terça-feira, 8 de junho de 2021

Sensação de vitória de Bolsonaro no caso Pazuello é só sensação. Alerta disparou

Foram dois movimentos paralelos, mas têm tudo a ver e acendem a luz amarela em gabinetes e consciências neste país: a decisão do comandante do Exército, que jogou no lixo os princípios basilares das Forças Armadas para agradar ao presidente Jair Bolsonaro, e o ataque também covarde da polícia pernambucana a manifestantes pacíficos, para testar limites da nossa democracia.

Tudo está dominado e é indefensável que oficiais e policiais se calem em nome da disciplina e da hierarquia. O capitão insubordinado e suas tropas podem implodir esses princípios à vontade, porque os que teriam de garanti-los alegam que “têm de respeitar a hierarquia”.

Ele se lixa para os protocolos das três Forças, como já fazia há mais de 30 anos, na ativa, mas os que prezam a farda e estão indignados, estupefatos, adotam a mesma postura que criticam do comandante Paulo Sérgio: condenam, mas aos sussurros, no conforto dos seus lares.


Bem fizeram os generais Fernando Azevedo e Silva e Edson Pujol, o almirante Ilques Barbosa e o brigadeiro Antônio Carlos Bermudes, ao comandar as Forças Armadas como instituições de Estado, não de governos que vêm e vão. Eles tinham um limite e caíram por saber de que lado da história ficar. Agora, precisam agir e falar.

Devem estar se remoendo diante da decisão de Paulo Sérgio, com aval do Alto Comando, de deixar para lá a grave insubordinação de Pazuello, que passou por cima do Estatuto Militar e do Regimento Disciplinar do Exército para se aboletar num trio elétrico da campanha pré-eleitoral de Bolsonaro. Nem uma mísera advertência?

A desculpa de Pazuello é que não era ato político. Não?! Então, era o quê?! Ele, deliberadamente, fez o comandante e o Alto Comando de bobos. E só fez isso, e deve ter dado gargalhadas ao fazê-lo, porque tinha costas quentes. “O que manda” engoliu “os que obedecem”, de véspera, na Amazônia. Instalou-se a anarquia, é só aguardar as eleições de 2022 para ver.

Ao pularem no barco de Bolsonaro em 2018, os militares achavam que teriam a bússola e o manche. Ledo engano. O capitão encheu o Planalto de generais e o governo de variadas patentes, mas subjugou todos eles. “Quem manda sou eu”, repete, enquanto dá medalha para o dócil comandante do Exército e um gordo aumento para “seus generais”, em meio à pandemia e ao desemprego feroz.

Não se ouve nenhum oficial-general das três Forças capaz de defender a impunidade absurda de Pazuello, mas, aparentemente, empurraram para dois civis, os ex-ministros da Defesa Raul Jungmann e Aldo Rebelo, o papel de porta-vozes do descontentamento. Entre corajosas exceções, mais uma vez, o general Santos Cruz.

Como satisfação, ou tentativa de acalmar os ânimos, oficiais sérios e com senso de responsabilidade informam que a sensação de vitória de Bolsonaro no episódio é só isso mesmo, uma sensação. Segundo eles, o presidente alimentou a cizânia, aprofundou a divisão e disparou o sinal de alerta. Onde ele quer chegar? Quer fazer as Forças Armadas de marionetes?

Essas questões se tornam ainda mais inquietantes com o comandante da PM do DF usando o slogan eleitoral de Bolsonaro (“Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”), e vai-se desenrolando o fio que permitiu que a polícia de Pernambuco cegasse dois civis indefesos num protesto pacífico.

As outras duas pontas já estão desencapadas: o vínculo comprovado com as milícias e a obsessão de armar e ampliar a munição de civis.

Se Bolsonaro perder a reeleição e um bando de alucinados invadir o Congresso e o Supremo, o que fará a PM? E como reagirão as Forças Armadas? Esse risco é tão óbvio que só não vê quem não quer. O Exército não quer ver? E a Marinha? E a Aeronáutica? Todos vão tapar olhos, ouvidos e bocas, esperando o carnaval chegar?

A superação dos generais

O Exército não puniu Pazuello. Qual a surpresa? O governo é militar. Surpreendente seria se punisse o que lhe dá dentes para intimidar inimigos. O governo é militar, e é Bolsonaro, indistinta e personalissimamente, o que ladra. Surpreendente seria punir-se com a banguelice.

