quarta-feira, 8 de abril de 2020

Controle de danos

Jair Bolsonaro insiste em fazer da Presidência da República uma roleta-russa para os brasileiros. Sua família se acha dona do País e comanda o governo com baixos instintos: soberba, inveja, paranoia, ciúme, obsessão. Vieram para matar ou morrer. Sua última e tresloucada experiência de apertar o gatilho ao sabor do azar deu xabu, mas poderia ter resultado na dispensa do ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, em plena administração de uma pandemia letal.

Sabem todos o que se passou, passa e passará com a família governante. E do lado do bom senso, o que se passa? Não há ninguém parado. Pelo contrário, nunca a política e os políticos estiveram com tanto apetite e, ao mesmo tempo, tão prudentes. Não é hora de aparecer. No meio de uma guerra, sem conhecer a lista dos sobreviventes, movimentos radicais são exercícios perigosos.


O que se pode identificar é que há dois consensos atraindo a praça política, um deles consolidado e o segundo em construção discreta. Em pleno vigor, o primeiro tem sido denominado de “controle de danos”. Consiste em deixar Jair Bolsonaro falando sozinho, aplicando suas ideias como quiser, sem contestações, enquanto a Câmara, o Senado, o Supremo, a Economia, os ministérios, os órgãos de controle seguem governando. Tocam suas agendas ao mesmo tempo em que tentam consertar os absurdos que as instituições não conseguirem absorver.

Os militares são importantes nas tarefas de contenção. Já constataram que Bolsonaro é incompetente para exercer liderança num momento como este e já demonstraram que não o querem como seu ditador. Não temem a volta à planície até porque qualquer reviravolta, se houver, deixará seguro seu processo de resgate para a política, pois o vice é um dos seus. Mas tentam, por todos os meios, equilibrar o presidente e reduzir as consequências de seus atos.

Os mais influentes, todos ministros próximos ao presidente, são fortes e formam o chamado eixo Leste: Fernando Azevedo, ex-comandante do Leste (Rio); Luiz Eduardo Ramos, ex-comandante do Sudeste (São Paulo); Braga Netto, ex-comandante do Leste e ex-chefe do Estado-Maior do Exército, aquele que organiza tudo, do atual comandante Edson Pujol.

O eixo Leste é um eixo de poder que se contrapõe ao general Augusto Heleno, nos últimos tempos mais afeito ao pelotão dos incendiários.

Os governadores, também neste consenso, perceberam logo que o presidente da República está em campanha eleitoral e quer mesmo é desestabilizá-los. Tendo o enfrentamento da pandemia sob sua responsabilidade, apegaram-se aos ministros que funcionam para seguir seu caminho sem ter de dar satisfação a Bolsonaro.

Foi exatamente esta política de “controle de danos” que entrou em ação, na segunda-feira, para dissuadir o presidente de demitir o ministro da Saúde. Com sucesso, até terça, 7. Bolsonaro é imprevisível na sua marcha de dois passos para a frente e dois para trás.

O segundo consenso, também invisível, que a política está à procura e do qual são conhecidos apenas alguns sinais, é encontrar a forma de afastar Bolsonaro. Seja criando condições para a renúncia, seja pelo impeachment. Não são soluções imediatas. Prioridade, agora, é a vida, por um fio no Brasil e no mundo.

Entre os sinais emitidos, foi grave o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM), dizer com toda a clareza que o presidente não tem coragem de demitir um ministro, deixando a Bolsonaro a opção de se complicar, se demitir, ou parecer covarde, se não demitir.

Outro, igualmente grave, foi o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB) dizer que, se Bolsonaro perder as condições de governar, “o que se vai fazer, muda”. O DEM e o PSDB sabem como se faz, estiveram à frente dos dois impeachments presidenciais havidos no Brasil nas duas últimas décadas.

Como fazer cidadãos

Um bom leitor é o cidadão ideal de uma sociedade democrática: nunca se conforma com aquilo que tem, sempre quer mais e coisas diferentes das que lhe oferecem. Sem essas insubmissões o progresso verdadeiro seria impossível, aquele que, além de enriquecer a vida material, aumenta a liberdade e o leque de escolhas para ajustar a própria vida a nossos sonhos, desejos e ilusões. Karl Popper tinha razão: nunca estivemos melhor do que agora (nos países livres, entende-se)
Mario Vargas Llosa

Um governo de amadores

Jair Bolsonaro foi educado em quartéis. Como não se conhecem trabalhos de sua autoria sobre história do Brasil, matemática e balística, disciplinas de interesse dos militares, o mais perto que desempenhou de uma atividade científica pode ter sido esfregar cavalos. Isso não o impediu de, como presidente da República, dar palpite sobre o coronavírus, minimizando-o ("Uma gripezinha! Um resfriadinho!"), estimulando as pessoas a correr o risco de contraí-lo e jogando com a saúde da população.

A audácia de Bolsonaro ao desafiar a comunidade científica mundial, ofender os já milhares de mortos e tentar esvaziar o seu próprio ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta —que ele só não demitiu na segunda-feira porque foi peitado por gente ainda sã no governo— não tem equivalente nos anais.


Para piorar, seu estilo de governar, arrogante, despótico e indiferente às consequências, tem sido replicado por vários de seus auxiliares, não por coincidência também autorizados a pontificar sobre assuntos além das respectivas solas.

