terça-feira, 8 de junho de 2021

A superação dos generais

O Exército não puniu Pazuello. Qual a surpresa? O governo é militar. Surpreendente seria se punisse o que lhe dá dentes para intimidar inimigos. O governo é militar, e é Bolsonaro, indistinta e personalissimamente, o que ladra. Surpreendente seria punir-se com a banguelice.

O governo é militar e é daquele que ergueu bem-sucedida empresa familiar nas bordas do Estado. O governo é militar e é de patriotas como general Braga Netto, ministro da Defesa, cujo salário — sob regra editada pelo mito — aumentou 58% e para mui além do teto remuneratório constitucional. O governo é militar e é do capitão, o velho líder corporativista fã de Hugo Chávez. Não cortará na própria carne — e isso não se aplica somente a privilégios de contracheque.


O governo é militar. E o Exército está pazuellizado: submetido à dissolução de sua essência impessoal, degradada a natureza de instituição de Estado, a serviço incondicional do governante de turno e independentemente do que limita a Constituição. Um manda, o outro obedece — qualquer que seja a ordem, depauperado também, confundido com falta de vergonha, o senso de hierarquia. O governo é militar, e o Exército vai bem alimentado.

O governo é militar e a pazuellização do Exército, fato consumado. Pazuello fez a aposta correta. Acreditou na acomodação, em que nem sequer seria advertido, e saiu premiado, com cargo no governo. Saiu mais que premiado, encarnando uma espécie de habeas corpus preventivo, extensivo a todos os militares: pode tudo, rapaziada.

Pôde tudo, anos atrás, o vice Mourão: general punido de mentirinha por discursos agitadores, deslocado — sob os holofotes que lhe dariam existência pública — a uma função burocrática desde a qual encontrou as condições ideais para sua escalada à política.

Não há mais fronteira entre Planalto e Exército. No Ministério da Saúde ou sobre o palanque, Pazuello servia — obedecia — a Bolsonaro, um chefe supremo das Forças Armadas cuja ascendência sobre as tropas já não deriva da Carta, mas da lógica personalista que fundamenta as relações entre o cabeça miliciano e seus homens.

O governo é militar. Militar e golpista. E não chegou a 2021 sem que a estrada fosse pavimentada por badaladíssimos quatro estrelas da moderação. Em 2018, o então comandante do Exército, dito moderado, foi a uma rede social para emboscar o Supremo. Era o general Villas Bôas, padrinho do Bolsonaro presidente e patrono da multiplicação dos generais Ramos — aquele para quem Pazuello, general da ativa, subiu ao carro de som como civil, aquele mesmo Ramos que, diante da série de atos antidemocráticos com a presença do presidente, compareceu “só no da rampa”. (Ramos, outro fura-teto: 69% de aumento salarial.)

Foi de rampeiro em rampeiro que chegamos até aqui. E não sem covardes. Os códigos militares são diretos: a participação do ex-ministro general na manifestação bolsonarista infringiu as regras. O Exército tinha a mais fácil desculpa para repreendê-lo: a clareza dos estatutos. Optou, porém, pela submissão. Ou melhor: teria optado, se não estivesse submisso havia muito. No último 27 de maio, o comandante da Força, Paulo Sérgio Nogueira, aceitou viajar com Bolsonaro ao Amazonas para inaugurar uma ponte erguida pela engenharia militar — isso à véspera de ter de decidir sobre Pazuello. Lá, previsivelmente, ouviu o presidente declarar que “somos todos seres políticos”, generais inclusive, e que caberia aos fardados decidir “como o povo viverá”.

Fala-se que teria recebido diretamente de Bolsonaro uma carga para que não penalizasse Pazuello. Não penalizou.

Na semana passada, circulou a versão de que o comandante do Exército assim agira sob cálculo. Temeria que a punição causasse um conflito entre a cúpula do Exército e o presidente; caso em que haveria o risco de Bolsonaro lhe sustar a decisão, o que o obrigaria a renunciar, abrindo terreno para que um bolsonarista chegasse ao comando. Uma conta que não fecha, senão para fantasiar a existência de algum brio militar no episódio. Ora! Desde quando Bolsonaro precisa de um bolsonarista — um explícito — na liderança da Força para ter o Exército a seu absoluto dispor?

Está muito bom com Nogueira mesmo, cujo caminho tomado — ainda que tivesse a intenção de evitar uma crise institucional — resultaria, como resultou, em algo muito mais grave: na mensagem de vale-tudo transmitida ao guarda da esquina.

Em português castiço: para o inferno o eventual choque entre cúpula do Exército e Bolsonaro. Ao comandante, só caberia aplicar o regulamento e disciplinar a tropa. Seu papel. Esse universo corrompido em que o comando da Força tem de fazer ponderação política só existe porque os generais escolheram se misturar, até a indistinção, ao governo de turno.

Aí está. Para que os sócios — parceiros fiéis neste projeto autoritário de poder — não se estranhassem pontualmente por cima, difundiu-se um salvo-conduto imprevisível para baixo, um convite ao estado de amotinamento; o que representaria a superação desta etapa de pazuellização para o estabelecimento de um Exército afinal bolsonarizado, em que todo militar, de qualquer grau, estaria autorizado, estimulado, a se comportar como Bolsonaro quando na Força: malandro, desagregador, conspirador, com planos atentatórios. É o que ele quer. O Exército como milícia. Status em que — fica a dica — não seriam necessários generais.

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