O governo é militar e é daquele que ergueu bem-sucedida empresa familiar nas bordas do Estado. O governo é militar e é de patriotas como general Braga Netto, ministro da Defesa, cujo salário — sob regra editada pelo mito — aumentou 58% e para mui além do teto remuneratório constitucional. O governo é militar e é do capitão, o velho líder corporativista fã de Hugo Chávez. Não cortará na própria carne — e isso não se aplica somente a privilégios de contracheque.


O governo é militar. E o Exército está pazuellizado: submetido à dissolução de sua essência impessoal, degradada a natureza de instituição de Estado, a serviço incondicional do governante de turno e independentemente do que limita a Constituição. Um manda, o outro obedece — qualquer que seja a ordem, depauperado também, confundido com falta de vergonha, o senso de hierarquia. O governo é militar, e o Exército vai bem alimentado.

O governo é militar e a pazuellização do Exército, fato consumado. Pazuello fez a aposta correta. Acreditou na acomodação, em que nem sequer seria advertido, e saiu premiado, com cargo no governo. Saiu mais que premiado, encarnando uma espécie de habeas corpus preventivo, extensivo a todos os militares: pode tudo, rapaziada.

Pôde tudo, anos atrás, o vice Mourão: general punido de mentirinha por discursos agitadores, deslocado — sob os holofotes que lhe dariam existência pública — a uma função burocrática desde a qual encontrou as condições ideais para sua escalada à política.

Não há mais fronteira entre Planalto e Exército. No Ministério da Saúde ou sobre o palanque, Pazuello servia — obedecia — a Bolsonaro, um chefe supremo das Forças Armadas cuja ascendência sobre as tropas já não deriva da Carta, mas da lógica personalista que fundamenta as relações entre o cabeça miliciano e seus homens.

O governo é militar. Militar e golpista. E não chegou a 2021 sem que a estrada fosse pavimentada por badaladíssimos quatro estrelas da moderação. Em 2018, o então comandante do Exército, dito moderado, foi a uma rede social para emboscar o Supremo. Era o general Villas Bôas, padrinho do Bolsonaro presidente e patrono da multiplicação dos generais Ramos — aquele para quem Pazuello, general da ativa, subiu ao carro de som como civil, aquele mesmo Ramos que, diante da série de atos antidemocráticos com a presença do presidente, compareceu “só no da rampa”. (Ramos, outro fura-teto: 69% de aumento salarial.)

Foi de rampeiro em rampeiro que chegamos até aqui. E não sem covardes. Os códigos militares são diretos: a participação do ex-ministro general na manifestação bolsonarista infringiu as regras. O Exército tinha a mais fácil desculpa para repreendê-lo: a clareza dos estatutos. Optou, porém, pela submissão. Ou melhor: teria optado, se não estivesse submisso havia muito. No último 27 de maio, o comandante da Força, Paulo Sérgio Nogueira, aceitou viajar com Bolsonaro ao Amazonas para inaugurar uma ponte erguida pela engenharia militar — isso à véspera de ter de decidir sobre Pazuello. Lá, previsivelmente, ouviu o presidente declarar que “somos todos seres políticos”, generais inclusive, e que caberia aos fardados decidir “como o povo viverá”.

Fala-se que teria recebido diretamente de Bolsonaro uma carga para que não penalizasse Pazuello. Não penalizou.

Na semana passada, circulou a versão de que o comandante do Exército assim agira sob cálculo. Temeria que a punição causasse um conflito entre a cúpula do Exército e o presidente; caso em que haveria o risco de Bolsonaro lhe sustar a decisão, o que o obrigaria a renunciar, abrindo terreno para que um bolsonarista chegasse ao comando. Uma conta que não fecha, senão para fantasiar a existência de algum brio militar no episódio. Ora! Desde quando Bolsonaro precisa de um bolsonarista — um explícito — na liderança da Força para ter o Exército a seu absoluto dispor?

Está muito bom com Nogueira mesmo, cujo caminho tomado — ainda que tivesse a intenção de evitar uma crise institucional — resultaria, como resultou, em algo muito mais grave: na mensagem de vale-tudo transmitida ao guarda da esquina.