Com sua vocação para a chanchada, o ministro da Educação, Abraham Weintraub, por exemplo, criou um problema internacional com uma piada em que comparou os chineses ao Cebolinha. A secretária de Cultura, Regina Duarte, postou um vídeo falso em que o ministro da Saúde parecia autorizar o uso da cloroquina como um elixir mágico contra o vírus —o que Regina Duarte tem a ver com saúde? Em que ciência se basearam tantos ministros para pregar que só os maiores de 60 anos devem se confinar? E, nesse caso, quem autorizou o general Augusto Heleno, macróbio e portador do vírus, a desafiar as autoridades sanitárias e quebrar a quarentena que milhões de brasileiros prudentes estão cumprindo?

É um governo basicamente de amadores. Por isso essas pessoas foram escolhidas para integrá-lo. As exceções um dia se envergonharão de ter participado dele.

Emergência e democracia

Um mal-assombrado uso do poder nos dilacera: isolamento voluntário de todos ou solução final para a velhice. A esse delírio absurdo e não cristão soma-se a perda de contexto da missão fiscal na economia, deixando a cartilha liberal sem norte para fazer o que precisa.

Uma parada global sincronizada, um governo incapaz de estabilizar suas ações. A confusão alucinatória do presidente, fustigando sem pudor seu ministro da Saúde, estressa mais ainda o cenário e pode levar o Brasil a ser o maior perdedor entre os emergentes. Enquanto o palácio boicota a Nação, o povo ainda encontra temperança, seguro de que nenhum princípio humano ou ético é violado pelo Ministério da Saúde ou pelos governadores.

Itamar, maduro e experiente, custou-lhe tanto a acreditar no Real que o ministro da Fazenda virou o autor do plano, salvando o País da inflação. Jair, o verde, despreza tanto a doença que o ministro da Saúde é que vai salvar o País da infecção. Mandetta, a URV do coronavírus, é mais do que governo. Virou ministro da República.


Lançando sombras sobre o País, parte do governo parece mais agarrada à bolsa do que à vida, convicto de que saúde pública atrapalha a economia. Viúvas do mundo velho, não conseguem realizar o luto pela morte que o vírus impôs ao estilo de vida moderno. Stop. A vida parou, ou foi o presidente? Antifuturista, martirizado pela desinformação, finge governar.

A democracia é forte, mas não é um regime de força. Confunde quem trabalha com expectativa falsa e não consegue agir certo diante de dificuldades. Que governante se mantém à tona sugerindo que o bombeiro salve os móveis e deixe a família se queimar? Acreditar nele é como segurar água na mão. Com atrevimento diz sem pensar o que pensa. Está virando o nome do desastre. Schettino, Schettino, não abandone o navio na hora do naufrágio!

Não é difícil manter a democracia em situações de emergência. Mas que trauma leva o presidente a se identificar tanto com esse vírus a ponto de ter necessidade sádica de ridicularizá-lo, insultá-lo, desafiá-lo? Quem sabe o Centro de Inteligência do Exército de Agulhas Negras o alerte para o que dizem os modelos estratégicos de enfrentamento de populações abandonadas e em pânico. Não é em todas as situações que o homem escolhe sua saída.

Não é fácil conciliar democracia e emergência quando a situação exige mais cérebro e sentimento do que desejo e força. O método de convencimento democrático, pelo isolamento voluntário a pedido da autoridade sanitária, é o melhor para conter a doença. Ajuda, ainda, na preservação do tempo de esperança e solidariedade capaz de soerguer a sociedade depois da desgraça.
Para isso é preciso abandonar qualquer fraude no comportamento. O que houve no mundo foi mais do que uma parada repentina tirando a liquidez dos mercados. Diante da inadimplência geral, e vendo a riqueza sem movimento, a autoridade que não considera o PIB um conceito de fluxo, e não gosta do papel do Estado, sente-se catatônica.

A espiral negativa quando atinge o capital e o trabalho tem de ser amenizada prontamente pelo Estado, recalibrando sua relação com a base fiscal e monetária. O ultraliberal, não podendo ser dogmático, sente-se um insincero titular do poder. Não é burocracia, é a filosofia a razão da demora em estancar a infecção na economia.

É hora da união, de os estadistas de todos os setores afirmarem que é desaconselhável romper o isolamento e obrigatório o Tesouro impulsionar a salvação do País. Por que na emergência a economia se desmancha? Que país é esse que supõe que a vida humana vale menos do que dois meses de produção econômica? Se não há uma base existencial mínima de entendimento, fiquemos com a principal: se somos uma democracia, não precisamos usar a força.

Não é preciso abrir o embrulho para ver o que contém. O universo paralelo do presidente se desfez com a pandemia. Eleito pelo modelo mental virtual, por onde não passa nenhuma privação, ele se virava com retórica, sem ligar para autoridade. Agora o cálculo estratégico que opera, ao jogar com o vírus imaginando não quebrar a cara, parte da ideia de que o Brasil sofre, mas não morre. O ponto de equilíbrio surgirá quando as instituições democráticas o convencerem de que não há necessidade de o País todo sofrer, talvez ele, mantida sua prerrogativa de falar pelos cotovelos.

Há atletas a quem a camisa pesa. Outros, cansativos, acionam uma necessidade de atenção maior do que a que podemos dar. Imaginem estado de calamidade, tendo de suportar coexistência e hierarquia com um governo que se esfrangalha ali onde a fantasia se choca com a realidade.

