venderem seus chips avançados para a China. Ou seja, o conflito geopolítico estabeleceu-se como decorrência do uso de peças, componentes ou produtos e como forma de um país pressionar o outro. A discussão foi apenas suspensa, mas o assunto ainda não está resolvido.

O fato é que terras raras e outros minérios são decisivos na geopolítica. As terras raras — que não são raras, mas que abundam em poucos países — entre eles a China e o Brasil — incluem cerca de 17 elementos, entre os quais destacam-se o escândio, o ítrio e o lantânio, usados na fabricação de telas de celulares, motores de carros elétricos, sistemas de defesa, turbinas eólicas, ímãs e outros produtos fundamentais para a economia mundial. A China é forte não apenas por possuir as terras raras, mas por deter competência na extração e refino das mesmas. Só ela responde por 80% da capacidade mundial nesse quesito.

O Brasil, apesar de possuir reservas enormes, infelizmente não possui domínio sobre essas etapas, e, portanto, depende da China. E o Brasil também é rico em reservas de outros minérios como lítio, níquel, cobalto e nióbio, que por sua vez são vitais para a produção de produtos chamados de alta tecnologia, mas, da mesma forma, no máximo conseguimos realizar a extração, não detendo a tecnologia para fazer nem o processamento e muito menos obter bens como baterias para celulares, carros elétricos ou computadores.

Infelizmente os países sul-americanos são donos da sina de apenas saberem exportar minério bruto para depois importarem os respectivos produtos finais, que é onde entra a agregação de valor. No caso da energia solar, a situação é lamentável se considerarmos que somos um país com alta exposição solar. No entanto não sabemos produzir nem os bens movidos por energia solar e nem os equipamentos fotovoltaicos que são usados para transformar a luz solar em energia, que precisam ser comprados da China.

Em 1973, Eduardo Galeano, um jornalista uruguaio, escreveu seu livro mais famoso, As veias abertas da América Latina. Ali ele descreve com muita competência como os países da nossa região não passam de simples fornecedores de matéria prima para os países mais desenvolvidos. Estes não pagam quase nada por elas, mas fazem o processamento das mesmas em seus países e assim fabricam os produtos sofisticados, que depois acabamos comprando, e, por sinal pagando muito.

Será que nada mudou em mais de meio século?

O neo-coronelismo

Tem sido consenso, entre os analistas políticos, que o país atravessa um dos piores momentos de sua vida parlamentar. O articulista Merval Pereira, de O Globo, é duro na crítica: “o Congresso bate o recorde de ações amorais”.

Deputados se elegendo prefeitos, prefeitos se elegendo deputados, senadores se elegendo governadores, governadores se elegendo deputados; enfim, esse é o retrato da nossa vida parlamentar.

A estampa visual do presidente da Câmara, deputado Hugo Mota, não corresponde ao seu pensamento. Muitos acham que é um novo representando a velhice. De uma família política da região de Patos, na Paraíba, chegou à presidência da Câmara sob a chancela do deputador Arthur Lira, também um representante da Política do “é dando que se recebe.”. Ou seja, o Congresso Nacional continua a ser um dos bastiões do coronelismo no Brasil.

Dito isto, é de se perguntar: “há sinais de mudança a vista? Pouco provável que isso ocorra. O coronelismo na política é uma árvore de raízes profundas.


Como se sabe, o coronelismo é um fenômeno da política brasileira ocorrido durante a Primeira República. Caracteriza-se por uma pessoa, o coronel, que detinha o poder econômico e exercia o poder local por meio da violência e trocas de favores.

A palavra coronelismo é, na realidade, um abrasileiramento da patente de coronel da Guarda Nacional. O cargo era utilizado para denominar os cargos aos quais as elites locais poderiam ocupar dentro do escalão militar e social brasileiro.

Esse fenômeno teve início durante o Período Regencial (1831-1842). Como o Império do Brasil encontrava sem um Exército forte e centralizado, o governo apela para os dirigentes locais a fim de constituir milícias regionais e assim, combater as rebeliões que aconteciam no país.

Naquele momento, foram colocados à venda postos militares como o de tenente, capitão, major, tenente-coronel e coronel da Guarda Nacional.

Aos olhos da população local, ser coronel era equivalente a ter um título nobiliárquico e passou a legitimar muitas das ações dos chefes locais. Os coronéis podiam recrutar pessoas para compor a força militar do governo.

O fenômeno do poder do coronel foi tão presente que se confunde com outros termos relacionados, tais como mandonismo, clientelismo e, até feudalismo. Na América hispânica encontramos similitude com o caudilhismo.

Historinha do coronel Chico Heraclio, o último coronel do Nordeste: mandou na cidade do Limoeiro (PE), afirmando que as eleições em sua cidade “tinham que ser feitas por mim”. Heráclio era de que em dia de votação distribuía aos eleitores, em envelopes lacrados, as chapas de seus candidatos. Um mais afoito dirigiu-se a ele, depois de ter votado: “Fiz tudo certinho, coronel, como o senhor mandou. Agora me diga uma coisa: em quem eu votei?’”. A resposta veio rápido: “Nunca me pergunte uma coisa dessa. O voto é secreto, meu filho”.