Em português castiço: para o inferno o eventual choque entre cúpula do Exército e Bolsonaro. Ao comandante, só caberia aplicar o regulamento e disciplinar a tropa. Seu papel. Esse universo corrompido em que o comando da Força tem de fazer ponderação política só existe porque os generais escolheram se misturar, até a indistinção, ao governo de turno.

Aí está. Para que os sócios — parceiros fiéis neste projeto autoritário de poder — não se estranhassem pontualmente por cima, difundiu-se um salvo-conduto imprevisível para baixo, um convite ao estado de amotinamento; o que representaria a superação desta etapa de pazuellização para o estabelecimento de um Exército afinal bolsonarizado, em que todo militar, de qualquer grau, estaria autorizado, estimulado, a se comportar como Bolsonaro quando na Força: malandro, desagregador, conspirador, com planos atentatórios. É o que ele quer. O Exército como milícia. Status em que — fica a dica — não seriam necessários generais.

Brasil entra em campo

 


Delírios e arrogância

Semana passada foi agitada. Entre algumas reviravoltas, houve outro panelaço. Tornou-se uma tradição da pandemia: sempre que o presidente zurra na TV, utensílios domésticos dobram função como pandeiro. Além do lucro potencial dos consertos e da catarse de parte da população, pergunto-me qual seria o resultado deste ato. Protestar é um direito e uma necessidade, porém gritar para o vazio é estupidez. Com isto em mente, lancei minha questão ao juizado do grande irmão: as redes sociais. Para minha surpresa, recebi uma quantidade razoável de respostas. Surpreendi-me não pelo conteúdo, mas porque raramente parece que alguém se interessa por algo que publique nestes perfis interativos. Os comentários, como esperado, trouxeram mais questionamentos. Houve desde “não” enfáticos, incluindo a admissão do desopilamento de participantes, a outros que pediam para mudar ou não tocar neste assunto. Também teve menções ao fato de que era uma forma de engajamento, enquanto muitos preferem se manter afastados de polêmicas. Ou seja, o clamor pelo clamor, em períodos de tensão política, seria uma ferramenta que separa quem busca uma solução daqueles que aceitam as circunstâncias de maneira passiva.


Intrigado, retomei a enquete no dia seguinte. Após a decisão do exército de não punir a indisciplina de um dos seus, lancei uma ligeira constatação. Este texto também continha menções a outras descobertas que emergiram (em redes sociais a festa nunca termina). A segunda foi quanto a reação de atores ao depoimento de uma colega, e a terceira versava sobre a filiação partidária de uma personagem popular do capítulo anterior da novela mais popular em exibição na TV Senado. Este, no entanto, recebeu um comentário solitário. Interessante, pensei. Fiquei sem saber qual seria a diferença entre duas publicações de teor político. A primeira está no formato: a primeira era uma pergunta direta, a segunda era um texto fechado e escrito como alegoria. Então, notei que talvez esse fator tenha sido determinante. Afinal, nem todos entendem metáforas. A outra, mais preocupante, seria um sintoma do zeitgeist: em meio a uma divisão evidente de forças, a provocação levanta mais resposta do que a busca por uma reflexão dos fenômenos.

Ao mesmo tempo, toda reflexão é válida? Também entramos na era do cancelamento, em que um pensamento descontextualizado causa revolta imediata no lugar de uma procura por esclarecimento. O inferno, agora, está cheio de boas intenções. Mas (e olha outra pergunta que pula feito coelho em chapéu de mágico) seria isto? Afinal, uma palavra que rima com intenção é “isenção”. Uma forma mais elaborada do bordão do Comunicólogo da PUC, personagem do Jô Soares: “Eu não tenho nada a ver com isto”. Refiro-me ao monólogo da artista, que mencionei no parágrafo acima. O roteiro lembra uma redação de concurso: escolhe um tema, assume um posicionamento, discorre prós e contras do assunto e termina sem resolução numa tentativa de agradar a todos no meio do caminho. O que acontece é que estamos numa etapa em que esta metade de trajetória é improvável. Querendo ou não, vivemos uma era de lados. A rua de cima contra a rua de baixo. Não é uma escolha, é imprescindível para demonstrar que não viemos de Marte.