O mundo intrapsíquico de quem vê a política como jogo trapaça-charlatão-sabichão não prevê desmoralização. Mas se diante do nada até a incompetência costuma ser aceita, quando há necessidade de comando e controle profissional não adianta falar mais alto. Concepções vagas de como governar no temporal podem não corroer os ossos da raiva. Mas berrar instruções para a morte é querer companhia para um plano de extinção pessoal.

Pensamento do Dia


Líderes do mundo todo pedem uma resposta conjunta contra o vírus - Carta ao G20

Dezenas de ex-chefes de Estado e de Governo, juntamente com destacados diplomatas, acadêmicos e outras figuras relevantes nas relações internacionais, exortam os Executivos do G20 a elaborar uma resposta conjunta ao gigantesco desafio sanitário e econômico representado pela pandemia em escala global. Diante do atual panorama de ações nacionais e das dificuldades de articular uma reação comum até mesmo em blocos homogêneos como a União Europeia, os signatários propõem propostas internacionais para superar o maior desafio global em décadas.

No campo sanitário, o manifesto propõe a convocação de uma conferência de doadores para, entre outras coisas, oferecer apoio financeiro aos países com os sistemas de saúde mais frágeis. No econômico, fortalecer a capitalização do Banco Mundial e outras instituições financeiras regionais, aumentar os fundos para agências da ONU que ajudam os menos favorecidos e perdoar o pagamento da dívida deste ano dos países mais pobres.

Entre os signatários estão o ex-presidente brasileiro Fernando Henrique Cardoso, o ex-secretário geral da ONU Ban Ki-moon, os ex-presidentes da Comissão Europeia José Manuel Barroso e Romano Prodi, os ex-presidentes do Governo espanhol Felipe González e José Luis Rodríguez Zapatero, os ex-primeiros-ministros britânicos Gordon Brown (um dos três primeiros a assinar o documento), Tony Blair e John Major, e uma série de personalidades da política e de outros setores. Leia a seguir a carta completa ao G20.

Manifesto para uma ação conjunta contra a pandemia

Escrevemos para pedir uma atuação imediata coordenada em nível internacional —nos próximos dias— para fazer frente às graves crises sanitárias e econômicas mundiais derivadas da Covid-19.

O comunicado da reunião extraordinária dos líderes do G20 em 19 de março reconheceu a gravidade e a urgência da crise de saúde pública e da crise econômica, mas agora precisamos de medidas imediatas e específicas sobre as quais possamos nos colocar de acordo imediatamente e na dimensão necessária: ajuda de emergência para as iniciativas mundiais de saúde empreendidas pela OMS e medidas de emergência para restabelecer a economia. Para as duas coisas é necessário que os líderes mundiais se comprometam a financiar quantias muito superiores à capacidade atual de nossas instituições internacionais.

Em 2008-2010, a crise econômica imediata pôde ser superada quando se abordou a linha de fratura econômica: a subcapitalização do sistema bancário mundial. Agora, no entanto, a emergência econômica não poderá ser resolvida enquanto não for resolvida a emergência sanitária; e a emergência sanitária não acabará apenas com a vitória sobre a doença em um país, e sim garantindo a recuperação da Covid-19 em todos os países.

Todos os sistemas de saúde —mesmo os mais avançados e mais bem financiados— estão cambaleando sob a pressão do vírus. Se não agirmos à medida que a doença se espalhe pelas cidades e pelos bairros mais pobres da África, Ásia e América Latina, com equipamentos mínimos de testes, poucos respiradores e material médico escasso, e nos quais é muito difícil implantar o distanciamento social e até mesmo a lavagem de mãos, o coronavírus persistirá nessas áreas e reaparecerá para atacar o resto do mundo em novas ondas que prolongarão a crise.

É necessário ajudar a OMS a coordenar a produção e a aquisição mundial de suprimentos médicos para atender à demanda mundial

Os líderes mundiais devem se colocar imediatamente de acordo para destinar 8 bilhões de dólares [42 bilhões de reais] —como previsto pelo Conselho de Monitoramento da Prontidão Global— para cobrir as lacunas mais urgentes na resposta contra a Covid-19. As quantias deverão ser:

Um bilhão de dólares [5,2 bilhões de reais] este ano para que a OMS possa desempenhar sua função, de importância crucial, em sua totalidade. Embora a OMS tenha feito um pedido público e 200.000 pessoas e organizações tenham feito uma generosa contribuição de mais de 100 milhões de dólares, não podemos depender exclusivamente das doações de caridade.

Três bilhões de dólares [15,6 bilhões de reais] para vacinas: a Coalizão de Inovações em Preparação para Epidemias (CEPI) está coordenando os esforços internacionais de pesquisa para desenvolver e produzir em massa vacina eficazes contra a Covid-19. A Aliança Global para Vacinas e Imunização (GAVI) terá um papel fundamental na aquisição e distribuição dessas vacinas, e necessita de 4,5 bilhões de dólares [23,5 bilhões de reais] para seu reabastecimento: será necessário buscar financiamento para estas e outras necessidades futuras.

Para terapias, 2,25 bilhões de dólares [11,7 bilhões de reais]; o acelerador terapêutico para a Covid-19 pretende distribuir 100 milhões de tratamentos até o final de 2020, e precisa de dinheiro para desenvolver e ampliar rapidamente o acesso a essas terapias.

