terça-feira, 8 de junho de 2021

Delírios e arrogância

Semana passada foi agitada. Entre algumas reviravoltas, houve outro panelaço. Tornou-se uma tradição da pandemia: sempre que o presidente zurra na TV, utensílios domésticos dobram função como pandeiro. Além do lucro potencial dos consertos e da catarse de parte da população, pergunto-me qual seria o resultado deste ato. Protestar é um direito e uma necessidade, porém gritar para o vazio é estupidez. Com isto em mente, lancei minha questão ao juizado do grande irmão: as redes sociais. Para minha surpresa, recebi uma quantidade razoável de respostas. Surpreendi-me não pelo conteúdo, mas porque raramente parece que alguém se interessa por algo que publique nestes perfis interativos. Os comentários, como esperado, trouxeram mais questionamentos. Houve desde “não” enfáticos, incluindo a admissão do desopilamento de participantes, a outros que pediam para mudar ou não tocar neste assunto. Também teve menções ao fato de que era uma forma de engajamento, enquanto muitos preferem se manter afastados de polêmicas. Ou seja, o clamor pelo clamor, em períodos de tensão política, seria uma ferramenta que separa quem busca uma solução daqueles que aceitam as circunstâncias de maneira passiva.


Intrigado, retomei a enquete no dia seguinte. Após a decisão do exército de não punir a indisciplina de um dos seus, lancei uma ligeira constatação. Este texto também continha menções a outras descobertas que emergiram (em redes sociais a festa nunca termina). A segunda foi quanto a reação de atores ao depoimento de uma colega, e a terceira versava sobre a filiação partidária de uma personagem popular do capítulo anterior da novela mais popular em exibição na TV Senado. Este, no entanto, recebeu um comentário solitário. Interessante, pensei. Fiquei sem saber qual seria a diferença entre duas publicações de teor político. A primeira está no formato: a primeira era uma pergunta direta, a segunda era um texto fechado e escrito como alegoria. Então, notei que talvez esse fator tenha sido determinante. Afinal, nem todos entendem metáforas. A outra, mais preocupante, seria um sintoma do zeitgeist: em meio a uma divisão evidente de forças, a provocação levanta mais resposta do que a busca por uma reflexão dos fenômenos.

Ao mesmo tempo, toda reflexão é válida? Também entramos na era do cancelamento, em que um pensamento descontextualizado causa revolta imediata no lugar de uma procura por esclarecimento. O inferno, agora, está cheio de boas intenções. Mas (e olha outra pergunta que pula feito coelho em chapéu de mágico) seria isto? Afinal, uma palavra que rima com intenção é “isenção”. Uma forma mais elaborada do bordão do Comunicólogo da PUC, personagem do Jô Soares: “Eu não tenho nada a ver com isto”. Refiro-me ao monólogo da artista, que mencionei no parágrafo acima. O roteiro lembra uma redação de concurso: escolhe um tema, assume um posicionamento, discorre prós e contras do assunto e termina sem resolução numa tentativa de agradar a todos no meio do caminho. O que acontece é que estamos numa etapa em que esta metade de trajetória é improvável. Querendo ou não, vivemos uma era de lados. A rua de cima contra a rua de baixo. Não é uma escolha, é imprescindível para demonstrar que não viemos de Marte.

O que também se destacou na gravação foi a falta de informação de uma pessoa que se propõe a expor opinião. Não se pede que alguém saiba como uma receita é feita, mas, ao menos, saber diferenciar o que é carne e o que é fruta. Torna-se mais um atestado de alguém bombardeada por convicções que toma como verdades. Quando não há uma demanda por pesquisa, reflexão ou aprendizado, o delírio ganha substância e emerge do ovo da serpente da arrogância. Ou seja, o lado ruim do clamor pelo clamor. Não se trata de defender um ponto de vista somente, é preciso saber o que o motiva. O vídeo no Youtube ou a panela na janela, em si, nada são. Saber o por quê se faz isto, e levar esta atitude para todos os aspectos da vida, sim. Porque nunca há meio termos quando existe urgência. A única maneira de evitar o limbo é ir à luta, arregimentar suas ferramentas e alçar as mangas. Ler, questionar-se, e, ao escolher um lado, conhecer suas razões lógicas. Sem isto, o que acontece é uma morte cerebral, em que somente o coração funciona, mas o corpo é inutilizado. Em meio a delírios e arrogância, surgem fantasmas. Mas será que fantasmas existem? (e fecho com outra pergunta…).
Daniel Russell Ribas

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