O que também se destacou na gravação foi a falta de informação de uma pessoa que se propõe a expor opinião. Não se pede que alguém saiba como uma receita é feita, mas, ao menos, saber diferenciar o que é carne e o que é fruta. Torna-se mais um atestado de alguém bombardeada por convicções que toma como verdades. Quando não há uma demanda por pesquisa, reflexão ou aprendizado, o delírio ganha substância e emerge do ovo da serpente da arrogância. Ou seja, o lado ruim do clamor pelo clamor. Não se trata de defender um ponto de vista somente, é preciso saber o que o motiva. O vídeo no Youtube ou a panela na janela, em si, nada são. Saber o por quê se faz isto, e levar esta atitude para todos os aspectos da vida, sim. Porque nunca há meio termos quando existe urgência. A única maneira de evitar o limbo é ir à luta, arregimentar suas ferramentas e alçar as mangas. Ler, questionar-se, e, ao escolher um lado, conhecer suas razões lógicas. Sem isto, o que acontece é uma morte cerebral, em que somente o coração funciona, mas o corpo é inutilizado. Em meio a delírios e arrogância, surgem fantasmas. Mas será que fantasmas existem? (e fecho com outra pergunta…).
Daniel Russell Ribas

País de lixo


Passei anos e anos procurando levar este país a sério para, no final das contas (e da vida), chegar à conclusão de que tudo não passou de uma estúpida perda de tempo
Joel Silveira, "Guerrilha Noturna"

Fudidos de verde e amarelo

Vendo o Brasil seguir escoando pelo bueiro. Vai, Brasil, diluído em sangue, água suja, chorume e vômitos dos doentes. Sentada no meio fio da História, acompanho com os olhos e um nó no peito o caminho célere da Nação, dissolvida em óleo de cloroquina, até o ralo dos infernos. Segue, altiva, e por vontade própria.

O Brasil se encaminha de peito inflado e cabeça erguida na direção do cadafalso. Hipnotizado por inverdades, abduzido pelas falsas versões, lá vai ele, em inocente ignorância, com o pescoço já azeitado para facilitar a lâmina da guilhotina. Vai de verde e amarelo, dançando funk no tik tok, alegre, risonho, espalhafatoso, como é de sua ingênua natureza, bradando hinos e palavras de ordem. “Fora STF”, “Fora Congresso”, “Pela intervenção militar”, “Queremos nosso Brasil de volta”.

Não bastou o Mensalão encarcerar os sobreviventes combativos de 68. Não bastou o golpe interromper o mandato da presidenta honesta. Não bastou a Lava Jato destruir nossa indústria da construção, a indústria naval, nosso projeto nuclear, nossa indústria de óleo e gás. Não bastou a prisão ilegal de Lula. Não bastou a retirada dos direitos do trabalhador brasileiro. Não bastou o massacre de nossas pensões e aposentadorias. Não bastou o rolo compressor no ensino básico. Não bastou a precarização máxima das universidades públicas. Não bastou o corte de nossos programas de bolsas de estudo e incentivo à Ciência. Não bastou a satanização da Cultura, através do falseamento da Lei Rouanet. Não bastou o projeto de destruição do SUS, a redução drástica dos leitos, os cortes de verbas.

Não adiantou a devastação recorde de nossas florestas, a liberação de invasões pelos grileiros do grande capital, o assassinato dos indígenas pelos bandidos do garimpo. Não bastou o desmonte dos órgãos de controle de tudo. Não bastou a liberação de armamento pesado para bandidos e milicianos. Não bastou o aparelhamento da AGU, da PGR, da Polícia Federal, da Receita Federal, do Judiciário. Não bastaram os três bilhões para o Centrão. Não bastou a venda fatiada da Petrobrás. Não bastou a entrega de nossos aquíferos ao projeto da privatização.

Não bastou o sufocamento dos programas sociais. Não bastou a volta dos pratos vazios, a epidemia da fome. Não bastaram as latas de lixo revirando restos, os esquálidos de mãos estendidas nas calçadas, crianças chorando nas ruas porque têm fome. Não bastou faltar leitos nos hospitais para os doentes e covas nos cemitérios para os mortos. Não bastou meio milhão de brasileiros exterminados pelo descaso, a inépcia, o projeto de morte de um genocida, que se compraz com o sangue derramado, pois sua especialidade – declarou – “é matar”.