Em vez de cada país —ou cada Estado ou província— competir por uma parte das reservas existentes, com o risco de um rápido aumento de preços, devemos aumentar a oferta, e para isso é necessário ajudar a OMS a coordenar a produção e a aquisição mundial de suprimentos médicos, como testes, equipamentos de proteção individual e tecnologia de telecomunicações, para atender à demanda mundial. Também será necessário reservar recursos para acumular e distribuir suprimentos essenciais.

Além disso, serão necessários outros 35 bilhões de dólares [182 bilhões de reais], como destacou a OMS, para ajudar países com sistemas de saúde mais fracos e populações especialmente vulneráveis; entre outras coisas, para fornecer suprimentos médicos essenciais, dar mais apoio às equipes nacionais de saúde e reforçar a resistência e a preparação de cada país. Segundo a OMS, quase 30% dos países não têm planos nacionais de resposta à Covid-19, e apenas metade dispõe de um programa nacional de prevenção e controle de infecções. Os sistemas de saúde nos países de renda mais baixa terão mais dificuldades, e as estimativas mais otimistas do Imperial College de Londres indicam que haverá cerca de 900.000 mortes na Ásia e 300.000 na África.

Propomos que seja convocada uma conferência mundial de doadores —com o apoio de um Grupo de Trabalho Executivo do G20— com o objetivo de alocar recursos para estas urgentes necessidades mundiais de saúde.

Os Governos nacionais têm trabalhado muito para combater o declínio de suas economias. Mas um problema econômico mundial exige uma resposta econômica mundial. Nosso propósito deve ser impedir que uma crise de liquidez se transforme em uma crise de solvência e que uma recessão mundial se transforme em uma depressão mundial. Para isso, é necessário coordenar melhor uma série de iniciativas fiscais, monetárias, de bancos centrais e antiprotecionistas. Os ambiciosos estímulos fiscais de alguns países serão mais eficazes se forem acompanhados por todos os outros países em condições de adotá-los.

Deveria ser dado, a um grupo mais amplo de bancos centrais, acesso a acordos de swap cambial; o FMI deveria assinar acordos de swap com os principais bancos centrais e utilizar esses recursos em moeda forte para oferecer ajuda financeira de emergência aos países emergentes e em desenvolvimento. Mas é vital que, para evitar demissões em massa, as garantias que forem oferecidas em cada país sejam imediatamente acompanhadas pelo apoio dos bancos locais às empresas e às pessoas.

As economias emergentes —e, em particular, as dos países mais pobres— precisam de uma ajuda especial, entre outras coisas para garantir que os recursos cheguem a todos os prejudicados pela drástica queda da atividade econômica. O FMI disse que vai mobilizar todos os seus recursos. Tem uma capacidade de empréstimo de 1,2 trilhão de dólares [6,26 trilhões de reais] e a possibilidade de destinar imediatamente 600 bilhões de dólares [3,13 bilhões de reais]. Além disso, deveria haver uma atribuição adicional de 500 bilhões a 1 trilhão de dólares [de 2,6 a 5,2 trilhões de reais] na forma de Direitos Especiais de Saque [SDR, na sigla em inglês]. Ao mesmo tempo, para garantir que cada país tenha financiamento suficiente, incentivamos os membros do FMI a permitir que sejam excedidos os limites da cota de empréstimo nos países mais necessitados.

O Banco Mundial e muitos bancos regionais de desenvolvimento se recapitalizaram recentemente, mas será necessário injetar mais dinheiro. O Banco Mundial pode aumentar a ajuda da Associação Internacional de Desenvolvimento (AID) aos países mais pobres até aproximadamente 25 bilhões de dólares [130 bilhões de reais] anuais e elevar a ajuda do Banco Internacional de Reconstrução e Desenvolvimento (BIRD) aos países de renda média de 25 bilhões a 35 bilhões de dólares anuais sem deixar de cumprir seu teto de empréstimo. Mas é provável que, como ocorreu em 2009, quando só o gasto do BIRD passou de 16 bilhões para 46 bilhões de dólares, seja necessário ampliar muito mais os recursos disponíveis, para ele e para os bancos regionais de desenvolvimento.

Para poder exercer suas responsabilidades de ajuda humanitária e para atender aos refugiados e às pessoas deslocadas, cuja situação tem muitas probabilidades de se tornar desesperadora, os organismos da ONU fizeram nesta própria semana um apelo para arrecadar 2 bilhões de dólares [10,4 bilhões de reais].

A comunidade internacional deveria perdoar este ano os pagamentos da dívida dos países à AID, incluindo os 44 bilhões de dólares [230 bilhões de reais] devidos pela África, e pensar em um alívio da dívida no futuro.

Estamos de acordo com os líderes africanos e dos países em desenvolvimento em que, dada a ameaça existencial que se abate sobre suas economias, o golpe cada vez maior que vão sofrer seu trabalho e sua educação e sua limitada capacidade de proteger as pessoas e as empresas, serão necessários pelo menos 150 bilhões de dólares [783 bilhões de reais] para criar redes de proteção sanitária e social e outras ajudas urgentes.