Outro episódio engraçado: o do pênalti que o coronel mandou o juiz cobrar a favor de seu time, o Colombo. Foi em um jogo com um clube do Recife. O empate sem gols permanecia quando, a poucos minutos do fim, o árbitro marca a penalidade máxima para os visitantes. A confusão foi armada, sem que Chico Heráclio soubesse o que estava ocorrendo. Ao ouvir as razões do juiz, decidiu dar a razão a ele. Um assessor disse-lhe no ouvido que o Colombo perderia o jogo. Então o coronel ordenou: “cobra, sim, mas contra a outra barra”.

Os territórios controlados politicamente pelos coronéis eram denominados “currais eleitorais”. Neles, qualquer um que se negasse a votar no candidato apadrinhado pelo coronel poderia sofrer violência física e até morrer. Esse método ficou conhecido como o Voto de Cabresto.

Apesar de toda hegemonia durante a República Velha, o coronelismo perdeu espaço com a modernização dos centros urbanos, bem como pela ascensão de novos grupos sociais. Igualmente, a Revolução de 30, liderada por Getúlio Vargas, pois fim a esta maneira de fazer política.

Até hoje podemos verificar sua influência no Brasil ao perceber o domínio de uma mesma família em certas regiões brasileiras. Basta olhar para a cara do Congresso para constatar a força do neocolonialismo.

Basta ver também que o Congresso tender a jogar no baú do esquecimento, projetos de lei que contrariem os interesses de bancadas que jogam no tabuleiro do “toma-lá-dá-cá”. Há inúmeros projetos de reforma política que continuam no baú do esquecimento.

Haveria mecanismos para se fazer uma reforma em profundidade? Alguns fatores e variáveis são citados, dentre as quais a reforma política e eleitoral, o fim ou redução da reeleição cruzada, barreiras para que ex-governadores imediatamente disputem o Senado, ou senadores retornem à Câmara sem intervalo, cláusulas de barreira mais fortes, que dificultariam a proliferação de partidos usados como meras legendas de aluguel, sustentáculos dos coronéis locais; a adoção do voto distrital misto ou distrital puro, que poderia enfraquecer oligarquias estaduais, ao aproximar representantes de bases menores, porém sob risco de reforçar o poder de coronéis locais.

Na área da regulação da comunicação política, a medida mais adequada, segundo os especialistas, seria reduzir a concentração de concessões de rádio e TV em famílias políticas.

Eis o dilema central: coronelismo moderno é um sistema de poder que se adapta, quando se fecha uma porta, ele encontra outra.

Da mui antiga arte da desleitura

Uma das competências que as escolas e até as universidades deviam dar aos alunos que as frequentam seria a da leitura. Saber ler um texto é uma competência essencial, na vida.

Infelizmente, a maioria dos estudantes sai das escolas e muitos deles das universidades, com diploma em riste, evidenciando uma total incapacidade de interpretar correctamente um texto. Saber ler um texto serve a professores, médicos, juízes, engenheiros, enfermeiros, biólogos, astrónomos, informáticos, mecânicos, electricistas, empresários, serve, em suma, a toda a gente, nos mais diversos caminhos da vida.

Porém, quando lemos jornais, livros, comentários nas notórias redes sociais, pasmamos com a manifesta iliteracia da assim chamada geração mais qualificada de sempre. O mais grave é que tal iliteracia roça, muitas vezes, pela mais rotunda boçalidade. Muita desta gente que não sabe ler um texto muito claro mostra um total desrespeito por quem sabe, reagindo com os mais destemperados dislates, nos palcos mediáticos que lhes são oferecidos e que se tornam verdadeiros focos infeciosos de desinformação e de deseducação. O espectáculo é simplesmente assustador, mas nós lá vamos, cantando e rindo, exibindo uma aparatosa e cintilante estatística de diplomas e conquistas académicas. Cada um consola-se como pode e com o que tem…

Tenho tido uma vasta, triste e dolorosa experiência de assédio, às vezes ideológico, outras vezes, simplesmente inepto e grosseiro, outras vezes, ainda, as duas coisas ao mesmo tempo, sendo raríssima a cara lavada de um comentário minimamente asseado. Faz pena, porque é um retrato muito claro de uma suposta elite, o qual não augura nada de bom para o futuro do desenvolvimento deste país, no concerto das nações europeias. Reage-se a uma sátira, como se fosse um texto erudito, analisa-se um soneto como se fosse um ensaio ideológico, arrasa-se boçalmente um texto, do mesmo passo que se revela uma aflitiva ignorância do assunto que o texto glosa, enfim, uma paisagem de grosseria contentinha e de ignorância que se ignora. A desleitura é quem mais ordena. Mas há mais grave: a desleitura é, muitas vezes, enviesada e usada como torpe arma de difamação. Com uma total falta de escrúpulos, reveladora de que se trata provavelmente de executar uma “ordem de serviço” dimanada de algum departamento com uma missão a cumprir.

Tudo isto é muito mau, muito vil e muito feio.

Neste milieu cheio de miasmas, a elegância é quem menos ordena. Sem educação e sem educação cívica (que alguns pais rejeitam), a nossa sociedade evolui assintoticamente para um futuro paraíso de selvagens, como aquele que retratou o grande Melville numa das suas narrativas.
Eugénio Lisboa