Agora, a horda ensandecida, que capturou nossa Bandeira, quer uma ditadura, grita por ela, implora, discursa. Quer a repressão dos diferentes. Quer o pensamento enclausurado, bocas caladas, línguas arrancadas.

E já nos furam os olhos à bala. Já nos prendem por nos manifestarmos. Já exigem o porte de documentos. Já nos incriminam se estamos em grupo. Já censuram a mídia independente através de ações judiciais, com sentenças espúrias e multas, que ninguém pode pagar. Jornalistas oprimidos já se reúnem em vaquinhas solidárias, para poder continuar a falar, a denunciar, a ser.

E continuam a achar pouco.
Hildegard Angel
*Considerem a palavra chula uma licença poética de quem cresceu e viveu evitando dizer e escrever palavrões, mas meu copo, até aqui de mágoa, apreensão, tristeza, transbordou.

O dia em que um ditador trocou o treinador da seleção brasileira

Pouco tempo antes da Copa do Mundo, um Governo se baseia em motivos políticos para pedir a troca no cargo de treinador da seleção brasileira de futebol. Aconteceu em 1970, quando o ditador Emílio Garrastazu Médici pediu a cabeça de João Saldanha, que treinava a equipe brasileira meses antes do tricampeonato mundial no México, mas decidiu denunciar as violações do regime. O caso emblemático veio à tona nos últimos dias com a intensa pressão política sobre Tite, o atual comandante da seleção, cuja permanência no cargo foi posta dúvida no momento em que ele é alvo de intensa campanha contrária de apoiadores bolsonaristas, puxada nada menos do que pelo filho mais velho do presidente, senador Flávio Bolsonaro. Por ora, Tite fica, e os jogadores anunciaram que vão jogar o torneio, mas o episódio compõe mais uma das tensões envolvendo a realização da Copa América no Brasil.

A articulação do Planalto contra Tite não se resumiu às redes sociais. Segundo o jornalista do SporTV, André Rizek, quando ainda no cargo, o presidente da Confederação Brasileira de Futebol, Rogério Caboclo, prometeu ao próprio presidente Jair Bolsonaro a demissão do treinador após a manifestação pública de desconforto por parte de Tite por conta da decisão do país de sediar o torneio em meio ao recrudescimento da pandemia em algumas regiões. Caboclo acabou afastado por denúncia de assédio sexual antes de concretizar a promessa, o que, pelo menos por enquanto, impediu Bolsonaro de repetir a interferência da ditadura militar na entidade mais representativa do futebol brasileiro.


O descontentamento por parte do Governo federal começou desde que Tite se tornou o primeiro da delegação brasileira a falar sobre a realização do torneio sul-americano no Brasil. Depois das recusas de Argentina e Colômbia, a Conmebol firmou o acordo com as autoridades brasileiras para que a edição, a duas semanas do seu início, fosse transferida ao país mais atingido pela covid-19 no continente. A decisão acendeu o debate sobre os problemas de um campeonato dessa proporção acontecendo neste momento no Brasil, inclusive entre os próprios jogadores brasileiros. “Temos uma posição clara, mas não vamos externar isso agora”, se limitou a dizer Tite no dia 3 de junho, 48 horas após a confirmação da Copa América no Brasil.

Apesar de não ter esclarecido a posição, desde então a hashtag #TiteComunista passou a figurar entre os assuntos mais comentados do Twitter. O senador Flávio Bolsonaro corroborou com os protestos chamando o treinador de “puxa-saco do Lula”. “Bastou a CBF pedir para o presidente Bolsonaro a autorização para que ela acontecesse aqui no Brasil para que o Tite se posicionasse politicamente”, disse ele. Hamilton Mourão, vice-presidente, ironizou a possível saída do comandante ao lhe oferecer o cargo num clube mato-grossense que demitiu seu treinador recentemente: “O Cuiabá está precisando de técnico”. Do outro lado, foi a vez do capitão da seleção, Casemiro, se manifestar após a vitória contra o Equador, na última sexta (4), dizendo que “Tite deixou claro nosso posicionamento e o que nós pensamos da Copa América”. Por fim, circulou a informação de que Caboclo teria prometido a Bolsonaro a troca de Tite pelo treinador bolsonarista Renato Gaúcho, que pediu demissão do Grêmio no início do ano.