Estas alocações de dinheiro devem ser aprovadas imediatamente, colocadas em andamento sob a coordenação de um Grupo de Trabalho Executivo do G20 dentro do Plano de Ação do G20 e confirmadas integralmente nas próximas reuniões do FMI e o Banco Mundial. As duas instituições econômicas principais devem receber garantias de que serão feitas mais contribuições econômicas bilaterais e de que haverá acordo sobre a necessidade de novas injeções de capital.

A solução a longo prazo consistirá em repensar radicalmente a saúde pública mundial e reformular —com os recursos necessários— a arquitetura sanitária e financeira global. A ONU, o G20 e as partes interessadas devem trabalhar em conjunto para coordenar as ações posteriores

Gordon Brown foi primeiro-ministro do Reino Unido, é enviado especial da ONU para a Educação Mundial; Erik Belglöf foi economista-chefe do Banco Europeu de Reconstrução e Desenvolvimento, é professor e diretor do Instituto de Assuntos Mundiais da Escola de Economia e Ciências Políticas de Londres; Jeremy Farrar é diretor da Wellcome Trust.
Pode-se consultar aqui todos os signatáriios

Não há lucro com perda$

Quando a impunidade é permitida, quem a permite perde o direito de falar sobre o que é justo e injusto. Se o Ocidente se deixa guiar somente pelos lucros e os interesses, será bem merecido quando sofrer perdas
Ai Weiwei

O vírus da inveja

Foi o anticlímax. Esperou-se o dia todo pelo desfecho. Não se falava em outra coisa. No domingo, o presidente anunciara que integrantes de seu governo “viraram estrelas” e que “a hora deles ia chegar”.

E avisava: “Não tenho medo de usar a caneta”. Não citou Luiz Henrique Mandetta — até porque não precisava.

Dizia-se que ele estava atrás de um técnico capaz de defender a hidroxicloroquina contra o coronavírus. O capitão cismou que tem como acabar com o vírus, mesmo que sua receita não seja aprovada pela OMS. Apela até para jejum e orações. O próprio ministro da Saúde acreditava que sua vez chegara. Suas gavetas foram esvaziadas.


O que impediu a execução? Uma incrível frente de defesa de um ministro formou-se então, reunindo os presidentes do Supremo Tribunal Federal, Dias Toffoli, da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, e do Senado, Davi Alcolumbre, numa espécie de “Fica, Mandetta”.

Isso sem falar no apoio popular, revelado no sábado pela pesquisa do Datafolha: 76% dos brasileiros consideravam o desempenho do ministro da Saúde ótimo ou bom, enquanto 51% consideram que o presidente mais atrapalha do que ajuda.

Provavelmente está aí a resposta à pergunta: por que Bolsonaro não se conforma com o sucesso de Mandetta?

Sou suspeito, vocês verão logo, mas eu atribuo à inveja. Em mensagem ao jornal, Guita Zach discorda, citando o meu livro “Mal secreto”, que diz sobre os pecados capitais que só a inveja se esconde”. Que Zuenir me desculpe (...) A inveja que Bolsonaro tem do equilibrado ministro da Saúde é tão escancarada que não tem pejo de se ocultar”.

Mas o capitão jamais admitirá que sente de seu subordinado inveja (que é não querer que o outro tenha, no caso, o sucesso) ou ciúme ( que é querer não perder o que se tem). Ele tenta fazer crer que sua antipatia se deve ao que classifica como “falta de humildade” do outro.

Durante mais de um ano, entrevistei psicanalistas, padres confessores, mães de santo, e concluí que a inveja é um vírus, uma espécie de Covid-19, cuja melhor definição encontrei num adesivo de caminhão: “A inveja é uma merda”.

Mandetta fraqueja e o inimigo avança

Cuide-se Luiz Henrique Mandetta para que ao deixar o Ministério da Saúde possa, de fato, levar intacta a reputação do bom administrador que resistiu a todas as pressões e preferiu salvar vidas a satisfazer as vontades do Excelentíssimo Senhor Presidente da República, interessado em salvar a Economia.

Amigos de Mandetta estão preocupados com dois passos em falso que ele deu nas últimas 48 horas quando escapou por pouco da degola. O primeiro: abrandou sua posição quanto às medidas restritivas impostas pelos governadores de Estados e, de resto, adotadas em quase todos os países do mundo.

O segundo passo: se antes condenava com veemência a prescrição da droga Cloroquina para casos de coronavírus, Mandetta passou a admitir o seu uso a critério de cada médico. Não há fundamentos científicos que sustentem os efeitos reparadores do remédio para infectados pelo vírus. Mas Bolsonaro quer a sua liberação.


Tem a ver com Donald Trump. Um dos donos do laboratório que fabrica a Cloroquina foi um dos maiores doadores de dinheiro para sua campanha. O Centro de Prevenção e Controle de Doenças dos Estados Unidos removeu de seu website orientações altamente incomuns que sugeriam o uso da droga contra o vírus.

Bolsonaro caiu na lábia do representante do laboratório no Brasil e, para agradar Trump, virou um lobista do remédio. Tentou obter o consentimento de Mandetta para o uso em massa da Cloroquina. O ministro negou. Mas em troca, para não parecer tão intransigente, Mandetta baixou o tom do que vinha dizendo.

Baixou também o tom a respeito do confinamento social. Disse que técnicos do Ministério da Saúde estudam a “transição para o distanciamento social seletivo”. Logo agora que o distanciamento social obrigatório vai sendo relaxado em várias partes do país à revelia ou não de governadores e de prefeitos.

E pensar que o pior ainda nem passou. Que o pior ainda nem chegou. O pico da pandemia deverá acontecer na última semana deste mês e na primeira de maio. E só depois de um período cuja extensão ninguém se arrisca a calcular, o número de casos de mortes por coronavírus começará a diminuir lentamente.

O Amazonas é o primeiro Estado onde o sistema médico entrou em colapso. Ali, onde já morreram 23 pessoas, o número de infectados subiu em um dia de 532 para 636. Já passa de 95% a taxa de ocupação dos leitos disponíveis nos 4 principais hospitais públicos de Manaus. O Secretário de Saúde deverá pedir demissão hoje.

No Rio, é de 25% o índice dos profissionais de saúde da rede pública infectados pelo vírus – superior ao da Espanha e de Portugal (20%) e maior que o da Itália (15%). Em São Paulo, 3.346 profissionais da rede pública e privada de saúde foram afastados por doenças diversas – 737 deles vítimas do Covid-19.

Se respeitadas as restrições baixadas pelo governo de São Paulo, estima-se que o número de mortos pelo vírus ao cabo dos próximos 180 dias ultrapasse a casa dos 110 mil. Foram 371 até ontem. Na guerra contra o Paraguai, que se estendeu de dezembro de 1864 a março de 1870, o Brasil perdeu cerca de 50 mil homens.

O inimigo desta vez é muito mais poderoso, além de invisível, além de rápido no gatilho. E ainda não foi descoberta uma arma capaz de matá-lo. Ou de mantê-lo à distância.

A necessidade de mudar o mundo

O senso de urgência em relação à pandemia teve um avanço no mundo ontem. A carta assinada por 165 personalidades globais, que pede ação imediata e conjunta ao G20 e um apoio bilionário aos países mais frágeis, fortalece a ideia do multilateralismo que estava abandonada. Elas querem ajuda aos países em desenvolvimento e apoio à Organização Mundial de Saúde (OMC). O risco de não agir é a volta, em novas ondas, da mesma pandemia. Nesse cenário, a recessão econômica se transforma em depressão. A iniciativa é do ex-primeiro-ministro britânico Gordon Brown e tem entre os signatários 92 ex-presidentes ou ex-primeiros-ministros.

Entre eles estão Tony Blair, da Inglaterra, Gro Brundtland, da Noruega, Fernando Henrique Cardoso, do Brasil, Óscar Arias, da Costa Rica, Felipe González, da Espanha, Ban Ki-moon, da ONU, José Manoel de Barros, de Portugal, entre inúmeros outros. Eles alertam para os riscos que recaem sobre todos os países, especialmente os mais vulneráveis.


Todos os sistemas de saúde, mesmo os mais sofisticados e mais bem financiados, estão se vergando sob a pressão do vírus, dizem os líderes. A carta aberta alerta que, se nada for feito em tempo, em cidades e comunidades frágeis da África, Ásia e América Latina que não têm acesso a estruturas de suprimentos e médicos adequados e onde o distanciamento social não é possível - até mesmo lavar as mãos é difícil - a Covid-19 persistirá e reemergirá para atingir o resto do mundo em novas rodadas da pandemia que prolongará a crise global.

Eles fazem pedidos específicos para determinadas áreas: US$ 8 bilhões para acelerar o esforço global de vacinas, US$ 35 bilhões para apoiar os sistemas de saúde e fabricação de ventiladores e kits de testes e sistemas de proteção para profissionais da área médica. Outros US$ 150 bilhões para os países em desenvolvimento combaterem as crises de saúde e econômica, e para evitar a ressurgência da doença e o aprofundamento da recessão. E a suspensão da dívida externa dos países pobres.

Um ponto importante da carta aberta dos 165 ex-governantes de vários países do mundo e líderes da área econômica é o alerta de que, em vez de cada país disputar a atual capacidade de produção de equipamentos, que se apoie a Organização Mundial de Saúde e ajam de forma coordenada para elevar a oferta desses equipamentos. Segundo eles, quase 30% dos países não têm capacidade nacional de resposta. Isso pode levar a um milhão e duzentas mil mortes na Ásia e África. Propõem também a convocação de uma “conferência global do comprometimento” do G20.

A carta detalha a destinação de parte dos recursos. A OMS precisa urgentemente de US$ 1 bilhão. Outros US$ 3 bilhões serão destinados à pesquisa e ao desenvolvimento de vacinas. Os esforços de P&D estão sendo coordenados pela Coalizão para Inovações para Prontidão em Epidemias. As vacinas, uma vez desenvolvidas, deverão ser distribuídas de forma equitativa para os países mais pobres e isso vai requerer, para compra e distribuição, US$ 7,4 bilhões que devem ser integralmente financiados.

Aqui no Brasil, o governo começou finalmente ontem a entregar algumas ações que vinham sendo anunciadas nos últimos dias. Houve a apresentação do calendário e da logística para o pagamento do auxílio emergencial aos mais necessitados. O secretário do Tesouro, Mansueto Almeida, anunciou que os recursos foram transferidos ontem para o BNDES, para que sejam emprestados a pequenas e médias empresas e elas consigam pagar os salários. No Congresso, o deputado Rodrigo Maia lembrou o quanto o mundo mudou. O plano Mansueto, que era para ajustar as contas dos estados, não deve ser votado agora. Os estados perderam já 30% de arrecadação do ICMS. O mais importante, alerta, é que seja votado um projeto que faça os recursos chegarem mais rapidamente na ponta.