Nos anos 70, o então técnico da seleção, João Saldanha, não deixou sua opinião de lado e, após a morte do guerrilheiro Carlos Marighella pelo regime militar, montou um dossiê em que citava mais de 3.000 presos políticos, mortos e torturados pela ditadura brasileira, e o distribuiu a autoridades internacionais quando esteve no México para o sorteio do Mundial, em janeiro de 1970. Dali até a demissão por influência do Governo, em março daquele ano, foi questão de tempo. A tese de que a oposição de Saldanha contra o regime militar foi a responsável por sua demissão é reforçada pelo livro Quem derrubou João Saldanha, de Carlos Ferreira Vilarinho, e no documentário Pelé, de 2021, onde o camisa 10 da seleção é colocado como pivô na discussão que culminou na queda do treinador. Desde então, outros presidentes não interferiram diretamente no futebol brasileiro.

Nesta segunda, o presidente Bolsonaro garantiu que só interveio na CBF para autorizar o recebimento da Copa América no país. “No tocante a jogador, técnico, estou fora dessa. Não tenho nada a ver com isso aí”, afirmou. Tite, em entrevista coletiva, desconversou ao dizer que nunca se sentiu ameaçado de demissão. “As pessoas acham que a gente tem que ter opinião sobre tudo, mas a gente tem que ter opinião sobre futebol. Técnico de futebol tem que estar alinhado com o futebol”, disse o treinador, na contramão do que havia declarado, ou ao menos insinuado, até então. Vale lembrar que, de acordo com os artigos 14 e 19 do Estatuto da FIFA, as federações nacionais (como a CBF) são consideradas entidades privadas e não podem aceitar interferência de Governos, sob possibilidade de punição. Nos últimos dez anos, as federações de Nigéria, Paquistão e Chade foram punidas ou ameaçadas pela FIFA após terem intervenções dos Governos locais em suas diretorias ou seleções de futebol.

Exército adiciona o escárnio do sigilo ao vexame da impunidade de Pazuello

O Exército decidiu manter em segredo por cem anos o processo disciplinar que deixou impune a indisciplina do general Eduardo Pazuello. Em resposta ao jornal O Globo, que requisitou acesso aos papeis sobre a participação de Pazuello em ato político ao lado de Bolsonaro, no Rio de Janeiro, em 23 de maio, o Exército alegou que o caso envolve informações pessoais cuja proteção centenária estaria autorizada pela Lei de Acesso à Informação.

Cabe recurso da decisão à Controladoria-Geral da União. Ao julgar casos análogos, a CGU vem adotando o entendimento segundo o qual processos administrativos só devem permanecer em sigilo enquanto durar a apuração. Consumado o veredicto, qualquer pessoa pode requerer acesso à íntegra do processo. Costuma-se vedar apenas a divulgação de dados bancários e fiscais, além de "informações pessoais sensíveis de terceiros" e dados que possam levar "à identificação de eventual denunciante."


O único "terceiro" relevante envolvido no ato político de que participou o ex-ministro da Saúde Pazuello é Bolsonaro. Não há denunciante no caso. O general produziu provas contra si mesmo ao ornamentar um comício fora de época de Bolsonaro. Algo que é expressamente proibido a militares da ativa.

Pressionado pelo presidente da República, o comandante do Exército, general Paulo Sérgio Nogueira, rasgou os regulamentos. E arquivou o caso. Prevaleceu o pretexto de que o ato não foi político, pois Bolsonaro não está nem filiado a partido político. Como se fosse pouco, o Exército achou que seria uma boa ideia adicionar o escárnio do sigilo ao vexame da impunidade de Pazuello.

É como se o Exército pedisse aos brasileiros para fazer como os generais do seu Alto Comando, fingindo-se de bobos para não atiçar os maus bofes de Bolsonaro, comandante supremo das Forças Armadas. Nessa linha, todas as precariedades de Pazuello estão perdoadas e suas transgressões prescritas, no entendimento tácito de que ser Pazuello já é castigo suficiente para qualquer um. Nenhum processo administrativo daria a Pazuello uma pena maior do que o convívio perpétuo consigo mesmo.

Vá lá que o Exército e as Forças Armadas queiram se desmoralizar. Mas a ideia de proteger a indignidade com um sigilo de cem anos é algo que não faz bem à democracia nem à República.