A fórmula para tirar do papel o auxílio emergencial foi resultado do esforço conjunto da máquina pública. Poucos meses atrás, a Dataprev foi colocada no programa de privatização. Nas reviravoltas que o mundo tem dado, ontem a Dataprev estava jogando um papel central para resolver o dilema de como levar o dinheiro até os pobres.

Na carta dos líderes globais, o que eles lembram é que o mundo é um só. Caso os países pobres sejam abandonados à sua própria sorte, a doença voltará em novas ondas. O planeta precisa resgatar velhos conceitos.

Pandemia do coronavírus é a hora da verdade para o novo capitalismo

Tente se esquecer do coronavírus e olhar para trás. Para 24 de junho de 2019. Nesse dia, o The New York Times publicou uma carta assinada por bilionários como George Soros, Chris Hughes (um dos fundadores do Facebook) e muitos outros pedindo um imposto (moderado) à riqueza. Larry Fink, o diretor da BlackRock e teoricamente o homem mais poderoso do mercado, há dois anos fala que as corporações devem pensar não só nos acionistas, e sim “nos funcionários, nos clientes e nas comunidades em que operam”. Milhares de empresas ficaram desde então repetindo que conseguir valor ao acionista não é seu único objetivo. Pois bem, chegou a hora da verdade. A resposta a essa crise será diferente da de 2008? As empresas se lembrarão, dentro de sua margem de ação, desses “grupos de interesse”?

Evidentemente, os acionistas lembraram. Neste mês, com o alarme sanitário ligado, as empresas cotizadas continuaram pagando dividendos e aceleraram a compra de ações para carteira própria aproveitando a queda do mercado com dois objetivos: conseguir importantes descontos sobre seus próprios títulos para, quando o mercado se recuperar, poder colocá-los a preços maiores e obter lucros e, em segundo lugar, evitar que os acionistas se vejam tão prejudicados pela queda, ainda que esse último é praticamente impossível pelas circunstâncias. A exceção foi a espanhola Inditex, controladora da Zara, na quarta-feira, quando decidiu pela primeira vez em sua história que congelaria esse pagamento até que a situação comece a se normalizar.


Do lado do emprego, a reação também foi imediata. Ainda que o dado exato só será conhecido quando os números de março forem publicados, muitas empresas começaram a rescindir contratos temporários. Uma minoria, a que não pode colocar seus funcionários em teletrabalho e precisa paralisar a atividade, optou por dar férias aos trabalhadores, mas isso não foi de maneira nenhuma a regra. Na Espanha contabilizam-se dezenas de milhares de solicitações de suspensão de empregos temporários. A ordem foi cortar gasto fixo imediatamente, quando as previsões ainda falavam que a interrupção de atividade seria de somente duas semanas. No Brasil, os sinais não são distintos.

Nesse desastre sanitário e social, os planos estratégicos das empresas também foram mudando durante o caminho. A terceira coisa que aconteceu foi uma onda de profit warning (alerta de cortes das previsões) que passou pelas Bolsas. A Apple, Microsoft, Danone, Mastercard, Barclays, BMW... As empresas de restauração sofrem como nunca. O grupo francês Sodexo, um dos maiores do mundo, alertou que o vírus pode custar-lhe 2 bilhões de euros (10 bilhões de reais) em vendas e deixou no ar seus prognósticos para este ano. As têxteis também. O proprietário da Primark, a Associated British Foods, prevê uma gigantesca queda de vendas após fechar 20% de seu espaço comercial (todas as lojas na Itália, França, Espanha e outros países), de acordo com o The Guardian. Os anúncios se sucederam na Espanha. O Caixabank, Inditex, Meliá, Merlin Properties, Amper, Adolfo Domínguez… A lista é tão longa como as filas nos supermercados, e os problemas descritos, parecidos. O que diferencia as empresas é o otimismo.

O Caixabank falou que será uma recessão “curta e severa”. O famoso V: uma queda brusca da atividade e uma recuperação igualmente rápida. Um dia antes, analistas da BlackRock diziam que, ainda que os movimentos do mercado lembrem 2008, isso não será uma repetição: “As rígidas políticas de contenção e distanciamento social farão com que a atividade caia quase a um ponto morto, mas se forem tomadas medidas agressivas de política fiscal e monetária para salvar as empresas e os lares, a atividade deve retornar rapidamente com escasso dano econômico permanente”. Algumas empresas somente falam que têm atrasos, mas não significativos, que farão seu faturamento cair e que enquanto as fronteiras não se fecharem ao trânsito de mercadoria, tudo está relativamente controlado.
Mudança de atitude

De qualquer modo, os economistas e especialistas consultados acreditam que sem uma mudança de atitude de toda a sociedade (e rápido) a recessão será dramática. “Sêneca dizia que a adversidade é ocasião de virtude. As crises fazem com que você demonstre quem é, o que prioriza. Essa irá demonstrar quem estava comprometido”, diz Pascual Berrone, professor de direção estratégia no IESE. As Comissões Operárias e a UGT (União Geral dos Trabalhadores) espanholas pedem que as medidas de flexibilidade interna que o Governo colocou à disposição das empresas estejam ligadas à proibição de utilizar outros mecanismos de ajuste, como demissões e não renovação de contratos temporários.

Sem ir tão longe, Alfred Vernis, do departamento de direção geral e estratégia da Esade, pensa que isso não deve terminar desembocando no conhecido business as usual. “Ou reinventamos as empresas e os sistemas produtivos, ou... [silêncio] esse é um bom momento para inovar, mas tenho minhas dúvidas de que as empresas entenderão”. As mesmas empresas que durante os últimos anos pediam diminuições de impostos (também as pequenas) olham agora ao Estado precisando de soluções urgentes. “Certo capitalismo dizia que o setor público é improdutivo. Mas um setor público forte que apoie políticas para evitar que os trabalhadores terminem desempregados, algo que parece de esquerda, e não é, é de todas as vertentes políticas. As empresas multinacionais não podem ficar sem pagar os impostos que devem”. Vernis fala da economia maravilhada no passado por empresas emergentes, que ficarão indefesas quando a maré baixar. “As Glovo, Uber, Airbnb... não fazem nenhum sentido. Serão efêmeras”. Enrique González, professor de Economia no Icade, afirma que o modelo de ganhar dinheiro sem levar em consideração o restante pode ter os dias contados. “O próprio sistema é questionado... As empresas não se aproveitam à toa das circunstâncias. Devem ter cuidado porque nos tempos atuais os erros têm um custo grande. A visão a curto prazo que pode favorecer o acionista e o executivo serve hoje e caduca amanhã. O acionista não deve ficar desprotegido, assim como as outras pessoas envolvidas”.

Algumas empresas estarão dispostas a utilizar lucros retidos para pagar salários e não despedir ninguém, calcula Pascual Berrone, e outras não. “Fazendo uma analogia com a doença, isso seria como o paracetamol. Depois, dependendo de quanto durar, haverá a necessidade de respiradores e ocorrerão situações em que muitas empresas realmente desaparecerão. Por isso é tão necessário que as políticas sejam coordenadas”.

O diretor de desenvolvimento corporativo da Forética, Jaime Silos, lembra que nessa queda global do mercado as empresas mais sustentáveis da Europa “caíram 5% abaixo de seus índices de referência”. Talvez tenha razão, mas exemplos recentes de práticas anticompetitivas, desde o escândalo das emissões da Volkswagen aos mais recentes casos de corrupção e irregularidade em empresas, não mereceram grandes críticas por parte dos consumidores e dos acionistas.

Agora será diferente? Ramón Pueyo, sócio responsável de sustentabilidade e governança da KPMG, acredita que “a sociedade tem memória” e que lembrará das empresas que ajudaram. “Vivemos um momento sem comparação, é como se a atividade econômica se espatifasse contra um muro. Ocorrerão casos de patriotismo empresarial, da mesma forma que aconteceu após o crash de 1929 e após a Segunda Guerra Mundial”.

Sem voltar tanto no tempo, Gayle Allard, professora de economia da IE University, lembra que 2008 foi uma excelente oportunidade para aprender. Cruza os dedos para que o mundo a aproveite. “Se a responsabilidade social corporativa realmente nos importa, é preciso defender o trabalhador. Se as pessoas não forem demitidas, com medidas para trabalhar menos horas e ganhar menos, mas mantendo o emprego, quando isso acabar, as empresas continuarão contando com trabalhadores com experiência e, além disso, estes terão certa lealdade às empresas”. Pede a mesma coisa aos autônomos. “É preciso fazer o mesmo que a Alemanha”.

É uma pena que as duas economias, a espanhola e a alemã, tenham tanta semelhança como um ovo e uma castanha. Marcel Jansen, da Fedea, diz que pelo menos agora as decisões são rápidas e contundentes. Alguma coisa foi aprendida. “A mensagem de ontem [terça-feira] de Sánchez sobre fazer ‘o que for preciso’ veio acompanhada de um pedido de responsabilidade social. Se vamos irrigar a economia com 200 bilhões de euros (1,08 trilhão de reais), as empresas não terão argumentos para realizar ajustes duros. Pelo menos até que a situação econômica e a duração da crise não tenham sido esclarecidas”.

Significa caminhar juntos e dividir as perdas. “Se a parada for breve, as empresas devem liberar recursos não pagando dividendos, mantendo a relação com os trabalhadores, que por sua vez deverão se comprometer a compensar as empresas no restante do ano. Todos precisamos contribuir para evitar uma crise duradoura”, afirma Jansen.

Seis meses depois da queda do Lehman Brothers, a Espanha perdeu 1,3 milhão de postos de trabalho. Desde então, diz o porta-voz da Fedea, não se resolveu a dualidade trabalhista (contratos muito frágeis contra outros com ampla proteção), o país também não criou uma reserva fiscal para enfrentar novas recessões. “Isso significa que a Espanha, unilateralmente, pode não ser capaz de desenvolver medidas sem cobertura europeia. Passamos anos com uma política fiscal irresponsável, mantendo diminuições de impostos com 14% de desemprego, e uma relação dívida/PIB que se aproxima de 100%”. Francisco Román, presidente da Fundação Seres, lembra por e-mail que “a força das empresas se materializa na solidez das comunidades das que fazem parte”. Demonstrar essa solidez como sociedade é o que o país precisa para seguir em frente com os menores danos possíveis.